Volume 1
Capítulo 2: O Túnel Seikan
— DÊ.
Esse foi o cumprimento de Akira quando se aproximou de mim com a mão estendida na estação de Hakodate na manhã seguinte (se é que dava para chamar de manhã). Ela usava o mesmo casaco estilo baseball do dia anterior — talvez fosse seu favorito. Jogada sobre um ombro, carregava uma mochila, que presumi conter tudo o que achava necessário para a jornada à frente.
Olhei para sua mão estendida, confuso, e inclinei a cabeça para o lado.
— Ahm... De-desculpa, posso ajudar?
— Meu relógio — ela disse. — Me dá.
— Ah, certo.
Rapidamente tirei o relógio do bolso do meu casaco e entreguei a ela.
— Aqui está. Ainda está inteiro. Mas o horário tá meio errado agora...
Isso porque precisei tirá-lo, junto com o resto das minhas roupas, antes de entrar no banho na noite anterior. Eu não podia molhá-lo, já que nem era meu, então foi um mal necessário. Até tentei adiantar um pouco o relógio depois de sair, para compensar, mas como não fazia ideia de quanto tempo fiquei na água, não tinha como garantir que estava no horário certo. Akira parecia entender essa inevitabilidade, pois simplesmente aceitou o relógio sem dizer nada — e então enfiou a mão no próprio bolso e puxou um segundo relógio, que estendeu para mim.
— Aqui — disse ela. — Pode ficar com esse.
— Hã?! — Fiquei boquiaberto, atônito. O relógio era bonito, com um design elegante e maduro. Sem dúvida, muito mais valioso do que o que ela tinha me emprestado para passar a noite. Imediatamente, senti perigo no ar. Essa era a mesma garota que estava me arrastando até Tóquio em troca de uma única batata frita. Eu nem queria imaginar o que poderia dever a ela se aceitasse aquele relógio de luxo.
— Anda logo, pega isso.
— Te-tem certeza que eu posso ficar com ele? Não tem nenhuma pegadinha dessa vez?
— Hã? Como assim?
— Você não vai me obrigar a fazer alguma coisa maligna pra você ou algo do tipo...?
Akira inflou as bochechas de indignação.
— Mas é claro que não, seu idiota! Por acaso eu pareço uma supervilã?! Não me faz te dar um chute na bunda.
— Ce-certo, tá! Foi mal! Desculpa...
Definitivamente, eu não queria levar um chute, então me rendi na hora. Às vezes, eu mesmo me surpreendia com o quão covarde conseguia ser. Peguei o relógio com cuidado, evitando encostar na mão dela, e Akira soltou um "hmph" vitorioso.
— Tanto faz, sério — disse ela. — Esse era do meu irmão mais velho, então não me faz falta nenhuma. Eu bem que pensei em quebrar e deixar os pedaços espalhados na mesa dele, mas achei melhor deixar você usar.
Pelo visto, Akira e o irmão não tinham a melhor das relações. Eu não sabia os detalhes, mas, considerando nossa situação, um relógio de graça era algo bem-vindo. Seria útil.
— Ah, é — falei. — A gente devia sincronizar os relógios...
— Sincronizar? — perguntou Akira.
— É. O seu provavelmente tá com um horário diferente do meu...
O relógio que eu tinha pegado emprestado dela estava atrasado depois do meu banho na noite anterior, e duvidava que ela tivesse acertado o horário do que me deu de acordo com o celular ou algo assim — que, aliás, também poderia estar errado, a menos que ela tivesse dormido com ele no bolso. Sendo assim, precisaríamos escolher um horário qualquer para ajustar os dois relógios. (Só para constar, tive que esperar por ela por uns trinta minutos na frente da estação de Hakodate. Mesmo levando em conta que cheguei mais cedo por não ter um relógio confiável, ela ainda demorou um bocado.)
— Beleza, e pra que horas a gente coloca? — perguntou Akira.
— Vamos ajustar para 9h30 por enquanto.
— Tá.
Akira começou a ajustar o relógio, e eu fiz o mesmo.
Vamos ver, acho que é só puxar esse pininho aqui, girar um pouco e... Pronto. Aí está.
Depois de ajustar para exatamente 9h30 da manhã, coloquei o relógio no pulso. Pelo visto, teríamos que tornar isso um ritual diário — exceto se nenhum de nós estivesse planejando tomar banho ou tirar o relógio do braço daqui pra frente. Isso com certeza seria um incômodo, mas não podíamos deixar que nossos horários ficassem totalmente bagunçados.
Dito isso, usar esse relógio já estava me dando uma sensação estranha e coçando meu pulso. Nunca fui do tipo que usa acessórios por causa disso, mas, se começasse a me incomodar demais, eu poderia simplesmente guardá-lo no bolso do casaco.
Foi então que percebi Akira me encarando.
— Po-posso ajudar? — perguntei.
— Nah — disse ela. — Só tava pensando que esse treco ficou ridículo em você, só isso.
— Hã?!
Eu não sabia o que ela queria que eu dissesse. Não era como se eu tivesse escolhido esse relógio para mim — na verdade, foi ela mesma quem me deu. Mas não podia negar que realmente não combinava comigo. Parecia muito grande e sofisticado para o meu pulso fino e franzino. Olhei de relance para Akira para comparar; seus brincos brilhavam, e um colar estiloso aparecia sob a camisa aberta. Ela estava com todos os acessórios que uma adolescente antenada usaria — e eu, um completo desleixado.
— Certo, vamos andando — Akira disse e começou a caminhar.
Segui atrás dela sem dizer nada. E assim começou nossa jornada para Tóquio.
*
Após sairmos da estação de Hakodate, seguimos para o sul ao longo da costa. Nosso primeiro destino era o Túnel Seikan, que conectava a ilha de Hokkaido ao continente de Honshu. Quanto mais nos afastávamos da estação, mais os hotéis e prédios altos ficavam espaçados. Logo, até mesmo os edifícios menores se tornaram raros. Também não conseguia acreditar no tamanho dos estacionamentos, mesmo para estabelecimentos pequenos, em comparação com os de Tóquio. Isso reforçava a vastidão de Hokkaido. Para mim, o lugar inteiro parecia meio deserto — e essa sensação aumentou depois que saímos dos limites de Hakodate. O número de buracos gigantes na estrada e prédios abandonados só crescia.
Eu não sabia se o congelamento do tempo tinha algo a ver com essa atmosfera de desolação, mas, para ser honesto, não me incomodava. Para mim, aquilo era paz.
Já tinha me acostumado a viver em um mundo no mudo a essa altura. Com tudo silencioso por quilômetros ao redor, percebi que minha voz interior tinha ficado muito mais tagarela. Era meio estimulante, de um jeito estranho — como até mesmo esse silêncio assustador podia parecer seguro e confortável depois de um tempo para se acostumar.
Falando em silêncio…
Akira mal tinha dito uma palavra esse tempo todo. No começo, ela assumiu a liderança sem hesitação, mas agora estava apenas me seguindo, com os olhos baixos, parecendo uma criança emburrada. Não sabia se ela estava tentando conservar energia ou se simplesmente não conseguia pensar em nada para conversar comigo, mas, pelo menos, não era um silêncio desconfortável. E eu mesmo não era exatamente um grande conversador, então não via necessidade de forçarmos um bate-papo se nenhum de nós estivesse a fim. Para ser sincero, ela ainda me intimidava um pouco — mas, até agora, essa viagem estava sendo muito mais agradável do que quando viajei com meus colegas de classe.
Enquanto continuávamos seguindo pela costa, levantei o olhar. O céu azul de outono parecia ter sido pintado no teto de um salão imenso; não mudava nem um pouco desde às 11h14 da manhã do dia anterior. Parecia que havíamos entrado em uma fotografia futurista e tridimensional. Ou, para usar uma comparação mais familiar, como se estivéssemos andando dentro de uma versão ultra-realista do Google Street View. Mas, para mim, o mais estranho era a completa ausência de vento ou qualquer movimento no ar. Pelo menos o tempo estava bom quando tudo congelou. Imagine se estivesse chovendo e fôssemos obrigados a—
— Argh! Chega dessa porcaria! — Akira gritou. Levei um susto com o barulho inesperado e me virei na mesma hora.
— O que foi?!
— Tá quieto demais! Sinto que vou enlouquecer!
— Ah… é só isso? — De todas as coisas que poderiam incomodar…
— Graaagh… Droga, minha cabeça tá me matando. Espera só até eu encontrar quem causou essa maldita paralisação do tempo… Eu vou enforcar essa pessoa com minhas próprias mãos — ela resmungou, depois levantou o olhar para mim e franziu a testa. — Como é que você tá tão de boa com isso, hm?
— Bom, não sei o que te dizer… Mas, para ser sincero, até que acho essa falta de barulho bem relaxante…
Akira me encarou, incrédula.
— Certo, você só pode ser algum tipo de aberração. Não tem como uma pessoa normal ficar tranquila numa situação dessas. Ou tá só tirando com a minha cara, é isso?
— N-Não, tô falando sério.
— Ugh… Ótimo, então quer dizer que só eu tô sofrendo? Que injusto. Isso é um saco.
Por um momento, pensei que também era injusto ela estar descontando a frustração em mim, mas guardei esse pensamento para mim. Akira soltou um suspiro exagerado e passou direto por mim. Justificadas ou não, suas reclamações pareciam sinceras. Me sentindo um pouco preocupado, apressei o passo para acompanhá-la.
— Então, hum… você vai ficar bem? — perguntei.
— Fala alguma coisa — ela exigiu, sem desviar os olhos do caminho. — Qualquer coisa. Só fala. Esse silêncio tá me deixando ansiosa.
— Ah, c-claro…
Essa era uma tarefa meio complicada para alguém como eu. Sobre o que poderíamos falar, sendo que tínhamos tão pouco em comum? Ah, certo. Pensando nisso…
— Ei — comecei. — Você acha que a gente pode ser, sei lá… parentes distantes ou algo assim? Provavelmente não, né?
— Hã? — Akira arregalou os olhos. — Mas que diabos você tá falando?
— Bom, eu tava pensando nisso ontem… já que parece que só nós dois não fomos afetados pelo fenômeno. Devemos ter alguma coisa em comum, né? Ou talvez não…
— Hm. Entendi onde você quer chegar… — Akira levou a mão ao queixo e ficou pensando. — Mas acho que minha mãe nunca mencionou a gente ter parentes em Tóquio.
— E eu não acho que temos família aqui em Hokkaido… Então, é, sei lá.
O que mais poderia ser? Nossas mães tinham o mesmo nome de solteira? Nascemos exatamente no mesmo momento? Ou na mesma cidade? Nossas famílias se mudaram na infância?
Começava a parecer que eu só estava tentando puxar qualquer conexão possível. Mas, no mínimo, podia dizer com uma certa segurança que não éramos parentes de sangue. Soltei um longo “hmm” enquanto tentava pensar em outras ligações que pudéssemos ter.
— É, quer dizer… esse tipo de coisa acontece de vez em quando em filmes — comentei. — Onde os dois protagonistas acabam descobrindo que são parentes secretos ou algo assim. Mas não é muito realista.
— Então você gosta bastante de filmes? — Akira perguntou.
— Hã? Ah, não sei… Acho que não vi mais filmes do que uma pessoa comum. Mas gosto bastante, pelo menos… E você?
— Acho que sou bem na média também. Mas odeio filmes de terror.
— Ah é? Por quê, muito assustadores pra você?
— Opa, peraí. Você não tá me chamando de medrosa, né? Porque, se tiver, eu te mato.
Eita! Tá bom, então! Eu só perguntei por curiosidade, não quis insinuar nada, então essa ameaça foi completamente desnecessária.
— Não, é porque meus pais me fizeram assistir um filme do Resident Evil quando eu era criança, e fiquei traumatizada — ela explicou, chutando uma pedrinha. — Agora não consigo lidar com sangue. Tipo, de jeito nenhum. Mas, mesmo sem a parte nojenta, nunca entendi o apelo. Por que alguém ia querer gastar o próprio tempo livre levando susto de algum monstro aleatório? Fã de terror é tudo burro.
— Hm… sei lá — refleti. — Talvez seja um jeito de superar ou, pelo menos, substituir esses medos através da exposição.
— Como assim, substituir?
— Bom, tipo aquele filme que te traumatizou… experiências muito assustadoras ou desagradáveis tendem a ficar presas na nossa memória, né? Às vezes, quando acontece algo muito ruim e a pessoa quer esquecer aqueles sentimentos negativos, o melhor jeito de se livrar disso é passar por outra experiência igualmente assustadora, super triste ou que te deixa com uma sensação ruim. Nesse sentido, até mesmo filmes que evocam emoções negativas podem ser o remédio perfeito, pelo menos para algumas pessoas.
A melhor forma de escapismo, afinal, era se imergir no mundo de uma história envolvente — fosse um filme de terror que quase te matava de susto, um mangá com um final deprimente ou um romance tragicamente belo que deixava uma marca profunda em seu coração. Qualquer coisa que ajudasse a afogar a dor. Se algumas pessoas só conseguiam apagar uma memória desagradável com outra, talvez buscassem ativamente sensações como medo ou sofrimento dentro do ambiente seguro da ficção. Suponho que fosse algo semelhante à estranha sensação de segurança que algumas pessoas alegavam sentir ao se automutilar.
— Isso não faz o menor sentido — disse Akira, ignorando completamente o que eu tinha dito. — Por que alguém escolheria substituir um trauma por emoções negativas em vez de positivas? Era só assistir a um show de comédia ou algo assim e rir por algumas horas até esquecer, se estivesse tão desesperado.
— Hã… Não sei se a comédia funcionaria para todo mundo.
— Então vai assistir seu YouTuber favorito ou algo do tipo. Tanto faz.
— Mmmmm… — Senti que ela estava perdendo o ponto da questão, mas não sabia bem como explicar.
— Sempre que quero esquecer algo ruim, coloco uma playlist com todas as minhas músicas favoritas. Música é muito mais confiável do que um filme que você nunca viu antes. Dá pra mudar seu humor completamente em poucos minutos.
— J-Justo. Acho que isso também funciona.
— E você? Tem alguma banda favorita?
— Não exatamente, eu acho.
— E gênero musical? Sabe o que é rock alternativo?
— Uhhh… Não, desculpa. Eu não escuto música.
— Ah. Bom então.
Esse foi o "Bom então" mais decepcionado e julgador que já ouvi. Estava cada vez mais óbvio o quão incompatíveis nossos gostos e valores eram — e Akira provavelmente estava pensando exatamente o mesmo. Nossa jornada mal tinha começado, e eu já sentia que o caminho à frente seria longo.
Chegamos a um cruzamento. Mesmo com o tempo parado, ainda atravessamos a rua instintivamente quando o sinal de pedestres estava vermelho. Ao passarmos por um restaurante de yakiniku, um cheiro tentador e salgado fez cócegas no meu nariz. Engraçado como ainda conseguíamos sentir cheiros durante a paralisação do tempo — o que fazia sentido, se pensarmos que cheiros nada mais são do que partículas suspensas no ar que inalamos. Mas essa lógica não explicava como a luz ainda funcionava.
Quando olhei para o sol, ele estava tão brilhante como sempre. Mas, se o tempo estava parado, então os fótons também deveriam estar congelados, certo? A conclusão natural seria que o mundo deveria estar mergulhado em total escuridão — então por que ainda estava claro? E não era só o sol; lâmpadas e outras fontes de iluminação artificial também brilhavam normalmente. Será que coisas com propriedades ondulatórias não eram afetadas pela paralisação do tempo?
— O que mais você tem? — perguntou Akira.
— Hã?
— Pensa em outro assunto. Qualquer um — só continua falando. Não fica calado de repente.
— De-desculpa, não foi minha intenção.
De qualquer forma, os detalhes da mecânica por trás da paralisação do tempo provavelmente continuariam um mistério para mim. Por enquanto, meu esforço mental seria melhor gasto tentando entreter Akira e evitar que seu humor piorasse. Pelo tom da voz dela, dava para perceber que já estava ficando irritada de novo. Mas a grande questão era: sobre o que poderíamos conversar? Certamente havia algo, mas quanto mais eu tentava pensar em temas que pudessem interessar a ambos, mais percebia que tentar me conectar com ela talvez fosse um esforço inútil. No fim, decidi simplesmente perguntar qualquer coisa aleatória que viesse à minha mente, por mais banal que fosse.
— Hã… Qual é sua comida favorita? — perguntei.
— Sushi — ela respondeu.
— Ok, e qual tipo de sushi você mais gosta?
— Ouriço-do-mar.
— O que, hum… O que você mais gosta no ouriço-do-mar?
Akira me encarou como se fosse me devorar vivo.
— Tá de brincadeira comigo, idiota?! Que tipo de pergunta é essa?! Quem faz esse tipo de pergunta?! Como você pode ser tão ruim nisso?! Eu já vi crianças de escola primária com habilidades sociais melhores que as suas! Meu Deus, você é um idiota!
Ela despejou os insultos com tanta força que meus ouvidos chegaram a zumbir.
— Ok, ok! Desculpa, tá bom?! — me desculpei desesperadamente.
Nunca na vida eu tinha sido alvo de um ataque verbal tão desproporcional. Ela até me chamou de idiota duas vezes na mesma frase. Mas eu não estava tentando irritá-la de propósito! Ela mesma disse que não se importava com o assunto, mas essa abertura só dificultou ainda mais encontrar algo decente. Admito que concordei com ela que a pergunta sobre o ouriço-do-mar foi péssima.
Akira suspirou como se estivesse tentando se acalmar e então me olhou com um olhar gelado.
— Você não tem muitos amigos, né, garoto?
— Urgh…
— Provavelmente foi muito zoado na escola, né?
— Urrrgh.
Suas palavras atingiram fundo. Ela acertou em cheio.
— Nem me surpreende — continuou. — Desde a primeira vez que te vi, senti essa vibe de solitário depressivo. Você não parece ser o tipo que se encaixaria na escola.
Essa última parte me atingiu como uma faca no peito. Eu conseguia lidar com insultos baratos como "idiota" e "solitário", mas insinuar que eu não pertencia a um lugar onde qualquer pessoa normal deveria pertencer foi um golpe bem mais forte. Parei de andar e encarei o chão.
Akira deu mais alguns passos antes de perceber e se virar. Cruzou os braços e inclinou a cabeça para o lado, entediada.
— O que foi? Vai fazer birra agora?
— Não. Tô bem. Não se preocupa.
— Tá vendo? Aí está de novo. Será que dá pra parar com essa de "estou super chateado, mas vou fingir que tá tudo bem"? Tá me irritando de verdade.
Senti o sangue subir à cabeça. Cerrei os punhos e levantei o olhar.
— Bom, se você quer tanto saber… Eu só tô curioso pra entender por que diabo — digo, por que raios você insistiu que eu viesse junto, se eu te irrito tanto. Você não podia simplesmente ter ido para Tóquio sozinha?
Pelo jeito que gaguejei no meio da frase, ela deve ter percebido o quanto era raro eu me irritar com alguém. Mas, naquele momento, eu nem precisava de um espelho para saber que meu rosto devia estar bem vermelho. Akira, por outro lado, apenas me olhava com seu olhar indiferente de sempre.
— O que quer dizer com por quê? É porque essas coisas sempre são mais fáceis com um companheiro de viagem, óbvio. E além disso — ela disse, desviando o olhar — você só se interessa por garotos, certo?
— Como é?
— Aquele cara que você tentou tocar ontem era um dos outros garotos da sua escola, não era? Digo, sem julgamentos! Você pode gostar de quem ou do que quiser. Só imaginei que, se você não tem interesse em garotas, talvez fosse uma pessoa segura para viajar junto, sabe?
Demorei alguns momentos para processar o que Akira estava dizendo. Pelo "cara que eu tentei tocar", presumi que ela estivesse falando do Nagai. E parecia que ela tinha visto aquilo e chegado a uma conclusão muito precipitada e errada sobre a minha orientação sexual.
— Você só pode estar brincando… — murmurei, deixando meus ombros caírem tanto que as alças da minha mochila quase escorregaram. Era uma suposição tão absurda que eu nem conseguia ficar irritado.
Akira me olhou sem expressão.
— Espera. Eu estou errada?
— Sim. Não me interesso por garotos, se é isso que você está insinuando.
Ela ficou boquiaberta — completamente chocada com essa revelação.
— Não pode ser. En-então isso não vai funcionar, afinal!
Eu não fazia ideia do que exatamente "não ia funcionar" por causa dessa pequena correção, mas ela deu um passo para trás e se encolheu um pouco. Era a mesma postura defensiva que tinha assumido quando me aproximei dela na estação. Aparentemente, o simples fato de eu não ser gay me tornava, aos olhos dela, alguém de quem se precaver novamente. Era exaustivo ser tratado como um completo estranho de novo depois de já termos passado várias horas juntos.
Mas, como duvidava que conseguíssemos superar isso de outra forma, achei melhor ser sincero e explicar um pouco sobre minha condição. Talvez isso a ajudasse a entender que eu não representava uma ameaça e a fizesse baixar a guarda, pelo menos um pouco.
— Ah, uh... Só para deixar claro, não é como se eu tivesse um interesse especial por mulheres também. A verdade é que—
Foi então que uma lembrança horrível invadiu minha mente. Mãos incontáveis. Risadas zombeteiras. O sorriso do professor.
Aquele dia na aula de educação física. A dor de estômago.
O telhado.
Era uma memória incoerente, rabiscada violentamente em um giz de cera negro — uma lembrança que sempre surgia aleatoriamente de algum canto escuro da minha mente para me corroer, por mais que eu tentasse esquecê-la. Aqueles dias infernais no ensino fundamental começaram quando tentei falar abertamente sobre minha condição com meu professor.
Mordi forte o interior da bochecha.
Não, isso era diferente. Não estávamos na escola agora, e Akira não era minha professora nem minha colega de classe. Não havia realmente nada a perder se ela soubesse disso. E mesmo que eu não contasse, mais cedo ou mais tarde ela acabaria descobrindo ao longo da viagem.
— Eu não consigo lidar com o toque de outras pessoas — declarei firmemente. Akira franziu a testa, confusa.
— E não é porque eu sou germofóbico ou algo assim. É simplesmente o ato físico de tocar outra pessoa. Consigo tocar insetos e animais sem problemas... Mas, literalmente, não consigo tocar outras pessoas. Então, sim, hum... Se a sua preocupação é ser assediada fisicamente ou algo do tipo, não precisa se preocupar com isso.
Soltei um leve suspiro antes de continuar.
— E sim, você está certa ao dizer que eu não me encaixo na escola. Nunca consegui me aproximar de ninguém por causa dessa condição... Bom, talvez minha aura de solitário melancólico também tenha algo a ver com isso.
Não consegui evitar um toque de autodepreciação no final. Mas agora que eu havia explicado tudo, voltei a caminhar. A decisão era dela se iria acreditar ou não em mim. Se quisesse cancelar a viagem ou viajar separada de mim, era escolha dela — mas, com ou sem ela, eu preferia continuar indo para o sul a voltar para Hakodate sem motivo algum.
Em poucos segundos, ouvi passos apressados atrás de mim. Akira correu até me alcançar, acompanhando meu ritmo. Ela lançou um olhar furtivo na minha direção antes de voltar a olhar para a estrada à frente.
— Qual é a sua comida favorita? — perguntou.
— Hã?
— O quê?! Só estou te perguntando a mesma coisa que você me perguntou! Não é justo se só eu tiver que responder. Você tem que me contar mais sobre você também.
— Claro, tudo bem.
Aparentemente, ela decidiu continuar a viagem comigo, pelo menos por enquanto. Fiquei levemente aliviado ao saber que ela me deu o benefício da dúvida.
— Minha comida favorita, hm...? — Pensei por um instante. — Acho que seria karaage.
— Uau, que resposta mais sem graça e genérica...
— Foi você quem perguntou... Acho que só gosto de frango frito, desculpa.
— Eu também gosto, obviamente... Mas eu prefiro zangi a um simples karaage qualquer dia.
— Zangi...? Isso é tipo... frango frito ao estilo de Hokkaido?
— O quê?! Você nunca ouviu falar?!
— Não, desculpa. Quer dizer, eu conheço o Zangief do Street Fighter, mas...
— O que diabos é Street Fighter...?
Continuamos conversando fiado enquanto caminhávamos pela costa. Sempre que eu cansava de falar e ficava em silêncio, Akira dava um jeito de puxar outro assunto para me fazer continuar a conversa.
Repetia esse ciclo, uma e outra vez.
Meu relógio de pulso marcava 20h. Naturalmente, como o tempo estava parado, o céu ainda brilhava como se fosse meio-dia — mas eu estava tão cansado que isso pouco me importava. Nem eu nem Akira falávamos nada fazia quase uma hora. Mesmo com várias pausas ao longo do caminho, havíamos caminhado praticamente o dia inteiro.
Meus joelhos estavam doendo, e eu sentia bolhas se formando na sola dos pés a cada passo. Já fazia um tempo que eu pensava em parar para dormir, mas não víamos um hotel ou pousada há muito tempo.
E foi assim que acabamos parados em frente a uma lojinha de conveniência, sem a menor ideia do que fazer.
— Tão cansada... Não acho que consigo dar mais um passo… — Akira reclamou, desabando em um banco do lado de fora da loja enquanto eu dava uma olhada lá dentro.
O interior da loja parecia exatamente com aquelas antigas lojas de doces que eu já tinha visto em animes como Chibi Maruko-chan. Atrás do balcão, uma senhora de rosto enrugado estava de pé, sorrindo de forma firme, como se estivesse enraizada ali há décadas. E, para minha surpresa, nos fundos da loja havia alguns fliperamas antigos — só de vê-los, meu senso infantil de maravilha foi despertado. Se o tempo não estivesse congelado, talvez eu até gastasse alguns minutos jogando.
Mesmo assim, peguei meio litro de água e alguns blocos de Calorie Mate, somei o total e deixei o pagamento próximo ao caixa. Água engarrafada era um recurso essencial para nós no momento, já que não havia água corrente disponível.
Ao sair da loja, fui recebido por uma vista panorâmica deslumbrante do Mar do Japão, tão próxima que, se o tempo não estivesse congelado, o som das ondas certamente poderia embalar alguém para dormir. Admito que já estávamos caminhando há horas por falésias e litorais igualmente belos, então o fator uau da paisagem já tinha perdido um pouco do impacto para mim.
— E agora, o que a gente vai fazer? — perguntou Akira.
— No pior dos casos, acho que podemos nos instalar em uma dessas casas para passar a noite — respondi, sentando-me no outro lado do banco e guardando minha água e os blocos de Calorie Mate na mochila.
Akira me olhou como se eu tivesse sugerido um assalto. Essa era exatamente a reação que eu esperava; eu também não queria recorrer a isso, a menos que fosse a última opção. Mesmo com o tempo parado e sem risco real de sermos pegos, algo dentro de mim se recusava a passar a noite na casa de um desconhecido. Tecnicamente, poderíamos dormir ao ar livre, mas sem uma cama de verdade, nossos corpos não aguentariam por muito tempo essa jornada cansativa. Além disso, estávamos perto do oceano, e a temperatura estava fria demais para dormir sem ao menos um cobertor para evitar que pegássemos um resfriado.
— É… não sei o que fazer… — murmurei. — Imagino que você também não conheça bem essa área, né?
— Nem um pouco — respondeu Akira. — Talvez tenha passado por aqui uma ou duas vezes de carro quando era pequena… Mas não ache que eu sei tudo sobre Hokkaido só porque moro aqui.
— Ce-certo, desculpa…
Encostei-me no banco e olhei para a costa. Atrás de uma pequena colina, algumas casas despontavam no horizonte. Talvez conseguíssemos encontrar algum lugar para ficar por lá se avançássemos um pouco mais — mesmo que não fosse um hotel ou algo parecido. Eu até estaria disposto a dormir em uma casa de banhos pública a essa altura. Mas, ao mesmo tempo, a ideia de andar até lá e não encontrar nada era tão desmotivadora que meu corpo inteiro parecia virar chumbo.
Fiquei sentado ali, incapaz de me levantar, até que, de repente, notei um poste de luz na estrada inclinada que levava para o interior. E, nele, havia uma pequena placa de sinalização.
PRÓXIMA À ESQUERDA: 100 METROS ATÉ…
— Oh — murmurei.
— O quê?
— Acho que encontrei um lugar para a gente ficar…
— Sério?! Onde?!
Respondi com hesitação ao entusiasmo dela.
— Uma escola primária.
*
Era uma escola pequena e compacta, com dois andares, que parecia mais um centro comunitário do que uma instituição de ensino. Não conseguíamos ver o interior do prédio do lado de fora do portão principal, mas, sendo um dia útil, presumimos que as aulas estivessem acontecendo.
— Tem certeza de que quer passar a noite aqui? — Akira perguntou, hesitante.
— Quer dizer… não sei. Imaginei que pelo menos o consultório da enfermaria teria algumas camas livres…
Agora que estávamos diante da escola, ambos começamos a hesitar. Era óbvio que escolas eram lugares de aprendizado, não alojamentos, e ficar ali parecia ainda mais errado do que se hospedar sem permissão em um hotel. Akira fez uma expressão indecisa e soltou um gemido, mas acabou dando um passo à frente, entrando no pátio.
— Bem, já que viemos até aqui… Não faz sentido voltar atrás agora.
— É, faz sentido — respondi, seguindo-a pelo portão principal.
Nos deixamos entrar pela entrada principal e fomos imediatamente recebidos por fileiras de armários cheios de sapatos. O corredor estava vazio, mas era evidente que havia alunos na escola.
Tiramos os sapatos e entramos no prédio, pegando alguns chinelos internos do tamanho adulto que a escola deixava para visitantes. A enfermaria provavelmente ficava no primeiro andar — e, como o prédio não era muito grande, não demoraríamos para encontrá-la.
— Parece que estamos quebrando todas as regras agora — Akira sussurrou, mas havia um toque de diversão travessa na voz dela.
Depois de andarmos um pouco pelo corredor, logo avistamos a placa com os dizeres ENFERMARIA. Akira, que estava na frente, tomou a iniciativa e abriu a porta lentamente. Não que houvesse algum problema em fazer barulho, mas eu entendia o nervosismo dela.
Ao entrarmos na sala, suspirei de alívio ao ver que não havia ninguém lá dentro. Havia exatamente duas camas no fundo da sala — ambas vazias. Akira largou a mochila no chão e se jogou de cara em uma delas.
— Ughhhhh… tô tão pronta pra apagar… — gemeu, esparramando os membros preguiçosamente enquanto afundava o rosto no travesseiro. E permaneceu ali, de bruços, como se suas energias tivessem simplesmente acabado.
Peguei minha garrafa de água, toalha e escova de dentes da mochila e saí pelo corredor. A caminho do banheiro, passei por uma sala de aula com a placa 2º ANO, TURMA 1. Dei uma espiada pela janela e vi cerca de vinte crianças pequenas sentadas obedientemente em suas carteiras, ouvindo o que parecia ser uma aula de matemática. Rapidamente desviei o olhar e continuei andando.
Eu não guardava boas lembranças do ensino fundamental — ou da escola em geral, para falar a verdade. Para alguém como eu, que não suportava contato físico, ir à escola era como ser jogado em uma zona de guerra. Era um pandemônio, perigoso, e eu não tinha para onde fugir. As coisas tinham melhorado um pouco desde que entrei no ensino médio, mas ainda assim, estar em sala de aula sempre me deixava sufocado.
Cheguei no banheiro dos meninos. Usando um pouco da minha água mineral, lavei o rosto e escovei os dentes. Eu realmente queria tomar um banho também, mas teria que me contentar com isso por hoje à noite.
Ao voltar para o consultório da enfermeira, encontrei Akira sentada na beira da cama, olhando pela janela. Olhei por sobre seu ombro e vi um grupo de crianças usando camisetas de manga curta jogando futebol no campo lá fora. Mesmo congelados do jeito que estavam, eu ainda conseguia perceber pela linguagem corporal deles que estavam todos muito envolvidos no jogo.
— Parece aula de educação física, talvez? — disse enquanto me sentava na minha cama, ouvindo as molas rangeerem sob meu peso. Akira tirou as chinelas e se virou para me encarar, sentando-se de pernas cruzadas.
— O que você quer dizer com talvez? O que mais poderia ser além de aula de educação física?
— Bem, é... Eles não estão usando uniforme de educação física.
— Uniforme de educação física? — ela repetiu para si mesma, mordendo as palavras como se fossem de um idioma estrangeiro. Então seus olhos brilharam e ela soltou um suspiro cansado de compreensão. — Ah, é. Não temos isso em Hokkaido.
— Espera, você está brincando. Sério?
— Sério. Por que eu mentiria sobre algo assim? Eles simplesmente deixam a gente usar o que quiser.
Hã. Eu não sabia disso. Foi um pouco um choque cultural.
— Ah, e a gente também não tem aquelas mochilas de couro vermelhas — ela acrescentou.
— Caramba, sério?
— Bem, eles até podem emprestar uma quando a gente é mais novo, na escola primária, mas não nas séries mais altas. Aqui é mais frio, o que significa que temos que nos agasalhar no inverno, e não temos o mesmo alcance de movimento nos ombros e tal. Então, quando chegamos no quarto, quinto e sexto ano, e já estamos um pouco maiores, geralmente temos que usar algo mais largo, como uma mochila normal ou mochila de costa.
— Puxa, isso é legal. Parece até meio progressivo, na verdade.
— Ha. Como se fosse. Eles simplesmente não querem nos dar nada de graça, só isso. A gente não tem nada aqui em Hokkaido, por mais absurdo que tudo seja. Embora eu acho que isso meio que dependa de onde você mora exatamente.
Hakodate não parecia muito rural para mim, mas parecia que Akira achava que era pequeno demais e carecia de comodidades modernas para o seu gosto. Eu meio que invejava esse sentimento.
— Ah, e vocês realmente fazem esqui na aula de educação física também? — perguntei.
— Nah, é um mal entendido comum — ela disse. — Talvez em Sapporo ou Asahikawa, mas definitivamente não na minha escola.
— Hã. Interessante...
— Ah, mas geralmente a gente faz uma pista de patinação no gelo no pátio da escola quando começa a esfriar.
— Espera, sério?!
— Você é fácil de impressionar, né? — Akira balançou a cabeça.
— Co-como exatamente vocês fazem uma pista de patinação?
— Temos uns caminhões que pulverizam água no chão. Espera algumas horas para congelar, depois repete algumas vezes, e pronto. Feito.
— Uau... Isso é insano para mim. Nem consigo imaginar patinando no gelo na escola... Não que eu tenha ido alguma vez.
Foi bem difícil para mim imaginar isso. Quando estava na escola primária, até um pouco de neve era o suficiente para fazer todo mundo pirar.
— Espera, sério? — disse Akira. — As pessoas não vão patinar no gelo em Tóquio?
— Não, eu tenho certeza de que a pessoa média já foi pelo menos uma ou duas vezes. Sou eu que nunca tentei…
Imediatamente percebi que talvez eu não devesse ter dito isso e me arrependi. Foi um pouco embaraçoso admitir tão prontamente o quanto eu era inculto e inexperiente. Mas Akira não pareceu ligar muito para isso.
— Nossa, que chato — ela disse. — Quer dizer, qual é o sentido do inverno se você nem pode patinar? Só ser frio e miserável?
— É realmente tão crucial assim? — perguntei.
— Bem, você pode tentar por si mesmo quando tiver a chance. Não é nada demais — ela soltou um grande bocejo. — Ah, tô com sono... Acho que vou indo.
Olhei para o meu relógio. Eram 21:00 — um pouco cedo para dormir, pelo meu padrão, mas a gente tinha caminhado tanto hoje que estava tão cansado e pronto para dormir quanto ela. Akira se levantou, segurou a cortina que dividia nossas camas e me olhou com os olhos semicerrados.
— Não fique espiando, senão eu te arrebento — ela disse.
— Não estava planejando… — respondi, e ela puxou a cortina.
Tirei meu relógio de pulso e coloquei no bolso da calça para que continuasse marcando o tempo enquanto eu dormia. Pendurei meu casaco na estrutura da cama e me deitei. No momento em que me deitei, uma onda de sono e cansaço me tomou de dentro para fora. Caminhamos mais de trinta quilômetros só hoje, e minhas pernas já sentiam como se fossem quebrar. Meus ossos e músculos doíam.
Talvez eu devesse tentar aliviar o peso da minha mochila amanhã.
As luzes acima estavam um pouco fortes, mas nada que me impedisse de adormecer — e eu estava com preguiça de levantar novamente para apagá-las. Além disso, não era como se deixá-las acesas fosse aumentar a conta de energia da escola nesta situação… Na verdade, seria possível apagá-las agora, caso eu fosse até o interruptor?
...Enfim, no momento, eu realmente não estava nem aí.
*
Eu olhava para as costas angulosas de um homem sentado em um banquinho, pintando um quadro. Seus ombros estavam salpicados de caspa. A cada pincelada que ele dava na tela, eu via os flocos caírem como neve no chão enquanto seus músculos das costas se moviam e se contorciam em busca da curva perfeita. Eu estava ali sentado há umas duas horas, apenas abraçando meus joelhos e assistindo ele pintar.
De onde estava, sentado no chão atrás dele, o quadro parecia pouco mais que manchas de azul sólido espalhadas pela tela. Mas, ao olhar mais de perto, eu conseguia ver que havia um tipo de gradiente deliberado, uma espécie de regularidade. O uso de cores dele era tão fino e suave que eu me sentia estranhamente relaxado só de olhar para o fundo que ele estava lentamente construindo para o que quer que esse quadro fosse no final.
Ele deixou o pincel de lado e tirou o celular do bolso. Era um flip phone — ou um telefone burro, como se dizia — de algumas gerações atrás. Depois de abrir e ficar olhando a tela por um tempo, ele guardou o celular de volta no bolso e se virou para me encarar. O rosto dele estava marcado pelo estresse e pelas rugas que não combinavam com sua idade. As bochechas estavam emagrecidas, e havia círculos escuros abaixo dos olhos.
Ele era meu tio Kurehiko.
— Disseram que eles vão te pegar daqui a uma hora mais ou menos — ele me disse. — Não é ótimo? Você finalmente vai poder voltar para casa.
Esse era o lugar do meu tio — um pequeno apartamento de um quarto no bairro Adachi de Tóquio. O cômodo todo estava cheio do cheiro forte da tinta à base de óleo. Alguns poderiam torcer o nariz com o cheiro químico forte, mas eu sempre gostei disso.
— Eu não quero voltar para casa — eu disse. Tio Kurehiko fez uma careta desaprovadora.
— Agora, agora. Não seja assim. Quantos anos você tem mesmo?
— Dez…
— Então você já está na metade do caminho para se tornar um adulto. E adulto não fica reclamando e agindo como criança mimada.
— Mas eu ainda sou uma criança. Sou menor de idade.
— Ah, é mesmo? Porque nenhuma criança que eu já conheci faria uma coisa tão esperta como essa.
— Tá, agora você já não tá fazendo sentido — disse, soltando um suspiro e enterrando o rosto entre os joelhos. — Eles vão só gritar comigo quando eu voltar para casa mesmo.
— Então talvez você não devesse ter vindo correndo até aqui sozinho desde o começo. Você tem sorte de eu estar em casa... Como você chegou aqui, aliás? Sei que você não pode pegar o trem.
— Eu não sei...
— Não sabe...? Bem, acho que não importa.
Meu tio cortou a conversa e voltou a pintar.
O tempo passou de forma calma e silenciosa. Eventualmente, o sol começou a se pôr e seus raios começaram a entrar pela janela oeste, tingindo o ambiente com tons dourados e de mel. De repente, ouvi o som de passos correndo pelas escadas e pelo corredor de fora, como se alguém que morasse no apartamento ao lado tivesse destrancado a porta e entrado. Presumi que fosse alguém voltando do trabalho; já era seis horas. Hora de crianças como eu estarem indo para casa. Levantei a cabeça para olhar para meu tio novamente.
— Então, você realmente acha que eu devo simplesmente ir para casa?
— O que você não quer fazer lá é a verdadeira pergunta.
— Bem, meus pais estão brigando por minha causa...
— Ah. Acho que algumas pessoas realmente não nasceram para ser pais.
— Você é o irmão mais novo da minha mãe, certo? Não pode fazer nada sobre isso?
— Receio que não. Aquela mulher me despreza.
— Então, talvez os dois se resolvam se eu simplesmente ficar aqui para sempre.
— Como você chegou a essa conclusão? Eu imagino que isso só iria piorar as coisas.
Parecia que ele estava ignorando tudo o que eu tentava dizer nesse ponto. E agora que eu havia perdido meu único aliado, me senti completamente desesperançado com relação a tudo e todos.
— Não quero mais ir a lugar nenhum — disse. — Eu odeio estar em casa, eu odeio estar na escola… Por que parece que estou sempre sob tanta pressão?
Tio Kurehiko colocou o pincel com cuidado e virou-se novamente para mim. Seu rosto cansado exibia uma expressão que eu não sabia se chamava de piedade ou diversão.
— Você não é diferente de mim, Kayato — ele disse, descendo da cadeira e se ajoelhando na minha frente, ao nível dos meus olhos. — E porque somos iguais, eu sei exatamente o que você está passando. Pressão? Não. Você está apenas com medo, meu filho. Não dos seus pais, nem da escola, mas de algo muito maior.
— Algo... maior?
— Sim, isso mesmo. Pois veja—
Ding-dong. A campainha tocou. E não muito depois, ouvi o som da maçaneta da porta do apartamento girando.
— Acho que vamos ter que deixar isso para o próximo dia — sussurrou o tio Kurehiko enquanto a porta rangia ao abrir. Olhei para ver um braço esbelto e pálido aparecer pela fresta. Mas, mesmo depois que a porta foi totalmente aberta, tudo o que eu conseguia ver era aquele braço.
Porque o braço era tudo o que havia.
O braço se esticou em minha direção, ficando cada vez maior e mais longo enquanto se deslizava pelo ar em minha direção como uma cobra de marfim. Eu congelei de medo, incapaz de mover um músculo, enquanto a serpente focou em mim e mordeu forte meu pulso — cravando seus dentes profundamente para injetar seu veneno.
*
Soltei um grito abafado e sem som enquanto me levantava da cama. Em pânico, olhei para meu pulso machucado — só para ver que estava perfeitamente bem.
Claro, era só um pesadelo, afinal.
Ainda assim, no tempo que levei para respirar aliviado, soltei um suspiro assustado — dessa vez totalmente audível. Havia uma pessoa ao lado da minha cama, vestindo um conjunto preto. Levantei lentamente o olhar e vi que era Akira, olhando para mim com olhos arregalados de surpresa.
— Caramba — ela disse. — Você realmente não estava brincando com isso, né?
Coloquei a mão sobre meu coração acelerado, por cima da roupa. Eu realmente queria que ela parasse de me assustar assim. E o que ela quis dizer com “isso”? Por que ela estava ali, em cima da minha cama?
Especialmente depois de ela ter sido a primeira a se certificar de fechar a cortina entre nós. Minha mente confusa de sono estava flutuando em um mar interminável de pontos de interrogação.
— O-O que você está fazendo aí em pé? — perguntei.
— Só queria testar uma coisa rapidinho — disse Akira.
— Testar o quê?
Inclinei a cabeça, desconfiado, e Akira, defensiva, levou o braço direito até o peito. Sua manga se puxou ligeiramente para revelar seu pulso esbelto e pálido. Por um segundo, minha mente voltou ao pesadelo que eu acabara de ter. Não havia dúvida — o braço que se estendeu para me agarrar na porta e o braço de Akira eram o mesmo. Não me diga… Ela não fez isso.
— Você me tocou enquanto eu estava dormindo...?
— Bem, eu só pensei, e se você estivesse inventando tudo isso, sabe?
Meu sangue gelou e minha consciência começou a se apagar — mas de alguma forma, consegui manter o controle. Só que agora, meu peito estava cheio de uma mistura de raiva fervente e desilusão. Eu estava completamente enojado com Akira por ter feito isso depois de eu ter explicado minha condição para ela. Levantei da cama e olhei-a nos olhos.
— Se você fizer isso de novo, essa viagem acabou — disse, na voz mais firme que consegui. — Não vou mais viajar com você se não puder respeitar meus limites.
— O-Okay, okay! — disse Akira, visivelmente surpresa com a minha firmeza incomum. — Não precisa fazer tanto drama, poxa!
— Como você se sentiria se alguém começasse, sei lá... te apalpando enquanto você dorme ou algo assim?
— Apalpando?! — Akira envolveu os braços em torno de si mesma, horrorizada.
— Isso é o quanto isso é sério para mim. Eu tô falando sério. Se você não me prometer que não vai fazer isso de novo, eu volto sem você.
— Voltar para onde?
— Isso não—
Eu tive que admitir, isso me fez pensar. Para onde eu iria voltar? Tóquio? Ou Hakodate? Não tinha certeza. Eu só disse aquilo no impulso, então não havia pensado direito. Mas agora ela estava me fazendo questionar minha própria decisão.
— O-Olha, isso não é importante — disse. — A questão é, eu preciso que você me ouça quando eu te disser para não fazer algo!
— Y-Ya, já entendi! Não vou fazer de novo, só calma, poxa… — Akira saiu para o corredor, claramente desconfortável demais para ficar perto de mim agora.
Senti uma onda repentina de autodepreciação e me joguei na cama. Quão patético eu era, sendo um garoto de dezessete anos, para perder a compostura e explodir com uma garota da minha idade só porque ela tocou em mim por meio segundo? Eu queria estar morto. Especialmente porque, quando me colocava no lugar de Akira, eu conseguia entender suas preocupações. Eu provavelmente também não acreditaria em mim se eu dissesse que tinha fobia de toque e de ser tocado por outras pessoas. E, no caso de eu estar mentindo para fazer ela baixar a guarda, e ela achasse que estava em perigo por causa disso, ela provavelmente não conseguiria dormir tranquila à noite perto de mim.
Bem, pelo menos Akira parecia ser bem cabeça-dura e de pele grossa (para o bem e para o mal), então talvez eu não precisasse me preocupar tanto com isso.
Senti uma leve dor de cabeça chegando; era cedo demais para ter esse tipo de pensamento. Resolvi adiar a introspecção e peguei minhas coisas para ir lavar o rosto no banheiro. Ao sair no corredor, meus olhos foram imediatamente queimados pela luz do sol entrando pela janela do corredor. Cara, que horas são agora...? Ah, claro. São 11:14, duh. Acho que a verdadeira questão é quanto tempo eu dormi.
Coloquei a mão no bolso e tirei meu relógio de pulso. O ponteiro das horas estava apontando para seis horas, o que significava que eu tinha dormido cerca de nove horas. Minhas pernas e ombros ainda estavam um pouco doloridos de ontem, mas meu cansaço já havia desaparecido quase todo.
A cama aqui na enfermaria na verdade era mais confortável do que a do hotel na noite anterior, acredita?
Caramba, que sonho estranhamente nostálgico, pensei comigo mesmo. Será que passar a noite em uma escola primária teve algo a ver com o motivo de meu cérebro ter escolhido me fazer sonhar que eu tinha aquela idade de novo? Mas o que será que o tio Kurehiko estava tentando me dizer no final? Ah, bem. Acho que nunca vou saber.
Depois disso, Akira e eu tomamos café da manhã juntos na enfermaria. Eu comi o Calorie Mate que havia comprado na lojinha da esquina no dia anterior, enquanto Akira comia algum tipo de pão doce que eu não sabia como ela havia conseguido e nem tinha certeza se queria saber. Comemos em silêncio. Quando já tínhamos colocado um pouco de comida no estômago, deixamos a escola primária para trás.
Depois de descer a colina, voltamos para a longa estrada costeira que havíamos pegado desde Hakodate.
Akira esticou as costas e olhou preguiçosamente para a costa.
— Tô tão cansada dessa estrada idiota...
— Quer tentar pegar outra, então?
— Espera, existem outras?
Tirei o mapa do sul de Hokkaido, que eu tinha dobrado dentro do bolso interno do meu casaco, e abri. Akira se aproximou para olhar comigo — embora eu tenha notado que ela parou antes de se aproximar demais. Ela ficou na ponta dos pés e esticou o pescoço para dar uma olhada de longe.
— Bom, estamos na antiga Matsumae Highway agora… — eu disse. — Ah, mas parece que tem outra estrada mais para o interior, se quisermos pegar essa.
— Sim, mas isso ia ser um baita desvio, né? — disse Akira. — Além disso, vai subir pelas montanhas. Vamos ser comidos vivos pelos insetos.
— Não vamos, eles vão estar todos congelados.
— Será que você podia não ser tão detalhista sobre cada coisinha?
E lá foi ela, como sempre. Eu já estava tão acostumado a ela me xingar que mal me incomodava mais. Fiquei em silêncio, esperando uma resposta real.
— Tá, tudo bem — Akira finalmente cedeu. — Acho que podemos continuar nessa estrada mesmo.
— Olha, tem uma cidade um pouco maior vindo daqui a uns vinte quilômetros — eu observei.
— Ugh... Por que tudo tem que ser tão longe? Droga, Hokkaido... É grande demais.
Depois de resmungar essa reclamação sobre sua ilha natal, Akira começou a caminhar pela estrada. Eu dobrei o mapa, coloquei de volta no bolso e a segui.
— Ah, então, eu estava pensando ontem… — Akira disse com uma voz lenta enquanto caminhava.
— É mesmo? No que?
— Como diabos a gente vai lavar roupa?
— Ah... Acho que provavelmente vamos ter que lavar tudo na mão, por mais chato que isso seja.
— Bom, sim, mas eu digo... a gente não pode nem secar as roupas depois de lavar, né?
— Hã? Por que não?
— Você tem prestado atenção nos últimos dias, garoto? A gente pode até pendurar as roupas para secar, mas elas nunca vão secar de verdade.
Levou uns três segundos para o que Akira estava dizendo fazer sentido.
— Oh, droga! Você está certa! O que vamos fazer, então...?
— Sim, era isso que eu estava dizendo, gênio.
Era o mesmo problema que eu tinha com o miojo, mas ao contrário. Por causa do efeito da pausa no tempo, nossas roupas continuariam molhadas depois de lavadas, não importa quanto tempo as deixássemos secando. Realmente era uma situação complicada.
— Bom, não podemos usar uma secadora... Ou um secador de cabelo, no caso… — eu disse. — Ah, espera! Já sei! E se a gente pegar uma daquelas varas de varal e pendurar as roupas nela, depois segurar com a mão ou usar como bengala para secar enquanto andamos?
Obviamente, não havia como saber se esse método realmente funcionaria até tentarmos, mas parecia uma boa sugestão, considerando que foi algo que pensei na hora.
— Nem a pau — disse Akira. — Não quero andar por aí com minhas roupas íntimas à mostra.
Bem, lá se foi essa ideia.
— Ok, tudo bem... Hmmm, deixa eu pensar...
Eu até entendia que não era confortável andar por aí com a roupa de baixo pendurada. Mas, por outro lado, eu não tinha muita ideia de outras opções que realmente teríamos. Fiquei pensando mais um pouco, mas eventualmente Akira desistiu.
— Tá tudo bem — ela disse. — Não é como se a gente tivesse que lavar mesmo.
— Hã? Isso não é um pouco anti-higiênico?
— Não seja burro, imbecil. Obviamente não estou dizendo para a gente usar a mesma roupa para sempre. A gente só troca elas conforme for.
— O que, tipo... usar umas roupas diferentes de vez em quando? Não acho que isso vai deixar elas menos sujas, não...
— Não, seu idiota. Eu tô dizendo que a gente pode só trocar por roupas novas.
— Oh. Então você tá sugerindo que a gente só compre roupas novas toda vez que elas ficarem sujas?
— Mais ou menos isso, sim.
Hm, interessante. Eu até via a lógica por trás disso, mas levou três segundos para eu perceber o problema crucial no plano dela.
— Eu digo, se a gente tivesse dinheiro infinito, talvez isso funcionasse — eu disse. — Mas roupa é cara, então a gente ia ficar sem grana rapidinho... Aliás, minha carteira já está ficando bem vazia.
— Sim, mas... a gente sempre pode se ajudar, se é que você me entende.
— Se ajudar...? N-Não pode ser! A gente não pode fazer isso. Você quer que a gente jogue as roupas velhas fora depois de um uso só, é isso? Eu até entendo roubar comida se for necessário, já que a gente literalmente precisa disso para sobreviver, mas se começarmos a roubar lojas de departamento também... aí já somos simplesmente saqueadores...
— Bom, qual é a sua ideia brilhante, então? Porque eu não vou passar essa viagem toda usando a mesma roupa suja, só pra avisar.
— Mmmmm...
Era um dilema difícil, para ser sincero. Mas mesmo que tivéssemos que recorrer ao que Akira sugeria, eu pelo menos queria adiar isso até não termos outra opção. Ou melhor, até que não tivéssemos. Podíamos estar presos em algum fenômeno sobrenatural agora, mas ainda precisávamos nos comportar como seres humanos civilizados, ou seríamos piores que criminosos. Mas a bússola moral de Akira parecia estar um pouco falha nesse aspecto, então a responsabilidade de encontrar uma solução ficou comigo.
Eu fiquei quebrando a cabeça até, de repente, uma ideia me ocorreu.
— E se a gente borrifasse com Febreze ou algo assim?
— Você realmente acha que isso vai funcionar?
— Talvez um pouco...?
Akira me olhou como se eu fosse o maior idiota vivo. Mas tudo bem — ainda tínhamos tempo. E eu tinha certeza de que poderia pensar em algo antes de realmente começarmos a feder.
Akira e eu continuamos trocando contra-propostas enquanto seguíamos para o sul, dedicando-nos de forma obstinada à resolução do problema das roupas sujas. Depois de quase meio dia de desvios e de nos perdermos repetidamente no assunto, finalmente chegamos a uma solução que parecia relativamente promissora. Ou, para ser mais preciso, não era bem uma solução, mas sim Akira fazendo concessões e concordando em não cometer furtos.
A ideia básica era a seguinte: tiraríamos nossas roupas sujas e as lavaríamos parcialmente, focando apenas nas partes que ficaram mais sujas ou fedidas, como ao redor do pescoço e das axilas. Depois, decididamente, não as secaríamos e simplesmente as colocaríamos de volta enquanto essas partes ainda estivessem úmidas. E só isso. Esse era o plano. Como as roupas em nossos corpos estavam perto o suficiente para não serem afetadas pela pausa temporal, elas naturalmente secariam enquanto caminhássemos. E, se a umidade fosse realmente desconfortável, poderíamos colocar uma toalha entre as partes molhadas e nossa pele ou usar uma camada extra por baixo.
Dito isso, não poderíamos simplesmente "lavar parcialmente" nossa roupa íntima da mesma maneira, então sugeri que as enrolássemos em toalhas de rosto depois de molhá-las completamente e as colocássemos de alguma forma em nossos corpos, ainda o suficiente para ficarem dentro das nossas auras. Eu pensei que, desde que fosse em um lugar que não saísse muito ou que não incomodasse, como penduradas nas bordas das nossas mochilas ou de um gancho do cinto nas calças, não seria um problema... mas aparentemente eu estava sozinho nessa.
— O quê? De jeito nenhum… — disse Akira, parecendo completamente horrorizada enquanto negava essa proposta. E então, como não conseguimos chegar a um acordo sobre as roupas íntimas, pensei que deixaria ela resolver isso da maneira que quisesse. Não era da minha conta.
Justo quando finalmente terminamos nossas deliberações sobre o problema das roupas, encontramos uma pousada japonesa tradicional de tamanho modesto. A visão reconfortante de um símbolo de onsen na parede externa fez meu coração disparar. E ainda melhor: eu podia ver uma placa de um supermercado completo logo abaixo.
— Ah, caramba! Agora sim, é disso que estou falando! — disse Akira, com os olhos brilhando, e eu assenti veementemente em concordância. Não havíamos caminhado tanto hoje quanto ontem, mas ainda assim foi uma caminhada considerável. Eu estava mais do que pronto para encerrar o dia.
Ao entrar no prédio, percebi imediatamente as cortinas penduradas indicando a área de banhos. À primeira vista, o lugar quase dava mais a impressão de um banho público tradicional do que de uma pousada no estilo ryokan. Aparentemente, os quartos ficavam no segundo andar. Não havia praticamente mais ninguém no lugar, o que fazia sentido, já que era apenas o meio da manhã em um dia de semana.
Akira e eu deixamos nossas coisas na sala de estar no primeiro andar, retiramos rapidamente os itens de higiene que queríamos levar para o banho e seguimos pelas cortinas penduradas que indicavam as áreas de banho separadas por gênero. Dava para ver que estávamos muito animados para tomar nosso primeiro banho de verdade em dois dias.
Depois de aproveitar os banhos termais por cerca de uma hora, voltei para a sala de estar, e Akira logo me seguiu. Ela estava usando o mesmo conjunto de moletom preto que usou para dormir na escola primária ontem à noite. Aparentemente, essas eram suas roupas de dormir habituais.
— Mano, que saco que não podemos nem usar um secador de cabelo… — ela resmungou, de mau humor, enquanto penteava a franja molhada para trás. Sua testa exposta estava suave e corada de calor.
— Eu sei. Uma pena — eu disse. — Vai ter que secar ao natural.
— É, eu já sei disso, valeu.
Akira se agachou para pegar sua mochila do chão, mas parou de repente, olhando para a recepção com uma postura curvada. Eu segui seu olhar e vi uma geladeira com vidro em todos os lados. Akira se aproximou e pegou uma garrafa de leite com café como se fosse dona do lugar. Levantou a garrafa e a pressionou contra a bochecha.
— Ah, mano — ela disse, deliciada. — Que sensação boa. Geladinha...
— Isso é um termo regional? — perguntei.
— Hã? O que é um termo regional?
— Shakkoi.
— Ah, sim... Não falam isso em Kanto? Significa frio, tipo, frio ao toque. Mas por que você se importa com isso? Não fica pegando no meu modo de falar, tá bom?
(N/SLAG: No japonês padrão, o equivalente seria "tsumetai" (冷たい), que é usado para descrever algo fisicamente frio ao toque (como água gelada, uma superfície fria, etc.)
— Des... Desculpa...
Eu não estava tentando interrogá-la nem nada assim, mas não consegui me controlar e pedi desculpas mesmo assim. Eu ficaria um pouco mal se ela se sentisse estranha ou autoconsciente toda vez que eu apontasse o uso normal de uma palavra do dialeto de Hokkaido.
Akira abriu a tampa da bebida e começou a beber vigorosamente. Eu podia ver sua garganta se movendo para cima e para baixo a cada gole, enquanto gotas de suor escorriam por suas têmporas. Não pude deixar de admirar sua falta de reserva. Finalmente, ela soltou a borda da garrafa com um grande suspiro satisfeito.
— Ahhh... Agora sim, acertou em cheio.
— Espera — eu disse, lembrando de repente. — Espero que você esteja planejando pagar por isso.
— Que tal você pagar, já que está tão preocupado?
— Ah, não, de novo não...
Comecei a achar que essa garota me via como nada mais que um caixa eletrônico com um bônus de consciência. Na verdade, eu havia sido quem pagou pela maioria das compras dela até agora (principalmente porque sabia que ela as roubaria de qualquer forma). Talvez eu estivesse sendo um pouco gentil demais com ela.
— O quê? Você pode me tratar de vez em quando, não pode? — disse Akira. — Aliás, por que não compra algo para beber também, enquanto está nisso?
— Não, você precisa parar com essas compras por impulso — eu disse. — Já estamos ficando sem grana, então precisamos ser o mais econômicos possível...
— Ugh, você e seus moralismos estúpidos... Não é como se a gente não fosse ficar quebrado aqui mais cedo ou mais tarde, então você podia se dar um prazerzinho. Além disso, seu cérebro precisa de açúcar para funcionar direito, sabia?
Com isso, Akira deu outro grande gole de seu leite com café. Eu tinha que admitir que parecia muito bom agora, o que tornava o argumento dela muito mais convincente. Uma garrafinha gelada de leite com café depois de um banho quente soava celestial.
E assim, meu julgamento se rendeu à tentação.
Me levantei e coloquei o valor exato das bebidas de ambos no balcão da recepção, pegando outra garrafinha de leite com café da geladeira. A garrafa gelada rapidamente esfriou minha palma ardente. Abri a tampa e dei um gole do conteúdo cremoso. Senti o líquido doce descendo minha garganta e esfriando meu corpo quente de dentro para fora. Caramba... Isso está até melhor do que eu esperava. Essa bebidazinha estava fazendo tanto para aliviar meus ossos cansados quanto um mergulho nas fontes termais.
— Viu? Aposto que você está feliz por ter seguido meu conselho agora, né? — disse Akira, com um sorriso triunfante no rosto. Sua arrogância me fez sentir uma coceira e ficar irritado por dentro, mas dei outro gole no meu leite com café de qualquer forma.
*
Agora era o terceiro dia de nossa jornada. Sim, tecnicamente, ainda era o mesmo dia, a mesma hora desde o momento em que partimos, mas já havíamos dormido duas vezes desde então, então achei justo chamar isso de nosso terceiro dia.
Continuamos para o sul pela estrada, lentamente nos aproximando de nosso primeiro ponto de referência: o Túnel Seikan. Cerca de duas horas após sairmos da pousada, a estrada — que estava seguindo a costa até então — começou a se curvar para o interior. Quanto mais nos afastávamos do oceano, mais reta a rota se tornava. Continuamos por campos e fazendas na velha estrada rural. Meu mapa, junto com os sinais ocasionais de estrada, nos ajudavam a garantir que estávamos no caminho certo.
Quando começamos a subir um pouco mais nas colinas, o céu ficou nublado, e a temperatura caiu consideravelmente. Não que tivesse havido uma mudança progressiva no tempo, é claro — só que havíamos saído de uma área ensolarada para uma onde o céu estava nublado.
— Então, quanto tempo tem o Túnel Seikan, afinal? — perguntei, distraído, enquanto caminhávamos. Como já sabia o quanto Akira odiava o silêncio absoluto, fiz questão de falar qualquer pensamento aleatório que surgisse em minha mente durante nossa jornada.
— O que, você quer dizer que você não sabe? — disse Akira.
— Não. Quer dizer, sei que é o túnel mais longo do Japão… e que não dá para passar de carro por ele, se eu não estiver enganado?
— Claro que não. É só para trens-bala. Você quer me dizer que está indo para a escola em Tóquio e nem sabe disso?
— Não acho que morar em Tóquio tenha alguma relação com isso…
Eu percebi que Akira tinha algumas ideias meio idealizadas sobre Tóquio, como se fosse uma utopia perfeita e de classe alta. Parecia até que ela acreditava que todo mundo que morasse lá fosse extremamente rico, estudando em uma escola particular de renome. Algo me dizia que, mesmo se eu explicasse para ela que também temos pessoas pobres e áreas rurais, ela provavelmente ignoraria e agiria como se eu estivesse tentando enganá-la.
Não sabia se ela tinha sido condicionada a pensar assim pela TV e redes sociais ou algo do tipo.
— Você sabe quanto o túnel tem de comprimento, então, Iguma-san? — perguntei.
— Claro que sei — respondeu ela. — Quem mora por aqui sabe.
— Hum, não sei se acredito nisso…
Ela estava claramente me enrolando.
— É, deve ter uns vinte quilômetros de comprimento, mais ou menos?
— Mais ou menos…? — disse eu. — Parece que você também não sabe direito.
— O que você espera? Não é como se eles ensinassem isso na escola.
Então por que diabos você foi tentar me zoar por não saber…?
Para ser justo, parecia que o túnel devia ter algo em torno de vinte quilômetros, só de olhar a distância entre as ilhas no mapa. Talvez um pouco mais, se as entradas ficassem um pouco mais afastadas do litoral.
— Ah, olha isso — disse Akira, apontando para a estrada. Lá na frente, havia uma placa indicando TÚNEL SEIKAN, SAÍDA NORTE.
— Já? — disse eu, incrédulo.
Eu estava praticamente certo de que seria muito, muito mais longe da costa. Akira também parecia surpresa. Decidimos seguir pela placa, e um pouco mais à frente, encontramos uma pequena torre de observação de madeira. Subimos as escadas e fomos recebidos com uma vista panorâmica dos trilhos de trem que iam em linha reta até um grande túnel à frente. Esse, aparentemente, era a saída norte do Túnel Seikan.
— Caramba… Então é isso, né? — Akira murmurou, sem muita empolgação.
Descemos de volta pelo mesmo caminho e continuamos pela estrada em direção ao túnel. Enquanto caminhávamos em silêncio, uma sensação estranha começou a surgir no meu estômago. Se a entrada estava realmente tão próxima do que esperávamos, então o túnel provavelmente era bem mais longo do que imaginávamos. Akira também estava quieta, o que me fez achar que ela também estava pensando a mesma coisa. Porque o comprimento total do túnel definitivamente determinaria o quanto precisávamos estar preparados.
Decidimos fazer uma pausa rápida e parar em uma estação rodoviária próxima. Lá, aproveitaríamos para usar os banheiros e, quem sabe, pegar alguns mantimentos. Quando chegamos e entramos no grande edifício de um andar, fomos recebidos por uma grande exibição de produtos frescos e locais. A loja também vendia uma variedade enorme de lanches, refeições prontas e bebidas.
Enquanto Akira se dirigia diretamente para o corredor de doces, eu fui para a seção de bebidas para pegar algumas garrafas de água. No caminho, percebi um rack cheio de brochuras e panfletos de viagem mais à frente. Peguei um que estava escrito SEIKAN TUNNEL na capa, o que me deixou curioso o suficiente para ir até lá e pegar um. Abri a primeira página, que estava cheia de informações básicas e curiosidades sobre o túnel. Aparentemente, ele até era um pouco uma atração turística para quem morava na região.
— Espera, o quê?! — exclamou eu, com os olhos fixados em um dado específico.
Akira correu até mim, assustada com minha reação.
— Ei, o que aconteceu?
— Acho que você deveria dar uma olhada nisso.
Ela pegou uma cópia do mesmo panfleto e deu uma rápida olhada. Eu observei, esperando que os olhos dela se arregalassem de surpresa.
— Ah, não acredito! — ela finalmente disse. — Tem mais fontes termais por aqui?
— Não, olha a página da direita.
— O quê, tudo aquele conteúdo chato?
Ela revirou os olhos e olhou de novo para o panfleto — mas não demorou muito para ela soltar um suspiro de surpresa, como se tivesse entendido o que eu queria dizer.
— Espera — disse ela. — O túnel tem na verdade cinquenta e três quilômetros de comprimento…?
Sim, aquele era o verdadeiro comprimento do túnel: 53,8 quilômetros, para ser exato.
Mais do que o dobro do que imaginávamos. Só posso supor que a estimativa inicial de Akira de vinte quilômetros tenha sido baseada na distância subaquática entre as duas ilhas, que foi o erro básico que eu também cometi. Mas na realidade, as entradas do túnel em Hokkaido e Honshu estavam bastante afastadas do litoral.
— Caramba, isso é muito… Quanto tempo levaria para a gente andar tudo isso? — Akira perguntou.
— Bem, conseguimos cobrir uns trinta quilômetros anteontem, então… talvez uns dois dias?
— Tá de brincadeira?
Akira estava praticamente tremendo de medo. Não dava para culpá-la — a ideia de caminhar por dois dias inteiros em um túnel escuro era realmente intimidadora. Mesmo que fosse tecnicamente possível, seria necessário um monte de energia e resistência. Akira agora estava completamente quieta. Eu pude ver uma ponta de angústia começando a tomar conta de sua expressão.
— Você quer desistir? — perguntei. Não era como se precisássemos ir para Tóquio ou qualquer coisa; poderíamos simplesmente ficar em Hokkaido.
— De jeito nenhum — ela disse imediatamente. — Já viemos até aqui, então não podemos voltar agora. Vamos ter que continuar.
— Ok, mas e quanto ao banheiro? Não acho que vai ter onde a gente se aliviar no caminho…
— A gente segura.
— Eu acho que vai ser bem difícil segurar por dois dias inteiros…
Akira ficou quieta novamente e olhou para o chão. Ela pode não ter um plano concreto em mente, mas eu sabia que a decisão dela estava tomada, e ela estava determinada a seguir em frente. Só pelo que eu já sabia sobre sua personalidade, eu não tinha a impressão de que ela fosse desistir depois de ter decidido algo.
Eu parei um momento para refletir, então dobrei o panfleto e enfiei no bolso do meu casaco.
— Passamos por uma loja de ferramentas na estrada há cerca de uma hora. Vamos voltar lá primeiro para nos equipar antes de seguir. Tenho certeza de que esses lugares vendem kits de emergência e banheiros portáteis e afins… Ah, e provavelmente vamos precisar de lanternas também.
Akira levantou a cabeça e olhou para mim, dando um firme aceno de concordância. Ela claramente estava mais empolgada com a ideia de ir para Tóquio do que eu, mas eu queria ser, pelo menos, uma fonte de apoio e incentivo para ela, se eu pudesse. Talvez ela estivesse apenas me usando para alcançar seus próprios objetivos? Era bom ser necessário por alguém, nem que fosse uma vez.
Quando terminamos de fazer todos os preparativos para a jornada à frente, os dois já estávamos bem sonolentos e exaustos, então decidimos passar a noite na loja de ferragens. Felizmente, havia uma seção de camping com tendas montadas para exibição. Foi uma experiência de hospedagem bem única, devo admitir — mas foi tão desconfortável que mal consegui dormir uma hora sequer.
Após sairmos da loja de ferragens, seguimos de volta em direção ao túnel Seikan por uma estrada sinuosa no vale. Logo paramos embaixo de um grande viaduto. Era a linha do trem-bala elevada que nos levaria diretamente para o túnel, então seguimos o viaduto à procura de uma maneira de subir até ele. Depois de caminharmos mais alguns minutos, encontramos um andaime destinado aos trabalhadores de manutenção pendurado na beira do viaduto. Estávamos com sorte — isso podia nos levar diretamente para os trilhos. Rapidamente pulamos a cerca de PROIBIDO ENTRAR e subimos as escadas que levavam até o andaime. Havia uma escada de metal no topo, mas assim que subimos e passamos por ela, finalmente chegamos à linha ferroviária elevada.
— Caramba. Acho que finalmente chegamos, né...? — murmurei para mim mesmo.
Eu me sentia como se estivesse em uma ponte instável sobre águas turbulentas — embora fosse na verdade um viaduto sólido sobre terra firme. Se o tempo estivesse correndo normalmente agora, e um trabalhador ferroviário nos visse fazendo isso, com certeza não sairíamos com um simples puxão de orelha. Poderíamos até ser presos. Ao mesmo tempo, era uma experiência única na vida que nunca teríamos se não fosse pelo congelamento do tempo — então era uma sensação estranhamente conflitante, mas também excitante, com certeza.
— Ei, isso aqui não parece nada difícil de caminhar — disse Akira, batendo levemente o pé no chão. O viaduto era pavimentado com concreto como base, com duas linhas de trilhos cruzando-o — o suficiente para um trem ir em cada direção. Havia três trilhos em ambas as vias; de acordo com o folheto, isso era para acomodar tanto os vagões de carga quanto os trens-bala, pois cada um tem uma largura diferente das rodas.
Olhei para os trilhos e vi a enorme abertura do túnel Seikan. Akira e eu tiramos nossas lanternas das mochilas. Eram as lanternas que encontramos na loja de ferragens onde passamos a noite anterior.
Akira respirou fundo, como se estivesse se preparando para enfrentar seus nervos.
— Certo — ela disse. — Vamos fazer isso.
Estava completamente escuro dentro do túnel.
Fomos avançando aos poucos, com eu na frente. Não havia iluminação para contar, além da pouca luz que nossas lanternas ofereciam. A distância entre os trilhos era bastante estreita, então tivemos que tomar cuidado enquanto caminhávamos para evitar tropeçar nos grandes parafusos nos conectores que os mantinham no lugar. Não estava muito mais frio no túnel do que fora lá fora — embora o ar fosse um pouco mais úmido. A atmosfera do túnel parecia exatamente como eu esperava que fosse.
Quando iluminei para cima, pude ver pequenos objetos brilhando, alinhados como olhos de animais, espaçados de maneira uniforme ao longo da circunferência do túnel. Eram pequenas placas refletoras circulares instaladas nas paredes.
— Acha que já andamos muito? — perguntou Akira. Sua voz estava suave, mas surpreendentemente alta dentro do túnel — embora o eco durasse apenas um segundo antes de ser abruptamente cortado. Presumi que isso fosse devido ao efeito do congelamento do tempo.
— Provavelmente ainda não chegamos nem a um quilômetro, para ser honesto.
— Espera, sério? Ai, eu tô tão pronta pra sair daqui já…
Apesar das reclamações, Akira continuou caminhando — aparentemente bem ciente de que a única opção agora era continuar avançando.
— Você não tem nada interessante pra falar? — ela exigiu, pela quinta vez desde que nossa jornada começou.
— Não, desculpa. Já esgotei toda a minha trivia interessante…
— Mentiroso. Nenhuma dessas coisas foi interessante de verdade.
— Para mim foi. Mas cada um com seu gosto, né.
— E como a bioecologia das cigarras é remotamente interessante?
— Bem, isso faz você ponderar sobre os mistérios da vida, sabe… Como, por exemplo, como os insetos são quase mais parecidos com máquinas do que organismos e tal.
— Ughhh... Como uma pessoa pode ser tão chata? Não quero ouvir sobre insetos. Me fala qualquer outra coisa que você não tenha dito já, não importa o que seja.
— Hmmm... Algo que eu ainda não te contei, né...?
Admito, uma coisa veio à minha mente, mas não era um tópico “divertido”. Mesmo assim, achei que provavelmente seria melhor do que nada, então resolvi trazer isso à tona.
— Bem, eu li uma curiosidade interessante sobre esse túnel no folheto — eu disse. — Parece que, antigamente, quando começaram a construí-lo, as condições dos trabalhadores eram extremamente severas.
— Sério?
— Sim. Isso foi nos anos 70, então, obviamente, eles não tinham acesso às mesmas tecnologias que temos hoje. Houve muitos acidentes — desabamentos, vazamentos de água e até explosões falsas de dinamite e por aí vai. E além de já ser uma tarefa perigosa, os trabalhadores eram tratados horrivelmente, tipo escravos, disseram muitos dos sobreviventes.
Akira escutava em silêncio enquanto eu continuava.
— A maior dificuldade foi que o ambiente de trabalho era simplesmente horrível em praticamente todos os aspectos do projeto, que demorou mais de uma década para ser concluído. Houve até momentos em que os trabalhadores eram obrigados a morar no local 24 horas por dia, 7 dias por semana, sendo acomodados em barracas temporárias e baratas sempre que não estavam trabalhando. Meio que uma prática comum da época, especialmente em escavações de túneis em regiões montanhosas e afastadas. Provavelmente muita coisa ilegal acontecia, só pelo fato de ser uma comunidade de trabalho isolada do resto da sociedade.
Eu percebi que Akira estava realmente interessada nesse ponto. Para alguém tão facilmente entediada, era impressionante que ela não tivesse interrompido até aquele momento.
— As coisas eram tão brutais que muitos trabalharam até literalmente quebrar seus corpos. E se você acha que recebiam tratamento médico, está errada — eles eram forçados a voltar ao trabalho sob ameaça de violência... E se morressem no trabalho, eram enterrados ali mesmo, na hora. Dizem que alguns foram até selados dentro das paredes desse túnel.
— Ei — disse Akira.
Ah, droga. Havia veneno na voz dela, e eu sabia que ela estava brava sem nem precisar olhar para trás. Talvez eu tenha escolhido o assunto errado para falar.
— S-Sim, o que foi? — eu perguntei.
— Eu sei que eu falei literalmente qualquer coisa, mas não estava esperando histórias de terror vagabundas como essa, tudo bem?
— F-Foi mal...
— Se você contar mais uma dessas, eu te bato com essa lanterna.
A voz dela tremia ligeiramente. Havia uma espécie de sinceridade escondida atrás da frustração habitual dela. Parece que essa história realmente tinha incomodado Akira. De repente, me senti mal.
— Desculpa — eu disse, e a conversa morreu ali.
Algum tempo se passou até que Akira, hesitante, retomou o assunto.
— Então, é... Aquela parte sobre ter corpos mortos nas paredes aqui... Você inventou isso, né?
— Hã? Ah, sim... Isso mesmo.
Na verdade, era verdade, mas eu sabia que não era o momento certo para ser honesto sobre isso. Não consegui perceber se Akira acreditou na minha resposta ou não, mas de qualquer forma, ela ficou totalmente em silêncio por um bom tempo depois disso. Pensando bem, ela tinha dito que odiava filmes de terror, não tinha? Talvez ela realmente se assustasse facilmente, apesar de ter negado isso tão veementemente antes.
Ficamos em silêncio por um tempo. Ali no túnel, até o menor som se ouvia claramente nos meus ouvidos, então pude perceber que a respiração de Akira estava ficando um pouco mais errática. Talvez ela realmente estivesse assustada depois de tudo. Isso me fez me sentir ainda pior do que já me sentia.
— Ei, eu tive uma ideia — eu disse.
— É, qual é?
— Hum, você gostaria de jogar... sei lá, uma cadeia de palavras ou algo assim?
Eu sabia que essa não era exatamente a melhor forma de me redimir pela minha falta de sensibilidade, mas era a única coisa que eu conseguia pensar para distrair Akira no momento.
— Cadeia de palavras? O que somos, crianças? — disse Akira, sem humor.
Ela estava certa, para ser justo — era só um jogo simples em que você tinha que dizer palavras que começassem com a última letra da palavra dita pela outra pessoa. Eu não imaginava que houvesse muitas pessoas da nossa idade sugerindo isso como uma maneira legítima de passar o tempo, só porque estavam sem outros tópicos de conversa. Agora eu estava meio envergonhado.
— Quer dizer, acho que topo — disse Akira.
— Espera, sério? — eu disse. Não esperava essa resposta — não que eu estivesse reclamando, se isso significasse que eu não precisaria quebrar a cabeça para pensar em outro tópico de conversa.
— Ah, não precisa parecer tão surpreso. Você realmente não queria ou algo assim? Não sei por que sugeriu, então.
(N/SLAG: Como o idioma é japonês e a fonte é em inglês, a cadeia de palavras não vão fazer sentido por conta do alfabeto ser diferente kkk. Vou tentar deixar claro para vocês.)
— Não, não — quero, sim. Ok, então vou começar com o N da cadeia de palavras. Noodle (Macarrão).
— Earwax (Cera de ouvido).
— Xylophone (Xilofone).
— Equinox (Equinócio).
— Xenophobia (Xenofobia).
— Apex (Ápice).
— Er... Xanthic acid (Ácido xântico)?
— Detox (Desintoxicação).
— O quê, X de novo...? Hum... Uhhh... Xylograph (Xilografia)!
— Hex (Hex).
— Ok, podemos por favor concordar em não usar palavras que terminem com X...?
Cerca de cinco horas se passaram.
— Monochrome (Monocromático).
— Easel (Cavalete).
— Lucid (Lúcido).
— Dementia (Demência).
— Anthropomorphic (Antropomórfico).
E ainda estávamos jogando cadeia de palavras.
Não que tivéssemos jogado o tempo todo, claro. Fizemos pausas para um bate-papo ou para desviar para tangentes aleatórias, mas sempre que ficávamos sem o que conversar, voltávamos direto para a cadeia de palavras. Este já era o nosso quarto jogo. Para ser honesto, eu já estava cansado disso depois dos primeiros dez minutos — mas era um mal necessário para manter nossa sanidade.
Eu tinha que admitir, subestimei o quanto seria angustiante caminhar no total escuro por tanto tempo. Sem algum tipo de distração, o silêncio e o ambiente estranho eram o suficiente para enlouquecer qualquer pessoa. Mesmo para um cara como eu, que normalmente evita muitos dos estímulos diários do mundo exterior, isso estava sendo um pouco demais — então eu imaginei que a ansiedade de Akira devia estar no limite.
Estávamos fisicamente exaustos também. Só caminhar normalmente estava consumindo muito mais energia do que o habitual devido à visibilidade limitada, o que nos obrigava a observar nossos passos e ajustar os pés para o terreno irregular com muito mais cuidado. E eu podia perceber que essa caminhada desajeitada também estava formando algumas bolhas dolorosas nas solas dos meus pés.
— Alpaca (Alpaca) — eu disse.
— Autograph (Autógrafo) — disse Akira.
— Hedgehog (Ouriço).
— Gothic (Gótico).
— Chipmunk (Esquilo-listrado).
Silêncio.
Parece que ela estava realmente tendo que pensar um pouco mais nessa, aparentemente. Mas justo quando eu pensei que talvez a tivesse pego, ouvi um pequeno soluço. E depois um soluço abafado.
Akira estava chorando. Eu fiquei tão confuso com isso que quase tropecei e caí. A ideia de uma garota durona como ela perder a compostura nessa situação era quase impensável para mim. Ou eu estava apenas ouvindo coisas? Forcei meus ouvidos e escutei mais atentamente — mas não, era definitivamente choro. Ela parecia estar chegando ao seu limite.
O que eu faço? Devo chamar ela? Sugerir que descansemos? Ou apenas fingir que não notei? Eu não sabia nada sobre como consolar alguém nessas situações. Ainda assim, fiquei tentando pensar em algo — qualquer coisa — que eu pudesse fazer para ajudar.
— É... não tem muitas palavras que começam com K, né…? E eu acho que já dissemos a maioria das óbvias — eu disse, só para preencher o silêncio. — Vamos ver… O que mais tem? K… K… Katydid, talvez? Você sabe o que é isso? É um tipo de grilo. Normalmente, eles se camuflam para parecer uma folha… O nome vem da canção de três pulsações deles, na verdade. Ka-ty-did. O que mais? Ah... Eles são noturnos, poligâmicos… Ah, espera. Desculpa, isso mesmo. Você não gosta muito de insetos, né?
Isso não gerou nenhuma resposta de Akira. Eu estava cada vez mais sem saber o que fazer. Minha mente estava tão ocupada tentando encontrar uma solução que eu já tinha esquecido completamente da minha exaustão física.
Foi então que vi uma luz no fim do túnel — e não no sentido metafórico. Obviamente, eu sabia que não podíamos ter chegado à saída ainda. Mas havia uma fonte de luz à frente que não era nossas lanternas nem luz natural de fora. O que só podia significar uma coisa.
— Isso é a estação no fundo do mar? — Akira disse suavemente.
Esses eram exatamente meus pensamentos. Eu só soubera da existência da estação depois de ler sobre ela no folheto ontem, mas eu estava praticamente certo de que tinha que ser.
Aceleramos o passo e logo chegamos a um pequeno trecho do túnel iluminado por uma luz artificial fraca. Parecia uma estação de metrô comum — embora fosse difícil ver direito no começo, já que meus olhos estavam se ajustando à luz pela primeira vez em várias horas.
Na verdade, havia duas estações no fundo do mar: uma no lado de Hokkaido e outra no lado de Aomori — cada uma localizada bem na borda de onde a terra encontrava o mar, a mais de cem metros abaixo do fundo do oceano.
De acordo com o folheto, havia até um longo período de tempo em que alguns trens realmente paravam lá.
— T-Tá bom, vamos parar aqui e descansar um pouco — eu disse, esperando que passar um tempo fora da escuridão ajudasse a acalmar Akira um pouco.
Subimos na plataforma estreita, depois andamos um pouco para dentro de um túnel lateral e nos agachamos no chão. Eu estiquei as pernas e, agora que finalmente tinha um tempo, massageei minhas coxas doloridas. Meus olhos já estavam ajustados à luz, felizmente.
Eu lancei um olhar furtivo para Akira para avaliar sua expressão — mas não pude, pois ela estava sentada com as pernas abraçadas contra o peito, rosto enterrado entre os joelhos. Ela não se mexeu nem disse uma palavra desde que chegamos aqui. Pelo menos ela não estava mais chorando, mas ainda dava para ouvir um pequeno soluço de vez em quando. Eu me senti bem mal por ela, considerando tudo. Olhei para o relógio. Já passava um pouco do meio-dia.
— Talvez seja uma boa hora para almoçarmos… — murmurei em voz alta, esperando que Akira pegasse a dica para que eu não ficasse comendo sozinho enquanto ela chorava. Tirei um pão de mel do meu mochilão, rasguei o pacote e dei uma mordida — só para descobrir que ele não tinha gosto de quase nada. Pensando nisso, me lembrei de uma vez em que li um artigo dizendo que os sentidos podem ser embotados quando se fica preso em um espaço fechado por muito tempo.
Depois de comer metade do meu almoço modesto, Akira finalmente levantou a cabeça. Olhou para o meu pão de mel e, então, tirou um sanduíche de frutas com chantilly da própria mochila e começou a comê-lo também. Nós dois ficamos ali, mastigando em silêncio por um tempo.
— Você gosta de doces, imagino? — perguntei, tentando aliviar o clima.
— E daí se eu gosto? — ela respondeu com uma voz nasal. Então a resposta era sim.
— Nada, só estava pensando que um sanduíche de pão branco, fruta açucarada e chantilly é mais sobremesa do que almoço, sabe o que quero dizer?
— Eu posso comer o que eu quiser.
— Verdade — disse, sem saber como argumentar contra isso. — Ah, mas sabe o que eu percebi? Você está comendo um sanduíche de frutas e eu um pão de mel… Acho que estamos ambos comendo almoços doces e frutados, né? Mesmo que o meu não tenha realmente gosto de melão, por assim dizer.
Akira não deu atenção a essa observação.
Droga, totalmente ignorado…
Talvez fosse melhor apenas deixá-la em paz, em vez de tentar forçar uma conversa desconfortável. Fechei a boca e continuei mastigando meu pão de mel. Quando engoli a última mordida, bebi um pouco de água mineral — mas, ao inclinar a cabeça para tomar um gole, percebi um grande tubo circular correndo ao longo do teto que parecia seguir mais adiante pelo corredor. Me perguntei se aquilo seria a linha elétrica que fornecia energia para o túnel. Ou talvez fosse para transportar algum tipo de líquido? De qualquer forma, senti uma súbita vontade de ir ao banheiro, então peguei minha mochila e me levantei.
— Vou dar uma passadinha no banheiro — disse. — Já volto.
Caminhei um pouco pelo túnel lateral até chegar a outro corredor, bem mais largo. O caminho ali estava plano e nivelado, como se tivesse sido feito para o tráfego de pedestres. Quando iluminei o corredor com a lanterna, notei o que parecia ser um mapa afixado na parede. Ao me aproximar, vi que estava rotulado com uma placa metálica gravada que dizia MAPA DE CORTES.
— Vamos ver aqui…
De acordo com o mapa, eu estava agora no que era conhecido como Túnel de Serviço — um longo corredor separado que corria paralelo ao túnel principal desde esta estação subaquática até a de Aomori.
Se ambos os túneis levavam ao mesmo destino, talvez fosse melhor pegar o caminho menos arriscado. Pensei em sugerir isso a Akira e ver o que ela achava. Mas primeiro, precisava ir ao banheiro. Por hábito, olhei para os dois lados para garantir que o caminho estava livre, então abri minha mochila e peguei o meu banheiro portátil.
*
Após descansarmos por mais uns dez minutos, seguimos novamente.
O túnel de serviço era infinitamente mais agradável do que caminhar diretamente sobre os trilhos. Também havia muito espaço, então Akira e eu podíamos caminhar lado a lado e conversar sem precisar prestar atenção a cada passo. Dito isso, parecia que um pouco de água do mar estava conseguindo se infiltrar; o chão estava ligeiramente escorregadio, como o asfalto depois da chuva.
De acordo com o folheto, as estações subaquáticas eram atrações turísticas bem conhecidas até alguns anos atrás, mas agora só serviam como pontos de parada de emergência para os trens que passavam pelo túnel, caso houvesse algum problema técnico inesperado. Já tinha visto algumas bicicletas e cadeiras de rodas encostadas nas paredes, que eu supus serem de uma época em que esse túnel de serviço estava aberto ao público.
— Wow! — Akira exclamou de repente.
Curioso, iluminei o túnel com a lanterna.
— Bwagh! — também gritei, de repente.
Havia uma pessoa parada ao lado do corredor — mas, ao olhar mais de perto, percebi que era só um manequim vestindo roupas de operário e carregando uma grande barra de ferro. Isso provavelmente era para representar como os trabalhadores se pareciam durante a construção do túnel. Também havia uma grande ferramenta no chão ao lado dele, que parecia um tipo de trituradora de pedras. Eu tinha mantido a lanterna apontada diretamente para o chão o tempo todo, então não tinha notado nada disso.
— Meu Deus, isso me assustou pra caramba… — Akira disse, colocando uma mão sobre o peito enquanto continuava a andar com um passo hesitante. Ela parecia estar atravessando uma casa assombrada, então achei melhor assumir a liderança novamente.
Pelas coisas vestigiais em exibição assim — manequins, dioramas, fotos históricas — ficou claro para mim que o túnel de serviço havia sido remodelado para funcionar como uma espécie de museu quando a estação subaquática ainda estava aberta ao público. O pensamento de que todas essas exposições estavam ali, esperando eternamente por turistas que provavelmente nunca mais viriam, me deu uma estranha sensação de melancolia.
— Caramba, é meio louco pensar que todas essas coisas estavam escondidas aqui embaixo — falei. — Você sabia desse lugar?
— Não sabia… — disse Akira. — Nunca passei pelo Túnel Seikan.
— Espera, sério? Então é sua primeira vez saindo de Hokkaido também?
— Ah, claro que não…? Não me faz te dar um soco.
Imediatamente pedi desculpas — mas, honestamente, fiquei aliviado ao ver que o humor dela já tinha se recuperado o suficiente para ela voltar a ser a mesma garota mal-humorada de antes.
— Não tem muita gente em Hokkaido que nunca tenha saído da ilha, especialmente até chegar no ensino médio — ela explicou. É só que geralmente, quando você quer ir para Honshu, ou você voa ou pega a balsa.
— Ahhh, entendi…
Isso fez sentido.
Depois de andar um pouco mais, chegamos a um beco sem saída, com uma cerca de ferro de parede a parede com um portão. Eu podia ver que o túnel continuava por um bom trecho além dali. As portas só tinham uma simples trava, pelo que eu conseguia ver, então poderíamos passar por ali, mas o cartaz de PESSOAL AUTORIZADO APENAS me fez hesitar.
— Ei. Tem certeza de que é por aqui? — perguntou Akira.
— Sim, com certeza — respondi. — Podemos seguir por aqui até a estação subaquática do lado de Aomori, se não me engano.
— E se não for o caminho certo?
Akira parecia estar com algumas preocupações. Não podia culpá-la; se nos perdêssemos aqui embaixo e ficássemos sem comida ou suprimentos, poderíamos facilmente acabar mortos. Eu não ia simplesmente enganá-la a menos que eu tivesse certeza absoluta.
— Vai ficar tudo bem — eu disse. — Quero dizer, foi literalmente isso que o mapa lá atrás disse. A menos que você prefira andar pelos trilhos, o que eu suponho ser um pouco mais certo.
Akira ficou em silêncio por um tempo. Presumi que ela estivesse deliberando consigo mesma. Mas ela sabia, assim como eu, o quanto caminhar pelo túnel principal seria fisicamente e mentalmente exaustivo.
— Tá bom, vamos — ela disse finalmente.
— Vamos.
E ela escolheu o túnel de serviço.
— Além disso — eu disse, enquanto destravava o portão, — mesmo se chegarmos a um beco sem saída em algum momento, podemos simplesmente voltar e sair pelos trilhos através do túnel lateral mais próximo. Não vai ser uma perda de tempo tão grande — não se preocupe.
A porta emitiu um grito metálico quando a abri com força, e nós dois passamos por ela. O leve splash dos nossos passos contra o chão molhado ecoou brevemente pelo corredor. O vazamento de água parecia ter aumentado assim que passamos pelo portão. Quando iluminei o teto, pude até ver estalactites penduradas. Agora, isso era menos um túnel e mais uma caverna. A partir de certa parte, até haviam canaletas cavadas ao longo das bordas do corredor, preenchidas com água parada — ou pelo menos parecia assim, dado que o tempo estava parado.
Na realidade, eu suponho que fosse provavelmente o escoamento de água vazada indo para algum lugar. Fiz uma anotação mental de que seria melhor usar essas canaletas da próxima vez que precisasse ir ao banheiro, ao invés de usar meu banheiro portátil.
— Então, isso realmente não te incomoda nem um pouco, né? — perguntou Akira.
— Hã? — eu respondi, um pouco pego de surpresa.
— Tipo, como diabos você consegue ficar tão tranquilo agora? Só caminhando por um túnel escuro e assustador por horas a fio...
Pelo tom dela, parecia até que ela estava me criticando por isso. Ou talvez achasse o meu comportamento particularmente desconcertante, ou algo do tipo.
— Eu não diria que estou tranquilo, por assim dizer — eu disse. — Minhas pernas estão me matando, e eu estou me sentindo estranhamente claustrofóbico o tempo todo... Mas ainda assim, é melhor do que estar na minha viagem de campo da escola, então não posso reclamar.
— Como assim você acha isso? Vocês fazem exercícios hardcore de sobrevivência na selva nas suas viagens de campo, ou o quê?
— Não, só o normal. Andando pela cidade com os colegas, vendo pontos turísticos, comprando souvenirs, saindo para comer — sabe como é.
— E o que tem de tão ruim nisso?
Eu pausei por um momento antes de responder.
— Bem, o problema é que eu não tenho muitos amigos, entende? Então eu sempre me sinto meio que o excluído do grupo... Não que eu me importe de ficar sozinho, geralmente. Mas toda vez que sou forçado a tentar me divertir com outras pessoas, é uma péssima experiência para mim.
— Hã. Não me diga.
Essa foi uma resposta bem direta e fria para algo que (eu senti) exigiu coragem para admitir abertamente. Mas, pensando bem, Akira já tinha percebido que eu provavelmente não tinha muitos amigos — logo no começo também. Então talvez esse contexto adicional não fosse nada que ela já não suspeitasse.
— Acho que entendi mais ou menos — disse ela suavemente.
— É... imaginei que sim — respondi com um sorriso desajeitado, sem saber bem como reagir. — Com toda essa vibe de solitário sombrio e tal.
— Ah, com licença? Quer brigar, garoto?
— Hã?
— O quê?
Houve um breve silêncio confuso, até que o rosto de Akira se iluminou como se tivesse acabado de ter uma epifania.
— Ah! — exclamou. — Não, não. Eu não tava falando de você agora. Só quis dizer que, ah... eu meio que entendo o sentimento... Também não gosto muito de sair com um monte de gente, fingindo que todos nós estamos realmente nos divertindo. É simplesmente estúpido.
— Ah, tá — eu disse. — Entendi. Foi mal.
Ela estava tentando se solidarizar comigo. Isso eu não esperava. Para alguém como Akira, que era o oposto de mim em praticamente todos os sentidos, conseguir se identificar comigo em uma das minhas maiores ansiedades sociais foi bastante inacreditável.
— Mas não pense que isso significa que eu sou igual a você — Akira acrescentou. — Eu não sou uma perdedora. Só sou uma loba solitária, só isso.
— Ah, sim... Isso soa mais legal, né?
— Hmph. Tá, agora você tá sendo um idiota…
— Não tô não! Eu sempre quis ser mais assim — o tipo de pessoa que consegue ficar de pé sozinha sem nenhuma vergonha. Exige muita coragem, se você me perguntar.
Houve outro breve silêncio antes de Akira reconhecer isso com um "Mm." Para ser honesto, Akira me parecia menos uma loba solitária e mais uma gata alerta e hiperativa, sempre em guarda. Ela não deixaria ninguém encostar nela, e no momento em que se sentisse um pouco atacada por algo, ela partiria para cima sem remorso.
— Você falou que seu nome é Mugino, né? — ela me perguntou de repente.
— Sim...? — eu disse com uma expressão confusa.
— Tem um som legal, para um sobrenome.
— Você acha? Sempre achei meio comum...
— Só pensei que poderia te chamar de Mugino em vez de garoto a partir de agora, é só. É mais... fácil, sabe? É melhor.
Ela ainda tentava ser durona, mas havia uma espécie de calor ensolarado na voz dela dessa vez que não pude deixar de perceber. Para mim, parecia que talvez, só talvez, Akira fosse tão péssima em se comunicar quanto eu — só que de um jeito completamente diferente. Havia momentos em que eu realmente me perguntava se toda aquela bravata dela não era apenas a maneira dela de cobrir sua própria forma de ansiedade social. Então, ela tentar se aproximar de mim, do seu jeito desajeitado, me fez realmente feliz.
— É, eu acho que prefiro Mugino a garoto também — eu disse. Akira deu um pequeno aceno com a cabeça.
— Legal.
Tentamos continuar a conversa depois disso, só batendo papo sobre o que conseguíamos pensar enquanto caminhávamos. Parecia que Akira estava começando a se acostumar com a escuridão também, já que suas emoções pareciam ter se estabilizado bastante. Do ponto de vista físico, no entanto, ambos estávamos bastante exaustos. Já se passavam mais de doze horas desde que entramos no túnel, o que significaria que normalmente já estaríamos procurando algum lugar para dormir. Mas não só não havia camas para encontrar aqui embaixo, como também não havia sequer um lugar onde pudéssemos deitar sem nos molhar e ficarmos miseravelmente desconfortáveis. Por enquanto, não tínhamos escolha a não ser seguir em frente.
— Hm? O que é isso? — eu disse, apontando minha lanterna para uma placa de metal na parede.
← 18.0 KM 6.1 KM →
Eu tinha visto algumas placas como essa desde que entramos no túnel de serviço, cada uma com uma seta apontando para o lado de Hokkaido e outra para o lado de Aomori. A primeira que vi dizia ← 0 KM e 24.1 KM → , o que me fez acreditar que isso deveria representar a distância entre as duas estações no fundo do mar. Isso significava que já tínhamos caminhado dezoito quilômetros a partir da estação do lado de Hokkaido, e ainda faltavam cerca de seis quilômetros até a estação do lado de Aomori. Ou seja, já estávamos mais da metade do caminho. Empolgado para compartilhar, olhei por cima do ombro.
Akira ainda caminhava, embora estivesse vários metros atrás de mim.
Até cerca de uma hora atrás, estávamos caminhando lado a lado, mas a partir de então ela começou a ficar um pouco para trás. Inicialmente, pensei que fosse cansaço, mas agora ela estava tão distante que parei e esperei ela alcançar.
Ela ofegava enquanto seus passos pesados se aproximavam. Não tinha dúvida — ela estava bastante exausta.
— Você tá bem? — perguntei. — Quer fazer uma pausa rápida?
— Não… Eu tô bem — ela respondeu, passando direto por mim. Foi então que percebi que havia algo estranho em seu caminhar, o que sugeria que talvez a exaustão não fosse a única coisa a deixá-la mal.
— Ei, você tem certeza que está—
Eu parei no meio da frase quando uma ideia me atingiu. Espera aí um minuto.
— Hum, Iguma-san? Você precisa ir ao banheiro?
Por um segundo, Akira parou abruptamente, antes de continuar a caminhar. Isso foi a confirmação que ela precisava. Até onde eu sabia, ela não havia ido ao banheiro nem uma vez desde que entramos no túnel. Nesse caso, provavelmente ela não conseguiria segurar por muito mais tempo. Me apressei e comecei a caminhar ao lado dela.
— Olha, eu sei que isso não é da minha conta… — eu disse. — Mas se você precisar ir, é melhor ir. Não é saudável…
— Não te interessa, seu pervertido.
— Eu-eu não estou tentando ser um pervertido. Só falar, e eu prometo que vou seguir na frente para te dar privacidade…
Eu sabia que Akira tinha o próprio banheiro portátil também — me lembro claramente de vê-la enfiando-o na mochila com uma expressão de nojo. Embora, se ela realmente quisesse, poderia ir direto para a água da sarjeta.
— Ugh… Isso é um saco — ela disse, coçando a cabeça com frustração antes de se virar — e quase me cegando com a lanterna no processo. — Tá bom, mas você tem que fechar os olhos e tampar os ouvidos até eu te avisar. Se você tentar fazer alguma graça, eu juro que te espanco até a morte com essa lanterna.
Assenti de forma exagerada e imediatamente coloquei a lanterna no chão e tapei os ouvidos. Fechei os olhos e esperei. Depois de não mais do que alguns minutos, senti uma leve puxada na minha mochila.
— Ei — disse Akira. — Já terminei.
Eu abaixei as mãos e abri os olhos para ver que ela já havia voltado a caminhar pelo túnel, sem mim. Peguei a lanterna do chão e a segui. Ainda tínhamos um longo caminho pela frente.
*
Depois de cerca de quinze horas seguidas de caminhada, finalmente chegamos à estação no fundo do mar do lado de Aomori, a primeira área razoavelmente iluminada em mais de vinte quilômetros. Finalmente, saímos do túnel de serviço — mas agora seríamos forçados a caminhar ladeira acima ao longo dos trilhos para a última parte da jornada. Com certeza ia ser difícil, mas pelo menos significava que a saída estava finalmente ao alcance.
Akira e eu encontramos um banco preso a uma parede próxima e nos sentamos. A estação deste lado do túnel lembrava bastante a do lado de Hokkaido. Dava para ver que ainda estava sendo usada como atração turística até alguns anos atrás.
Coloquei minha mochila no chão e me deitei de bruços no banco. Eu estava exausto. Conforme a vontade de dormir se aproximava, percebi que já não conseguia mais pensar direito. Olhei para o relógio e vi que já eram quase exatamente 23h.
— Quer dormir aqui essa noite? — perguntei para Akira. Ela estava sentada com uma postura meio estranha, não devia ser boa para as costas dela.
— Não — ela respondeu. — Quero sair daqui o mais rápido possível.
Essa resposta veio imediata, e deu para perceber pelo tom de sua voz — e pela forma como ela estava olhando fixamente para a parede oposta — que sua decisão estava tomada antes mesmo de eu fazer a pergunta.
— Então, pelo visto… você não quer dormir nem um pouco até lá? — perguntei.
— Não.
Ainda faltavam uns dez quilômetros até chegarmos à saída. Não era impossível chegarmos lá sem dormir, mas eu não tinha certeza se era tão importante assim forçar nossos corpos tanto — mais do que seria aconselhável.
— Não sei… Parece que vai ser bem difícil…
— Claro que vai ser difícil — disse Akira, se escorando completamente no encosto do banco. — Mas se for pra passar por algo difícil, é melhor fazer alguma coisa a respeito do que ficar sentado e sofrendo sem fazer nada. E eu não quero passar nem mais um segundo nesse lugar idiota.
— Tudo bem. Vamos continuar, então.
Descansamos por uns vinte minutos e depois saltamos para os trilhos.
*
Se há uma coisa que aprendi desde que colocamos os pés no túnel, é que suas pernas normalmente cedem antes da sua energia. Não é o cansaço que te faz querer parar — são as cãibras. E o atrito. Sem contar a dor muscular.
…Ok, talvez não seja justo comparar três coisas com uma só assim. Mas enfim, dá na mesma!
Tudo isso para dizer: Meus joelhos estavam gritando de dor há muito, muito tempo. E não eram só meus joelhos — minhas solas, minhas panturrilhas e minhas coxas também estavam me matando. Era como se todas as articulações das minhas pernas tivessem ficado rígidas e estivessem rangendo como peças de metal enferrujadas.
Eu também estava tão cansado agora que achei que poderia desmaiar no lugar. Meus olhos estavam embaçados, e eu quase tropecei e caí várias vezes já — mas a cada vez, uma onda súbita e gelada de adrenalina fazia meu corpo me puxar de volta à posição ereta automaticamente.
Já não havia mais conversa nesse ponto. Tanto Akira quanto eu havíamos gasto todas as nossas reservas de energia e agora estávamos focados em uma única coisa: colocar um pé na frente do outro. Isso, sem dúvida, foi o maior percurso que já caminhei em um único dia em toda minha vida.
De vez em quando, olhava por sobre meu ombro para me certificar de que Akira ainda estava me seguindo. Com o quanto ambos estávamos exaustos, eu não ficaria surpreso se ela desabasse em algum momento e minha mente cansada estivesse tão confusa que nem ouviria sua queda. Mas, até agora, ela ainda estava atrás de mim — mesmo que sua forma de caminhar tivesse evoluído para o estágio de "zumbi mancando".
Eu queria acreditar que já estávamos perto da saída. Eu tinha que acreditar nisso, ou então sabia que minhas pernas se recusariam a dar mais um passo. E, ao contrário do túnel de serviço, não havia placas de metal na parede aqui para nos dizer exatamente a quantos quilômetros estávamos do próximo ponto de referência. Eu só podia confiar na minha intuição — mas minha intuição dizia que estávamos bem perto. E, ainda assim, sentia minha consciência ficando cada vez mais turva devido ao cansaço e à exaustão.
O que me lembrou: eu costumava ter um pesadelo recorrente que era um pouco parecido com isso. Um em que eu só continuava andando e andando por uma caverna escura e assustadora até inevitavelmente desabar de exaustão, sem nem mesmo chegar perto da saída — e então eu acordava.
Eu não podia deixar de me perguntar, às vezes, se talvez isso tudo fosse apenas um pesadelo também. Não só atravessar o Túnel Seikan, mas também passar a noite na escola primária, e a situação toda de parar o tempo em geral. Talvez eu acordasse de repente em algum momento e me encontrasse de volta no meio da minha viagem escolar.
Esse último pensamento provavelmente foi o que mais me assustou.
Sim, viver em um mundo onde o tempo parou era inconveniente.
Não podíamos usar nossos celulares, quanto mais um computador. Nem mesmo podíamos assistir a um filme para nos entreter. Tantas das pequenas comodidades que dávamos como garantidas em nossas vidas diárias estavam de alguma forma fora do alcance, ou tão difíceis de conseguir que pareciam não existir mais. E, no entanto, enquanto o tempo permanecesse congelado, eu não teria que suportar minha viagem escolar estúpida de novo, muito menos voltar para a escola. Eu não teria que ser um incômodo ou uma chatice para os meus colegas. Para uma pessoa socialmente desajustada como eu, nem todos os efeitos do congelamento do tempo eram completamente prejudiciais ou indesejáveis.
Mas para Akira, era diferente. Ela estava obviamente lutando muito para lidar com a situação. Eu imaginava que ela faria o que fosse necessário, não importa o quão difícil fosse, se isso significasse que o tempo voltaria a andar. Se não fosse o caso, ela provavelmente não teria nem considerado tentar atravessar o Túnel Seikan dessa forma. Meu conforto egoísta no escapismo era muito, muito menos válido e nobre do que o desejo dela de continuar avançando, não importa as dificuldades. O mínimo que eu poderia fazer por ela era rejeitar essa realidade também — e se isso fosse mesmo um sonho, então eu tinha a responsabilidade de pôr fim a isso o quanto antes.
Ainda assim, em meu íntimo, eu até torcia para que o tempo permanecesse congelado pelo menos até chegarmos a Tóquio. Esse era meu único desejo mesquinho — mesmo que eu tivesse vergonha de admitir isso.
— Hm? — murmurei.
Logo à frente, consegui ver uma fonte de luz que parecia quase uma estrela minúscula. Ela foi ficando cada vez maior à medida que nos aproximávamos. E não era uma luz artificial, como a das estações no fundo do mar. Era uma luz suave e branca, esculpida em forma oval.
Era isso. Era a saída.
— Ei, olha aquilo! — disse Akira, aparentemente tendo notado também. Sua voz transbordava de alegria.
Aceleramos o passo para esse trecho final, impulsionando nossos corpos castigados para frente como se nossas vidas dependessem disso. À medida que a luz ficava mais intensa, não demorou muito até que não precisássemos mais das lanternas. Eu senti a umidade pesada do ar começar a dissipar até que, finalmente...
— Conseguimos!
Finalmente, Akira e eu estávamos olhando para o céu azul pálido pela primeira vez em um dia inteiro. Respirei fundo, como um mergulhador que sai à superfície após um longo tempo debaixo d'água. Deus, o ar fresco era tão bom. Me senti liberto, como se um peso tivesse sido tirado das minhas costas. Eu nem conseguia ficar bravo pela luz intensa do sol nos meus olhos nesse momento.
O túnel saía em uma área ampla e aberta — mas se você olhasse o suficiente para longe, poderia ver algumas árvores distantes e até o mar. Eu avistei um pequeno conjunto de casas ao longo da costa; parecia que não estava tão longe da cidade mais próxima.
— Deus, isso demorou uma eternidade… — Akira gemeu, então se jogou no chão, olhando para o céu. Respirei mais uma vez, enchendo os pulmões com o delicioso gosto do ar fresco de fora. E, enquanto fazia isso, notei que uma determinada área de árvores nas florestas distantes estava tingida de um vermelho profundo.
Certo, como pude esquecer?
Nossa jornada começou no frio amargo de Hokkaido, então quase esqueci.
Estávamos bem no meio do outono.
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