Volume 1 – Arco 1

Capitulo 42: No Coração da Maldição - Parte 4

Firefy abriu os olhos novamente, suando e ofegante, com os cabelos bagunçados e o rosto pálido. Ela mal conseguia processar o que acabara de ver. As imagens ainda estavam frescas em sua mente, pesadas demais para acreditar, como se fossem uma realidade distante, mas também inevitável.

Gumer, vendo o pânico e a confusão em seu rosto, tentou acalmá-la. Ele estava visivelmente angustiado, seus olhos se encontrando com os dela, transmitindo uma desesperada urgência.

— Fye, você viu, não viu? — ele perguntou, sua voz trêmula, mas firme. — Não podemos deixar isso acontecer. Eu... Eu não quero deixar isso acontecer. Vamos atrasar o despertar. Dividimos a maldição... Isso vai mudar o futuro, vai dar uma chance de salvar todos. Precisamos impedir. Precisamos encontrar o receptáculo. O monstro que está amaldiçoando a escola, alimentando tudo isso.

Firefy respirou fundo, ainda assustada, mas com uma nova determinação tomando conta de seu corpo. Ela se afastou um pouco para limpar as lágrimas dos olhos e bagunçou os cabelos com as mãos, tentando organizar os pensamentos.

— Você não vai morrer — ela disse, sua voz agora mais firme, com a convicção de alguém que não podia mais voltar atrás. — Não tô mais com medo. A gente vai até o fim com isso. Vamos tirar isso de você.

Gumer sorriu, um sorriso cheio de alívio e esperança. Ele sabia que, com a ajuda de Firefy, poderiam mudar o curso da história. Eles precisavam impedir que mais lâminas surgissem. Precisavam encontrar aquele que estava espalhando a maldição pela escola, e impedi-lo antes que fosse tarde demais.

— Avise os outros — Gumer falou, segurando as mãos dela com força, como se isso fosse sua âncora. — Vamos impedir que mais laminas cresçam. Isso vai dar certo. Eu sei que vai.

Eles se abraçaram novamente, com mais força desta vez, ambos sabendo que aquilo não era apenas sobre a batalha contra a maldição de Gumer, mas contra algo muito maior. Firefy, embora aterrorizada pelo que havia visto, sentia uma onda de determinação crescer dentro de si. Ela ainda estava em choque, mas sabia que não podia manter aquilo para si mesma. A realidade era maior, e ela teria que carregar o peso daquilo tudo. Ela tinha uma missão agora. Salvar seus amigos. Salvar o mundo. Impedir que a Era Carmesim começasse.

Poderia, talvez, clamar por ajuda aos grandes heróis — àqueles cujos nomes ecoavam nas lendas, cujos feitos haviam moldado reinos, domado dragões e derrotado monstros colossais. Poderia buscar os herdeiros, convocar os despertados, os deuses ocultos, as armas celestes. Afinal, era o fim. O mundo estava se curvando diante da ruína, e cada batida do tempo parecia um tambor de guerra anunciando a queda definitiva.

Mas não.

Ela seguiria com seus amigos. Seguiria com aqueles mesmos adolescentes que ainda se perguntavam sobre quem eram, que tropeçavam em suas próprias dúvidas, que mal sabiam o peso de uma escolha. Eles, inexperientes, frágeis, teimosos, leais. Eles eram tudo o que ela tinha.

E, mesmo diante do apocalipse, mesmo quando o céu escorria sangue e a terra tremia com as promessas de um horror ancestral, era com eles que ela iria. Porque às vezes, salvar o mundo não é sobre poder e fama. É sobre não desistir — mesmo quando tudo já parece perdido.


Depois de tudo, sob o teto silencioso da mansão da família de Trrira, os cinco jovens se ergueram aos poucos, como se seus corpos voltassem de um estado entre o sono profundo e um transe. Seus olhos piscavam devagar, retomando a consciência como quem emerge debaixo d'água. O quarto, antes dominado por um caos invisível, estava calmo outra vez. Ártemis, de olhos atentos e respiração controlada, ergueu as mãos com suavidade — o vento soprou de forma precisa, envolvendo os objetos amaldiçoados e empurrando-os de volta para dentro da caixa de vidro. Era a única forma de manuseá-los sem tocar diretamente neles. Ela prendeu a tampa com firmeza, o suor escorrendo discretamente pelo pescoço. Aquela maldição exigia demais.

Trrira observava a movimentação em silêncio. Por dentro, sentia um alívio imenso — tudo havia terminado, pelo menos por agora. Mas em seu rosto, não havia espaço para angústia — não porque fosse inabalável, mas porque não queria preocupar ninguém. 

Glomme, que ainda estalava os dedos como se espantasse o torpor dos ossos, estreitou os olhos. Havia entendido algo durante o transe — todas aquelas visões, aquelas distorções do tempo e da memória... elas se repetiam entre eles. Com algumas variações, sim, mas estavam ligadas. Havia um padrão. E ele prometeu a si mesmo que descobriria o motivo.

Enquanto o grupo saía do quarto e descia a escadaria da mansão em direção à saída, com os pés ecoando nos degraus de mármore, Vanpriks desviou do caminho.

— Onde fica o banheiro? — perguntou ela, com a mesma entonação entediada de quem pergunta a hora.

— Eu te levo — respondeu Trrira, girando sobre os calcanhares com a elegância de quem sabe que está sendo avaliada a cada passo.

Enquanto os outros desciam pelas escadas até a saída da casa, Vanpriks e Trrira seguiram sozinhas por um corredor lateral, largo e gelado. Vanpriks caminhava na frente com uma calma estranha, os olhos semicerrados, o rosto neutro. Já sabia o que vinha. Trrira, logo atrás, tinha os ombros duros e os lábios trincados. O silêncio entre elas parecia ferver.

— Vanpriks — disse Trrira, parando de andar. — Para! — disse Trrira, a voz mais firme do que se sentia, mesmo que o coração batesse no ritmo de um tambor em guerra, batendo contra as costelas.

Vanpriks não obedeceu. Continuou andando como se nada tivesse sido dito. Seus passos ecoavam secos. Trrira deu um passo à frente, sem hesitar dessa vez.

— É por causa do jarro, né? — Trrira falou, firme. — Você só entrou no grupo por isso, né? Fingiu ser do grupo, lutou com eles, comeu com eles. Mas o plano sempre foi esse. Você não passa de uma traidora suja e fria. Se o jarro estivesse na caixa, você teria roubado e fugido, como o monstro que você claramente é.

Então Vanpriks parou. Não virou, não respondeu. Apenas congelou no meio do corredor. Trrira sentiu um calafrio escorrer pelas costas. Foi um parar sem hesitação, sem dúvida, como quem já sabia que aquele era o momento exato em que tudo mudaria.

— Eu vou contar pros outros — continuou Trrira, com a voz subindo um pouco. — Eles precisam saber quem você realmente é. Eles merecem saber que confiaram numa sangue frio, numa criatura que só pensava em si mesma o tempo inteiro.

Num instante rápido demais para que os olhos de Trrira acompanhassem, Vanpriks virou-se. Não foi um giro humano. Foi como se ela tivesse se teleportado, como se os olhos de Trirra piscassem e ela já estivesse ali, de frente, a poucos metros de distância. Rígida. Os olhos fixos nos de Trrira, frios como pedra molhada. A luz artificial tremeluzia sobre seu rosto branco. O corredor parecia mais estreito de repente.

— Conta. Vai — disse Vanpriks, o tom calmo, mas cada palavra soava como lâmina fina entrando na pele. — Vê se eu me importo. Acha que dou a mínima pra esse grupo de idiotas? Bambis? Um rebanho de bichos cegos esperando o abate.

Vanpriks começou a se aproximar. Cada passo dela parecia tornar o ar mais denso. A eletricidade nas lâmpadas piscava com mais frequência, como se a presença dela afetasse até a estrutura do lugar. Trrira deu um passo para trás, sentindo os músculos tensos e o estômago revirar, mas manteve os pés no chão, ainda que por pura força de vontade.

— O jarro está nessa casa, não é? — Vanpriks disse, a voz suave, mas carregada de uma ameaça mortal. — Sei que você o escondeu em algum lugar. Sei que você é o alvo aqui. Você sabe onde ele está, Trrira. E eu vou pegar aquele jarro, nem que eu tenha que destruir cada canto dessa casa. Você não vai escapar, se o que eu procuro estiver mesmo naquele jarro... É meu, não importa o preço que eu tenha que pagar.

Os olhos de Vanpriks começaram a escurecer, uma escuridão profunda que parecia engolir tudo ao redor. No centro de cada olho, emanava uma pequena luz vermelha intensa, como brasas ardendo no fundo de poços sombrios. Sua expressão se intensificou, os dentes começando a ranger suavemente. Sua boca ficou entreaberta, o suficiente para revelar suas presas de vampira — afiadas e ameaçadoras, como se estivessem prontas para dilacerar. Os dentes estremecendo, quase como se quisesse morder ou chupar o sangue de alguém. Seus olhos estavam concentrados, fixos em Trrira, e a tensão era palpável, como se ela fosse babar a qualquer momento. 

— Me entrega o jarro. Agora. Ou eu vou arrancar de você — a voz de Vanpriks saiu como uma lâmina, fria e afiada.

Trrira engoliu seco. Sua garganta queimava. Mas não podia recuar. Não podia mostrar fraqueza, mesmo quando sentia o suor frio descendo pelas costas.

— N-não — respondeu, tentando soar firme, mas a voz falhou no começo. — Pode me ameaçar o quanto quiser. Eu não tenho medo de você.

Vanpriks deu um riso seco, sem humor algum — um som áspero, cortante, que dilacerava o silêncio mais do que o preenchia. Em seguida, inclinou levemente a cabeça, como quem observa uma criatura pequena tentando parecer perigosa, quase com desprezo. Seus pés se ergueram do chão, e ela começou a flutuar lentamente na direção de Trrira, se aproximando com uma calma ameaçadora. Parou tão perto que conseguia sentir o medo dela pulsando no ar, vibrando como uma onda invisível. A própria aura de Vanpriks parecia absorver aquele medo, saboreando-o, como se aquilo a alimentasse.

— Quer saber a diferença entre você e eu? — sussurrou ela, com crueldade escorrendo de cada sílaba. — Eu já matei por bem menos. E se você acha que vou hesitar por você, por esse seu teatrinho de valentia... se engana. Eu vou arrancar esse jarro das suas mãos, mesmo que tenha que arrancar você junto.

Trrira respirou fundo, o ar entrando com dificuldade enquanto tentava manter o controle. Suas mãos tremiam levemente, e ela deu um passo para trás, como se cada centímetro de distância fosse vital. Seus olhos varriam o ambiente em busca de algo — qualquer coisa — a que pudesse se segurar, como se um ponto de apoio físico pudesse conter o turbilhão dentro dela. O peito subia e descia rápido, o coração disparado batendo contra suas costelas como um tambor de alerta. Ainda assim, ela tentou se firmar, lutando para não deixar o medo tomar conta por completo.

— Se chegar mais perto eu juro que acabo com você — rosnou Trrira, escorando os pés no piso polido. — Vai ter que me derrubar, Vanpriks. E eu prometo que vou te machucar no processo.

Vanpriks flutuou mais à frente, como se a qualquer momento fosse atravessar Trrira. 

— Você mal sobreviveu ao Gumer. Lembra disso? Aquele brutamonte que te enforcou com tanta força até quase explodir tua cabeça como uma fruta podre?

Ela se inclinou levemente, os olhos flamejando com desprezo.

— E agora tá aqui, tentando peitar a mim? — continuou a vampira. — Se ele quase te matou, imagina o que eu faria sem nem tirar a jaqueta. Eu posso quebrar você em trinta segundos e ainda sair sem um arranhão. Não é uma ameaça, amiga. É só estatística.

Trrira não respondeu. Só manteve o queixo erguido, tentando disfarçar o pânico que se infiltrava sob a pele.

— Continua com esse jarro, Trrira — cuspiu Vanpriks, se aproximando só o bastante pra que Trrira sentisse o cheiro metálico do sangue seco em sua respiração. — Mas você vai se arrepender, garota. Esconda-se. Esconda tudo o que você ama — sua família, suas memórias. Porque eu vou entrar. E quando eu vier buscar o que é meu, vou deixar um rastro que nem magia vai apagar.

Ela passou ao lado de Trrira, deixando-a para trás, os cabelos ondulando com o movimento elegante de quem nunca, jamais, teve medo de nada.

— Você não me deve respeito. Mas vai aprender a me temer.

Trrira ouviu a voz em suas costas, e um arrepio percorreu todo o seu corpo, fazendo sua nuca estremecer como se um fio de eletricidade tivesse passado por ali. A tensão a paralisou, e ela ficou ali, imóvel, por alguns segundos, como se seu corpo se recusasse a reagir. O ar parecia ter ficado mais pesado, e o som dos passos suaves ecoou logo depois. Vanpriks descia as escadas com uma calma quase cruel, como se nada tivesse acontecido, como se não tivesse acabado de envenenar o ambiente com sua presença.

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