Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 7: Um leve disfarce

Então era assim que era um carro. Algumas partes do painel brilhavam em tons de roxo e azul e podia ouvir um som mágico oculto através do cascalho quebrando lá fora. 

Se fechasse os olhos, dormiria em meio a tanta tranquilidade, mas sua mente era um turbilhão de pensamentos. 

Não via nada além de árvores a correr do lado de fora, o sol sempre oculto em meio a névoa, tão fraco que sequer esquentava suas coxas. 

Doía pensar que agora a única coisa que a unia a seu pai era a roupa do corpo, a do dia do forno, que fora costurada de baixo a cima só para que ainda existisse. 

O pano em suas mãos estava úmido de suor ou lágrimas, não sabia distinguir. Lembrava-se bem do momento em que Lucian lhe entregara o objeto enquanto lhe explicava do que se tratava, agora era só um pano encardido com um significado distante demais para ser relevante. 

A mulher parecia cochilar no banco da frente de tão quieta, enquanto o motorista estava atento e silencioso, como se nunca houvesse aprendido a falar. E que assim se mantivesse. 

Não gostava do jeito dócil que se dirigiam a ela; eram lobos e soava falso vindo deles. Na verdade, nunca vira um lobo, só lia sobre eles nas histórias e sempre eram maus ou no mínimo ridículos, não iria ignorar este fato.

Acordou de repente, assustada em descobrir que adormecera numa pequena jaula com estranhos. 

As árvores não corriam mais, nem árvores haviam. Ambos sussurravam à frente sabe-se lá o quê e pararam quando ele a viu de relance.

— Bom dia, dorminhoca.

Não estava pronta a passar qualquer vergonha com frases inacabadas; desviou o olhar dele para tentar entender melhor o que se passava lá fora. O carro estava parando.

— Aqui estamos. Enfim, em casa.

Vanessa saiu logo depois dele, levando sua discreta bolsa de couro aparentemente valiosa. Bruna recuou de susto quando a porta em que estava abriu e o grande rosto do lobo fitou-a.

— Falta uma caminhada, na verdade. É um pouco complexo, mas com o tempo acostuma — disse ele, dócil. A menina puxou sua toalha e saltou para fora fingindo surdez.

Estavam em um pátio aberto repleto de outros carros uniformemente estacionados; era um espetáculo de esmaltes lustrosos e coloridos, mas sua cabeça doía demais para analisar todas as formas. 

Acidentalmente repousando o olhar nos pés de quem estava em sua frente, reparou que era um passo irregular. Era como se Vanessa tivesse acabado de comprar as próprias pernas, e teria gargalhado disso se não se sentisse tão só com suas piadinhas. 

O sol ardia em seus braços expostos. Bruna gostava daquela caloria. Lhe lembrava o aquecedor e dos muitos momentos em que precisou mergulhar nas chamas para resgatar o garfão. 

Admirou o céu que nunca vira; azul, vivo e quente, cheio de nuvens límpidas que davam fome. 

— Vai ficar cega se olhar muito. — Vanessa disse pela primeira vez desde que chegaram.

— Deixe-a. — o outro lobo interveio. — O dia está bonito hoje.

— Que lugar é esse? — a criança perguntou.

— Um condomínio.

Muito esclarecedor, agora sentia-se mil vezes mais patética. Estavam chegando numa rua feita só para casas idênticas. 

Não conseguia imaginar o que eles faziam para diferenciá-las, mas depois, encontrou escrituras ao lado de cada porta. Enquanto desfilavam, Bruna viu que em certos sobrados havia pessoas debruçadas em suas sacadas, monstrinhos de olhos reluzentes.

— Por que usam aqueles óculos pretos? — a raposa perguntou, com medo da resposta. Lembrava-se de alguma história vaga de um dia qualquer dizendo que serviam pra esconder os “sem olhos”.

— Pra disfarçar a encarada. — Vanessa respondeu. 

— Então eles nos olham.

A loba acenou a cabeça e aí o assunto morreu. A falta de simpatia deles de algum modo ofendia — isso porque crescera lado a lado à grosseria de Marieta que esganiçava com ela até por subir em árvores. 

Não sabia que o silêncio cortava tanto, isso explicava por que ninguém nunca calava a boca no orfanato. Era ruim pensar que ele podia durar a vida inteira.

— E pronto. — a loba disse do nada. — Número trinta e dois.

— Três e dois sem o um.

O moço sorriu.

— Que interessante.

Bruna ignorou-o de novo. A partir dali, todos os sorrisos seriam armas. A estradinha de cascalho revelou-se uma tortura pra loba; claramente lutava pra manter o equilíbrio e aquilo foi suficiente pro riso de Bruninha-autodeclarada-idiota escapar.

— Há-há-há. — ela brincou. — Um dia eu rirei de você também, bobinha.

— Achei que velhos não podiam usar salto e achei certo.

— Eu não sou velha, e fico muito bem de salto.

— ... Andando como um bebê. Eu com dois anos andava melhor.

Ela riu de volta. Então sua simpatia estava no humor, que mais tarde se revelaria mórbido.

— Sapatos são só um disfarce.

A casa tinha cheiro de papel empoeirado, o que brevemente a levou de volta aos braços de Lucian. 

Afastando a lembrança com suavidade e organizando a mente, recordou que também era bem empoeirada; os banhos no orfanato já eram poucos e ela ainda escapava deles. Mas agora sentia-se diferente, talvez o calor mandara embora a sensação de secura e peso. 

A casa era espaçosa, de decoração padrão; a única coisa realmente anormal era a mesinha esguia logo ao lado do sofá. Servia para apoiar uma bandeja de garrafas enfeitadas com seus rótulos escuros, todas preenchidas por um líquido cor de cobre. De algum modo, eram familiares.

— Fique à vontade.

Provavelmente nenhum deles imaginava que preferia ler, só que nada ali a interessava, então não estava nada à vontade. 

Poderia facilmente aguentar mais algumas horas até que o horário de almoço chegasse e não iria fazer nada até lá. Vanessa tapeou o sofá, chamando-a. 

— Não quer ouvir um pouco?

Acabou indo, assistindo com atenção o espetáculo que a loba dera só em esticar o braço para alcançar o rádio na estante. 

Forjando tranquilidade, sentou-se distante dela, identificando que tipo de ação ela fizera para ligá-lo. 

Nas entrevistas que ecoavam dos brilhantes cristais mágicos passava ali um noticiário qualquer, que enchia o silêncio da casa aos poucos. 

Nunca estivera tão próxima do elemento, já que o único rádio que havia no orfanato ficava sob a posse de Marieta; além de que sempre achou uma chatice ficar ouvindo uma pessoa contar o que aconteceu em lugares que nem conhecia — o que raios eram frentes de batalha do lado oeste? Deviam ser coisa de gente velha, como as piadas que nunca entendia.

Voltando um pouco sua atenção àquela fortuna diante de si, ouvia sobre um acidente na tal Avenida Grito de Pássaro. Dois feridos, nenhum morto; uma colisão entre um motociclista e um carro num cruzamento acabou congestionando o trânsito. Bruna não fazia ideia do que fosse um...

— Mô o quê?

Já ouvira algumas vezes que nas cidades existiam carros movidos à magia das terras das fadas, sempre perguntara isso a seu pai, mas ele sempre respondia vagamente. E a loba, ainda ousava rir. Não dava pra descrever o quanto se sentiu minúscula diante daquilo.

— Aquele que pilota motos. — passou a página da revista que lia. — Um dia você vai saber o que é.

O motorista estava alcoolizado... —  explicava o policial entrevistado. — E estava acima do limite de velocidade, além de ter passado em três sinais vermelhos...

— O que é que álcool tem a ver? — lembrava-se dele como aquilo que Juan usava para atiçar o fogo.

— Bebida. Nunca viu alguém bêbado?

Ela abanou a cabeça curiosamente.

— Então pode se acostumar. — a revista magra perdeu seu interesse para a garrafa: Vanessa mergulhou o braço na fresta entre o sofá e a mesinha e voltou com um copo achatado.

— Não ouse! — Lucas gritou da cozinha. — Não quero limpar o seu vômito.

— Ah, vai ser só um gole...

O cheiro forte chegou às narinas de Bruna sem demora. Já o sentira alguma vez, só não lembrava exatamente onde nem quando, e a familiaridade a fez ignorar tanto o odor como a situação.

— Vanessa, respeite. — ele apareceu na porta da cozinha, fitando-a. Não levou nem um segundo pra ela ignorar a garrafa também.

Só daquela situação, três perguntas vieram: por que beber era errado, por que ele ficou tão bravo, e por que o copo estava no chão se havia a mesa ali. Bruna fechou a cara, mordendo a língua de propósito — ninguém daria azo às suas dúvidas inúteis.

 — Ande, aja com dignidade e repense suas ações, pirralha.

Achou que fosse um sermão e engasgou de susto ao ouvir a adulta ao seu lado se levantar — mas que alívio, pelo menos não era com ela. Marieta sempre gritava com as paredes e por algum motivo a culpa era sempre da raposa. 

Relutante, a loba ia em passos lentos pra escada, naquele mesmo ritmo instável de antes. 

— Desculpe o comportamento dela. É raro que conviva com crianças, mas nada que não possa ser mudado. — Bruna demorou para notar que ele falava com ela e tentou disfarçar.

— Juan bebia disso. — apontou a garrafa. — Todos os dias, um copo como aquele. As chances de pegar fogo são altas, então nem sei como ele está vivo hoje. 

— Acostumada ou não, não quero lhe obrigar a fazer parte de um ambiente como o dela. Jamais iria querer isso.

Não entendia tanta cortesia. Nem sabia o que era cortesia e muito menos porque falava assim com ela se podia ser mais sociável e brincalhão e rir da porcaria de piada que acabara de passar despercebida, ora essa.

— B-bem, eu... Eu não me importo com essas coisas. Não mesmo.

Sem esperar suas palavras e explicações certamente mentirosas, Lucas conteve o sorriso. 

Ela era tão diferente dos contos surreais e episódios cômicos e desastrosos que lhe descreveram; uma mocinha amuada, quieta, submissa e tímida. Garantiu a si mesmo que seria só no começo.

— Sabe que não precisa ser boazinha pra sempre. — disse a ela.

— Não estou sendo boazinha. — “só sendo legal”, mas tinha certeza de que ninguém ia notar isso.

— E tudo bem.

Bruna queria pedir pra que parasse de olhá-la assim. Ele não era seu pai.

— No andar de cima, há dois quartos vazios com as portas abertas. — mencionou enquanto se retirava. — Escolha um deles com cuidado.

— Por que com cuidado?

— Pois o outro será o depósito. A menos que tenha outra ideia melhor.

Enquanto media as dimensões com seus passinhos, tentava deixar a mente trabalhar a toda; era mais seguro do que entrouxar tudo e futuramente explodir de modo literal. 

Giovanna lhe contava como fazia para se controlar. Era algo que tinha a ver com rios e cursos, e poças e cachoeiras. A explicação era vaga, mas ainda se lembrava: era preciso entender como cada faísca de memória podia se expandir até ser um incêndio gigante. Segundo ela, só assim podia compreendê-las melhor — estava tentando fazer isso agora. 

Não chorava, não se sentia capaz disso. Também não conseguia encontrar a própria consideração, tampouco sentir pena de si mesma. Se fosse desenhável, seria a palavra “saudade” minúscula numa folha absurdamente grande e vazia — talvez “arrependimento”, “medo” ou “ódio”. 

Sua nuca doía só em calcular quantas palavras ruins podia ser agora. Tentou se entreter com a primeira lembrança bonita que lhe veio.

Achava Giovanna estranha, mas muito encantadora, como um diamante vivo. No entanto, a serpente era inalcançável pra raposa; seu ensinamento era complicado demais para pôr em prática agora.

Só queria queimar tudo e nem isso podia; sentia falta dela, dele, e isso era apenas culpa sua. 

Cada parede devia ter uns três metros; bem maior que aquele no qual vivia com seu pai. Sequer sabia com que aconchegos iria encher um quarto tão grande.

— Sabe que mediu errado, né?

Sim. Não conseguia trabalhar bem com a cabeça pesada daquele jeito. Mas não assumiu nada, não estava com a paz do bom humor, apenas parou de agir e deixou os braços caírem.

— Tem quatro e meio em cada parede, já que quer saber. E pra que quer saber? Já tem tudo que precisa aqui.

Sim de novo. Escolhera o que já tinha mobílias para que não precisassem movê-las, mas gostava de medir coisas, apesar de sempre fazer errado porque estava crescendo bem rápido. Dois passos não mais significavam um metro e reparara nisso só agora.

— Ora, não fique tão quieta. Eu na sua idade também não sabia medir paredes. Na verdade, na sua idade eu estava bem ferrada, mas isso não vem ao caso.

— A julgar pela sua cara, devia estar mesmo.

Vanessa levantou as sobrancelhas, surpresa.

— Onde aprendeu a ter uma língua tão afiada? — começou a andar em sua direção, aí que as coisas ficaram ainda mais estranhas. — Quem me dera ter a sua liberdade para dizer o que penso.

Se sempre dissesse o que pensava, ainda estaria no orfanato sendo seguida por olhares onde quer que fosse. E isso nem tinha importância agora, já que seu coração parara de bater por uns instantes diante da coisa horrenda que surgiu em sua frente.

— Não fique tão aborrecida, mocinha. Há um grande mundo lá fora esperando pra ser medido. Você sabe por que está aqui, não sabe?

Nem conseguia lembrar os milhões de porquês que a consumiam o dia todo. Seus olhos não despregavam daquelas coisas estranhas que ela tinha no lugar dos pés. A mulher olhou a si mesma numa indignação cômica.

— Qual é! Elas não vão cortar sua goela, menina, pare de olhar tanto.

— Elas? — a garota murmurou, um pouco perdida.

— É, elas. As próteses, eu as chamo de Pés de Coelho. Eu disse que sapatos eram só disfarces.

Era uma espécie de esqueleto metálico adaptado para que ela pudesse andar; suas duas pernas não existiam a partir do joelho, tudo tão simétrico que parecia que foram cortadas de propósito. 

Não fazia ideia de como ela se equilibrava mais naquilo do que nos saltos. Forçou-se a olhar outra coisa enquanto Vanessa sorria ao perceber sua timidez.

— Sei que se sentia diferente lá no orfanato. Eu também achei que era, minha vida toda. Por isso você está aqui. Quero que tenha o que eu… muitos por aí não podem ter.

Bruna acenou a cabeça devagar, já que não aceitava mais uma palavra não calculada para broxar sua condição.

— Então, estamos bem?

A raposa voltou a olhar o chão. Vanessa suspirou, paciente.

— Bom. Tudo a seu tempo, né.

E se foi, silenciosa em seus passos suaves de metal. Era assim que funcionava o respeito? Tão rápido, tão simples, tão... como uma gaiola recém aberta, talvez? Bruna sorriu devagarinho, forçando-se a pensar positivo pelo menos um pouquinho.

Um riso escapou da boca da raposa. Nem tudo parecia tão ruim, pelo menos ainda tinha suas pernas. E um mundão pra ser medido.



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