Volume Único
Capítulo 4: Killer Cage
{1} “Merda, já começou! Não deixem suas bolas caírem, senhores!”
Batalha 159.
Me atiro adiante, o Doppler do meu Jacket ajustado no máximo.
Eu vejo um alvo. Um dardo passa perto da minha cabeça.
“Quem está lá na frente, você está muito longe, quer se matar?”
O tenente disse a mesma coisa todas as vezes. Limpei a areia do meu capacete. Trovão explodia das bombas que atravessavam o céu. Olhei para Ferrell e acenei.
Desta vez a batalha terminaria. Se eu parasse, veria Yonabaru e Ferrell morrendo, eles não voltariam. Tudo se resumia a isso. Não repetiria esta batalha. O medo que agarrava minhas entranhas não era o medo da morte, era o medo do desconhecido. Queria largar meu rifle e machado e encontrar uma cama para me esconder debaixo.
Uma reação normal — o mundo não tinha a intenção de se repetir. Eu sorri, apesar das borboletas no meu estômago. Eu estava lutando com o mesmo que todo mundo luta. Estava colocando a minha vida — a única que eu tinha — na linha.
“Você não está realmente preso em um loop temporal”, Rita tinha me explicado. Minhas experiências das 158 batalhas anteriores foram reais. Era eu quem realmente não existia. Quem quer que fosse aquele que estivera lá para a dolorosa dor, a desesperança e o mijo quente em seu Jacket, ele era apenas uma memória agora.
Rita me disse que do ponto de vista da pessoa com a memória, não havia diferença entre ter tido uma experiência real e ter apenas a memória dela. Parecia uma mentira filosófica para mim. Rita também não parecia entender isso muito bem.
Lembro-me de ler uma história, quando ainda lia quadrinhos, sobre um cara que usava uma máquina do tempo para mudar o passado. Me parecia que se o passado mudou, então o cara do futuro que voltou no tempo para mudá-lo deveria ter desaparecido — como o cara naqueles velhos filmes De Volta Para o Futuro — mas a história ignorava esses detalhes.
Eu tinha me tornado um viajante involuntário nos sonhos dos Mimics. Na minha primeira batalha, aquela em que Rita salvou minha vida, eu matei, sem saber, um daqueles Mimics que ela chamava de “servidores”. Em cada batalha desde então, a partir da segunda até a 158ª, Rita tinha matado o servidor. Mas a rede entre mim e o servidor já havia sido estabelecida no instante em que o matei, significando que eu era quem estava preso e que Rita havia sido libertada.
O Mimic usou o loop para alterar o futuro para sua vantagem.
O dardo que matou Yonabaru na segunda batalha tinha sido feito para mim. Meu encontro casual com um Mimic quando corri da base não tinha nada a ver com o acaso. Eles estavam me caçando o tempo todo. Se não tivesse sido por Rita, eles me comeriam no café da manhã, almoço e jantar.
Os combates continuaram. O caos perseguia o campo de batalha.
Deslizei em uma cratera com o resto do meu esquadrão para evitar ser acertado por um dardo daquele atirador. O esquadrão tinha se movido uma centena de metros mais perto da costa desde o início da batalha. O buraco que tínhamos coberto era cortesia do bombardeio guiado por GPS da noite anterior. Uma bala perdida pousou perto de meus pés, pulverizando areia no ar.
“Igual a Okinawa” — observou Ferrell, de costas contra a parede de terra.
Yonabaru mandou outra rajada. “Deve ter sido uma puta luta.”
“Estávamos cercados, tipo agora. Ficamos sem munição e as coisas ficaram feias.”
“Você está amaldiçoando a gente.”
“Não sei…” Ferrell saltou da cobertura da cratera, disparou o rifle e afundou contra a parede. “Eu acho que essa batalha tem futuro. É só uma ideia.”
“Merda, o Sargento tá com conversinha otimista, é melhor ter cuidado se não a gente vai ser atingido.”
“Você tem alguma dúvida? Só olha nosso recruta mais novo em ação.” Ferrell disse. “Não me surpreenderia ver ele dando uma mijada para provocar os Mimics.”
“Não sei se daria a mijada”, eu disse.
“Seu merda.”
“Talvez eu faça um teste com esse belo machado de batalha.” Yonabaru assentiu com a cabeça para o reluzente pedaço de carboneto de tungstênio no punho do Jacket.
“Você se machucaria.”
“Isso é bullying.”
O mesmo de sempre. Sem novidades. Todos falando, ninguém ouvindo.
“Bogies às duas horas!”
“Nosso trigésimo quinto cliente do dia!”
“Qual de vocês idiotas, me enviou esse arquivo enorme? Estamos no meio de uma maldita guerra, se não perceberam!”
“Cara, eu preciso de um cigarro.”
“Feche a porra da boca e atira!”
A linha de frente se afastou da cobertura e mirou seus rifles na horda que se aproximava. As balas perfuraram o ar, mas a onda de Mimic continuou se aproximando. Agarrei o cabo do meu machado.
Sem aviso, uma bomba caiu do céu. A munição de precisão guiada por laser quebrou a rocha, cavando profundamente na terra antes de detonar. Os Mimics caíram na cratera.
Um Jacket carmesim apareceu em meio à chuva de terra e barro.
Carboneto de tungstênio cortando os membros das criaturas. Depois de alguns minutos, nada mais se movia.
Mais do mesmo.
Estática encheu meus ouvidos, então sua voz veio limpa. “Desculpe por te deixar esperando.” A Cadela do Campo de Batalha estava de pé, levantando um enorme machado de batalha. Sua armadura vermelho bronze cintilava ao sol.
Levantei minha mão para que ela pudesse me identificar. “A gente acabou de chegar.”
“O que a Cadela do Campo de Batalha está fazendo aqui?” Yonabaru se esqueceu completamente de tomar cobertura e olhou estupidamente para o Jacket. Eu teria pago uma grana para ver sua cara.
Rita se dirigiu a Ferrell. “Preciso falar com quem está no comando deste pelotão.”
Ferrell abriu um canal entre Rita e o tenente. “Pode falar.”
“Esta é Rita Vrataski, tenho um pedido para o oficial encarregado do 3º Pelotão da 17ª Companhia, 3º Batalhão, 12º Regimento, 301ª Divisão de Infantaria Armada. Preciso pegar emprestado Keiji Kiriya. Tudo bem por você?”
Ela não declarou seu grau ou divisão. Nesta estrutura militar, só a Valquíria era livre para operar fora da cadeia de comando. Mesmo naquela primeira batalha, não tinha sido ela que cuidou de mim quando eu estava morrendo? Rita Vrataski.
A resposta do tenente não estava segura. “Kiriya? Talvez você queira alguém com mais experiência, alguém —”
“Sim ou não?”
“Bem, sim, sim.”
“Aprecio sua ajuda, Sargento. E você, se importa se eu pegar o Kiriya?”
Ferrell deu de ombros em aprovação, seus ombros sob o Jacket se erguendo como uma onda oceânica.
“Obrigado, Sargento.”
“Veja que ele não vai fazer nenhuma pirraça perto da nossa equipe.”
“Alguma espécie de código?” Rita perguntou.
“Apenas modo de falar.”
“Keiji, o que é isso?”
“Desculpe, Sargento, explico depois” falei.
“Nós vamos atacar às doze horas.”
“Uh, certo.”
“Ei, Keiji, se você vir uma máquina de venda automática, pega um cigarro!” Yonabaru falou da direita antes de eu desligar do link de comunicação.
Rita riu da sabedoria deles. “Você tem uma boa equipe, está pronto?”
“Seja gentil.”
“Sempre sou.”
“Não é isso que ouço.”
“Apenas se preocupe com os Mimics, ok?”
Batendo contra os lados da cratera, rastejando, e finalmente escalando, Mimics começaram a brotar do buraco que Rita tinha explodido no chão. Nós mergulhamos de cabeça. Sapos inchados de parede a parede.
Correr. Atirar. Recuar. Observar. Avançar um pouco mais. Atirar. Respirar.
Bombas de precisão caçavam Mimics onde se escondiam. A fumaça espiralava em direção ao céu, onde haviam encontrado sua presa. A areia e a sujeira seguiam a fumaça pelo ar e pedaços de carne de Mimic não estavam muito atrás. Corremos para a cratera e matamos tudo o que as bombas deixaram.
Mesmo quando você estava apenas repetindo o mesmo dia outra vez, a vida no campo de batalha era qualquer coisa menos rotina. Se o ângulo de seu balanço pendia um grau, poderia desencadear uma cadeia de eventos que mudaria todo o resultado da batalha. Um Mimic que você deixou escapar por um minuto iria matar seus amigos em seguida. Cada soldado que morria, a linha ficava mais fraca, até que eventualmente se partia. Tudo porque seu machado balançava em quarenta e sete graus em vez de quarenta e oito.
Havia mais Mimics do que eu podia contar. Os pontos preencheram a tela. A regra era que precisava de um esquadrão de dez Jackets para derrubar um Mimic. Mesmo assim, o esquadrão tinha que pulverizar a maldita coisa com balas até que não sobrassem mais balas.
Rita estava em constante movimento. Ela balançava o machado com a facilidade de uma criança balançando uma espada de plástico. O cheirava a Mimic. Outro passo, outro balanço, outro membro.
Eu nunca tinha visto nada parecido. Os dardos carregavam a morte pelo ar. Eu estava perto o suficiente para alcançar e tocar meia dúzia de Mimics. Apesar do perigo ao meu redor, senti uma estranha calma. Tinha alguém para cuidar das minhas costas. Rita era um filtro que destilava e neutralizava o medo. Eu estava no vale da sombra da morte, empilhado de merda, mas Rita estava ao meu lado.
Aprendi a sobreviver imitando a habilidade de Rita com o machado, e no processo, aprendi cada movimento dela — com qual pé ela daria o próximo passo, que Mimic iria atacar primeiro quando cercada. Eu sabia quando ela iria balançar o machado e quando iria correr. Tudo isso ficou gravado em mim.
Rita evitou o perigo e percorreu as fileiras inimigas, esculpindo um caminho de destruição perfeitamente. As únicas coisas que deixava em pé eram alvos que não valiam a pena matar. Eu estava muito feliz de atacar depois dela. Nós nunca treinamos juntos, mas somos como gêmeos, veteranos de inúmeras batalhas um do outro.
Quatro Mimics vieram até Rita de uma só vez — chances ruins, mesmo para a Valquíria. Ela ainda estava sem equilíbrio do seu último balanço. Com minha mão livre, dei-lhe um gentil empurrão. Por uma fração de segundo ela ficou assustada, mas não demorou muito para entender o que eu tinha feito.
Ela realmente era um mestre. Em menos de cinco minutos, tinha aprendido a trabalhar em conjunto comigo. Quando percebeu que eu poderia usar um braço ou perna livre para desviá-la de um ataque, ela se virou e enfrentou a próxima cabeça inimiga, sem qualquer intenção de esquivar. Uma garra de Mimic veio no alcance do seu rosto e ela nem sequer se encolheu.
Trabalhamos como uma única unidade. Nós rasgamos o inimigo com um poder assustador, sempre vigiando o Jacket um do outro pelo canto dos olhos. Não precisávamos de palavras ou gestos. Cada movimento, cada passo dizia tudo o que precisava ser dito.
Nosso inimigo pode ter evoluído da capacidade de voltar no tempo, mas a humanidade tinha desenvolvido alguns truques próprios. Havia pessoas que podiam manter um Jacket em boas condições, pessoas que podiam criar estratégias e lidar com a logística, pessoas que poderiam fornecer apoio na linha de frente e, por último, mas não menos importante, as pessoas que eram assassinos natos. As pessoas poderiam se adaptar ao seu ambiente e suas experiências de várias maneiras. Aprendemos mais rápido do que eles.
Eu tinha passado pela morte 158 vezes para emergir de alturas que nenhuma criatura neste planeta poderia sonhar em uma única vida. Rita Vrataski subiu ainda mais. Nós caminhamos à frente, longe do resto da força, um exército para nós dois. Nossos Jackets traçaram espirais graciosas no sentido horário — um hábito que peguei de Rita. Restos de carniça foi tudo o que deixamos no nosso rastro.
Quarenta e dois minutos na batalha, nós o encontramos. O Mimic na raiz de todo o maldito loop. O fio que nos ligava. Se não fosse por este servidor, eu nunca teria me afogado no meu próprio sangue, visto minhas tripas derramado no chão dezenas de vezes, vagado sem rumo através deste inferno sem saída. Se não fosse por este servidor, eu nunca teria conhecido Rita Vrataski.
“É isso, Keiji, você é que tem que derrubá-lo.”
“Com prazer.” “Lembre-se: roteador primeiro, em seguida, os backups, depois o servidor.” “E então vamos para casa?” “Ainda não, quando o loop termina a verdadeira batalha começa. Só acaba quando não sobrar um Mimic de pé.” “Nada é fácil.”
O genocídio era a única forma de vencer esta guerra. Você não poderia exterminar 30% do inimigo e dizer que venceu. Tem que destruir cada um deles. Derrube o servidor e a guerra continua. Tudo o que Rita e eu pudemos fazer era libertar nossas tropas dos loops temporais. Uma vitória duradoura exigiria mais força do que dois soldados. Mas no dia em que conseguíssemos vencer, eu poderia morrer, Rita, Yonabaru, Ferrell e o restante do pelotão, até mesmo aqueles idiotas de do 4º poderiam morrer e o tempo nunca mais se repetiria. Um novo dia amanheceria na Terra.
Rita disse que derrubar um servidor Mimic era tão fácil quanto abrir uma lata. Tudo que você precisava era o abridor certo. Até o momento, ela era a única pessoa no planeta que tinha feito isso.
Pessoas da Terra, regozijem-se! Keiji Kiriya acabou de encontrar outro abridor de lata! Agora, para cada abridor de lata da Rita Vrataski você comprar, receberá um Keiji Kiriya extra — um abridor de lata de marca SEM CUSTO ADICIONAL!
Claro, não pode nos comprar separadamente, mesmo se quiser. Suponho que Rita e eu não seríamos vendedores muito honestos. O que este loop de tempo infernal uniu, nenhum homem vai separar. Só Rita e eu compreendíamos a solidão um do outro, e nós ficaríamos lado a lado, cortando Mimics em pedaços até o amargo fim.
“Roteador morto!”
“Limpei os backups.”
“Entendido.”
Eu ergui meu machado de batalha e derrubei em um golpe rápido e limpo —
Abri meus olhos. Eu estava na cama.
Peguei uma caneta e escrevi “160” na parte de trás da minha mão. Então chutei a parede o mais forte que pude.
{2} Não é fácil dizer a uma pessoa algo que você sabe que vai fazê-los chorar, muito menos fazê-lo com uma audiência. E se Jin Yonabaru está naquela audiência, você está ferrado.
A última vez soou bastante forçado. Estava tentando pensar em uma maneira melhor de dizer, mas não poderia pensar em nada curto e gentil que faria Rita perceber que também estava experimentando os loops. Talvez eu devesse simplesmente dizer isso a ela. Merda, não tenho ideias melhores.
Eu nunca fui particularmente inteligente, e o cérebro que tenho estava preocupado tentando descobrir se tinha quebrado o ciclo ou não. Fiz tudo como Rita me disse, mas aqui estava eu no meu 160º dia antes da batalha.
O céu sobre o Campo de Treinamento Nº 1 estava tão claro quanto da primeira vez. O sol das dez horas bateu em nós sem piedade. O TFM acabou de terminar, e as sombras aos nossos pés estavam escuras de suor.
Eu era um total estranho para esta mulher com cabelos cor de ferrugem e pele muito pálida para um soldado. Seus ricos olhos castanhos se fixaram em mim.
“Então você queria falar. O que é?”
Eu estava sem tempo e sem ideias. Teria sido melhor esperar sair do TFM. Tarde demais agora.
Olhei para Rita e disse o mesmo sobre o chá verde que falei antes. Ei, não foi tão ruim dessa vez, pensei. Talvez ela não vá — ah, porra.
As lágrimas caíram pelas bochechas de Rita e pingaram do seu queixo, depois respingaram quando pousaram na palma da mão que estiquei para pegá-las. Eu ainda estava quente do exercício, mas as lágrimas queimavam como balas de 20mm. Meu coração batia forte. Eu era um estudante pedindo uma menina para dançar. Nem mesmo a batalha fazia minha pressão subir assim.
Rita apertou o fundo da minha camisa, apertando tão forte que as pontas de seus dedos estavam brancas. No campo de batalha eu podia ver todos os movimentos antes que ela fizesse isso, mas aqui eu estava atordoado. Me programei para esquivar de mil ataques com facilidade, mas onde estavam meus reflexos quando precisava deles? Minha mente vagava, procurando uma saída. Me perguntava se minha camisa estava suada onde ela estava agarrando.
Da última vez, fiquei parado até que Rita recuperou a compostura e falou. Talvez depois de mais dez viagens através do loop isso seria rotina. Eu saberia exatamente o que dizer para acalmá-la enquanto a segurava suavemente contra meu ombro. Mas isso significaria reduzir minhas interações com a única pessoa no mundo que me entendia a uma simples rotina. Algo me disse que era melhor ficar parado e segurá-la.
Yonabaru estava boquiaberto observando como um turista em um jardim zoológico que via um urso dançar uma valsa. Pelo menos finalmente encontrei uma situação que o calasse. Ferrell educadamente desviou os olhos, mas não muito. E isso foi mais ou menos assim que o resto do pelotão se comportou. Foda-se. Eu era o urso dançante. Não olhe fixamente. Não diga nada. Basta jogar o seu dinheiro na lata e seguir em frente.
O que deveria fazer quando estava nervoso? No treinamento, eles nos ensinaram a nos mantermos unidos pensando em algo que desfrutamos. Algo que te deixou feliz. Na batalha, isso provavelmente seria uma daquelas coisas felizes a se pensar, então por que estava tão nervoso agora? Se Deus tivesse uma resposta, ele não ia dizer.
Peguei Rita pelo pulso. Ela parecia perdida.
“Eu sou Keiji Kiriya.”
“Rita, Rita Vrataski.”
“Acho que deveria começar com ‘Prazer em conhecê-lo’.”
“Por que está sorrindo?”
“Eu não sei, apenas feliz, eu acho.”
“Você é estranho.” O rosto de Rita se suavizou.
“Vamos fazer uma pausa.” Meus olhos olharam por cima de seu ombro. “Duas horas na minha direção, está pronta?”
Rita e eu saímos correndo, deixando os homens no campo coçando a cabeça. Escorregamos para além da cerca que faz fronteira com os campos de treinamento. A brisa que soprava do mar era fria contra a nossa pele. Por um tempo corremos por correr. O litoral ficava bem distante à nossa esquerda, as águas azul cobalto se espalhando para além da barricada sem sentido de arame farpado que alinhava a praia. O oceano ainda estava azul porque tínhamos lutado para mantê-lo assim. Um barco de patrulha fazendo um percurso paralelo ao nosso fazia uma vigília ao longo da linha que dividia o mar e o céu.
Os gritos dos soldados sumiram. Os únicos sons eram o barulho do mar, os barulhentos barulhos de botas militares no concreto, o coração batendo e o suspiro da respiração de Rita.
Parei abruptamente e continuei parado, como eu estava antes de começarmos a correr. Rita não pôde cortar sua velocidade a tempo e bateu em mim. Eu dei alguns passos estranhos.
Rita tropeçou enquanto recuperava o equilíbrio. Nos abraçamos para não cair. Meu braço estava enrolado em torno do corpo de Rita e o dela em volta do meu.
Sua carne tonificada pressionou contra mim como uma armadura. Um perfume agradável assaltou meus sentidos. Sem o meu Jacket, eu estava indefeso contra quaisquer produtos químicos dispersos que caíssem do ar.
“Uh, desculpa.” Rita foi a primeira a se desculpar.
“Não, foi mal, eu não deveria ter parado.”
“Não. Quero dizer, desculpa, mas…” ela disse.
“Você não tem que se desculpar.”
“Eu não estou tentando me desculpar, é só — se importaria de soltar minha mão?”
“Ah —” Um anel vermelho se destacou no pulso de Rita onde meus dedos tinham agarrado sua pele. “Desculpa.”
Para mim, Rita era uma velha amiga, companheira de muitas batalhas. Mas para ela, Keiji Kiriya era um estranho que acabara de conhecer. Nada mais do que uma silhueta cinza de outra época. Só eu me lembro do alívio que senti quando ficamos de costas, pressionados um contra o outro. Só eu tinha experimentado a eletricidade que fluía entre nós quando nossos olhos se encontravam em compreensão implícita. Só eu sentia uma sensação de saudade e devoção.
Antes de me juntar ao exército, vi um show sobre um homem apaixonado por uma mulher que perdera a memória em um acidente. Ele deve ter passado por algo como o que eu estava passando agora. Desesperadamente vendo todas as coisas que você ama no mundo sendo levadas pelo vento enquanto você é impotente.
“Eu estou bem…” Eu nem sabia o que dizer desta vez, apesar do loop anterior.
“Este é o seu jeito inteligente de tirar nós dois de lá?”
“Sim, eu acho.”
“Bom. Agora, onde estamos exatamente?” Rita girou em seu calcanhar enquanto ela tomava seus arredores.
Estávamos em um amplo espaço limitado por um lado pela barricada de arame farpado e uma cerca nos outros três. As ervas daninhas através das fendas no concreto que cobria o recinto de cerca de dez mil metros quadrados.
“O Campo de Treinamento No. 3.”
Consegui ir de um campo de treinamento para outro. Passei muito tempo com Ferrell. Seu amor pelo treinamento era limitado a uma doença mental séria, e começou a me contagiar.
Rita se voltou para mim. “É meio triste.”
“Desculpa.”
“Não, gosto desse vazio.”
“Você tem gostos incomuns.”
“O lugar onde cresci estava desesperadamente vazio, nós não tínhamos oceanos, o céu aqui é… é tão brilhante” ela disse, com a cabeça inclinada para trás.
“Você gosta? Do céu?”
“Não é o céu, é a cor, o azul cintilante.”
“Então por que sua Jacket é vermelha?”
Alguns momentos de silêncio se passaram entre nós antes que ela voltasse a falar.
“O céu em Pittsfield é tão desbotado, como a cor da água depois de ter enxaguado um pincel com tinta azul. Como se toda a água no chão tivesse diluído o céu.” Olhei para Rita. Ela olhou para mim, olhos castanhos olhando para os meus. “Desculpa, esqueça que eu disse isso”, ela falou.
“Por quê?”
“Não foi uma coisa muito Rita Vrataski de dizer.”
“Eu não acho isso.”
“Eu acho.”
“Bem, eu pensei que era legal”, falei.
Rita abriu os olhos. Por um instante, eles brilharam com um brilho de Cadela do Campo de Batalha. O resto do rosto permaneceu imóvel.
“O que você disse?”
“Eu disse que soou agradável.”
Ela pareceu surpresa com isso. Uma mecha de cabelo cor de ferrugem caiu sobre sua testa, e ela ergueu a mão para brincar com ela. Eu peguei um vislumbre de seus olhos entre seus dedos. Eles estavam cheios de uma luz estranha. Parecia uma moça cujas cordas do coração começaram a se desfazer, uma criança cujas mentiras haviam sido descobertas pelo olhar penetrante de sua mãe.
Eu quebrei o silêncio constrangedor. “Algo errado?”
“Não.”
“Eu não estava rindo de você, é só algo que queria dizer. Acho que não deu certo.”
“Nós tivemos uma conversa como esta em um loop anterior, não tivemos? Mas só você se lembra”, disse Rita.
“Sim. Desculpa.”
“Não, não me incomoda” disse, balançando a cabeça.
“Então, o que há de errado?”
“Me diga o que está planejando.”
“Bem, há muito que ainda não entendo”, eu disse. “Preciso que me explique como terminar o loop.”
“Eu estou perguntando o que você está planejando fazer em seguida para que eu não precise me preocupar com isso.”
“Você está de brincadeira?” Eu perguntei.
“Estou falando sério.”
“Mas você é Rita Vrataski, você sempre sabe o que fazer.”
“Será divertido estar fora do loop para variar.”
“Não é muito divertido para mim.” Eu me perguntava o que ela queria dizer com “para variar”. Eu pensei que ela já tinha sido libertada do loop, depois de 211 vezes por trinta horas na Flórida. Abri a boca para perguntar, mas ela interrompeu.
“Acho que ganhei o direito de sentar e assistir”, disse ela. “Já tive que lidar com merda o suficiente. É a sua vez. Quanto mais cedo você aceitar, melhor.”
Suspirei. “Eu sei.”
“Ei, não me culpe.”
“Bem, ainda é um pouco cedo, mas a minha próxima parada é a cafeteria. Espero que você esteja querendo comida japonesa.”
O café era barulhento. Em um canto, um grupo de soldados estava vendo quem poderia fazer mais pranchas em três minutos. Outro grupo que andamos passado estava jogando no frango um líquido misterioso que parecia uma combinação de ketchup, mostarda e suco de laranja. No fim da sala, um cara cantava uma canção popular — ou talvez fosse uma antiga canção tema de anime — que foi popular há pelo menos setenta anos. Uma das religiões originalmente usou essa música como uma canção anti guerra, mas isso não incomodava os caras que se inscreveram na UDF. A melodia era fácil de lembrar, e isso é tudo o que precisava para ser um sucesso com uma multidão de soldados Jacket.
Vamos todos nos alistar no exér-cito!
Vamos todos nos alistar no exér-cito!
Vamos todos nos alistar no exér-cito!
E nos matar de algum jeito!
Eu vi isso 159 vezes. Mas desde que fui pego no loop, mal notei uma coisa sobre o mundo fora de minha própria cabeça que não se refere diretamente à minha maneira de sair daqui. Sentei-me tranquilamente em uma pequena e cinzenta cafeteria, desprovida de som, empurrando metodicamente comida em minha boca.
Mesmo que a batalha de amanhã fosse ganha, alguns dos soldados aqui não iriam voltar. Se fosse ruim, menos ainda retornariam. Todo mundo sabia disso. A Infantaria Armada era o Papai Noel, e a batalha era o nosso Natal. A única coisa que os elfos poderiam fazer na véspera de Natal eram se divertir um pouco.
Rita Vrataski estava sentada em frente a mim, comendo o mesmo almoço pela 160ª vez. Ela examinou seu 160º umeboshi.
“O que é isso?”
“Umeboshi, as pessoas chamam de ameixa, mas é mais parecido com um damasco seco ao sol, e depois decapado.”
“Como é o gosto?”
“A comida é como a guerra, você tem que experimentá-la por si mesmo.”
Ela cutucou duas ou três vezes com seus pauzinhos, depois soprou um pouco e colocou tudo na boca. A azedume a atingiu como um golpe de um lutador pesado e ela se dobrou, agarrando a garganta e o peito. Eu podia ver os músculos se contorcendo em suas costas.
“Gosta disso?”
Rita trabalhou a boca sem olhar para cima. Seu pescoço ficou tenso. Algo saiu voando de sua boca. Ela enxugou as bordas de seus lábios enquanto ofegava para respirar.
“Nem um pouco azedo.”
“Não nesta cafeteria”, eu disse. “Muitas pessoas do exterior aqui, vá para uma cafeteria local se quiser o sabor de verdade.”
Eu peguei o umeboshi da minha bandeja e coloquei na minha boca. Dei um espetáculo de sabor. A verdade seja dita, era azedo o suficiente para torcer minha boca tão apertada como uma bunda de caranguejo na maré baixa, mas não dar esse prazer para ela.
“Muito bom.” Falei.
Rita ficou de pé, sua boca era uma linha dura. Ela me deixou sentado à mesa enquanto andava pelo corredor entre as mesas, além de multidões de soldados, e até o balcão de serviço. Lá, Rachel falou com um gorila de um homem que podia alcançar e tocar o teto sem se esticar — o mesmo gorila do 4º cujo punho minha mandíbula havia encontrado vários loops atrás. A Bela e a Fera ficaram compreensivelmente surpresos ao verem o assunto de sua conversa caminhar até eles. Toda a cafeteria podia sentir que algo estava acontecendo. As conversas diminuíram e a música parou. Graças a Deus.
Rita limpou a garganta. “Posso pegar algumas ameixas em conserva?”
“Umeboshi?”
“Sim, esses.”
“Bem, claro, se você quiser.”
Rachel pegou um pequeno prato e começou a despejar umeboshi de um grande balde de plástico.
“Eu não preciso do prato.”
“Como?”
“Essa coisa que você está segurando na mão esquerda, sim, o balde.”
“Hum, as pessoas geralmente não comem isso de uma só vez,” Rachel disse.
“Algum problema?”
“Não, eu suponho que não —”
“Obrigado pela ajuda.”
Balde na mão, Rita voltou triunfante. Ela o jogou no meio da mesa bem na minha frente.
O recipiente tinha cerca de trinta centímetros de diâmetro, grande o suficiente para servir cerca de duzentos homens, já que ninguém queria mais do que um. Grande o bastante para afogar um gato pequeno. A base da minha língua começou a doer apenas olhando para ela. Rita pegou seus pauzinhos.
Ela apontou uma das frutas enrugadas, avermelhadas do balde e o estalou em sua boca. Ela mastigou. Ela engoliu em seco.
“Nem um pouco azedo.” Seus olhos lacrimejaram.
Rita me passou o pote com um empurrão. Minha vez. Escolhi o menor que pude encontrar e o coloquei em minha boca. Eu comi e cuspi o caroço.
“O meu também.”
Estávamos a jogar o nosso próprio jogo gastronómico. As pontas dos pauzinhos de Rita estremeceram quando ela mergulhou de volta no pote. Ela tentou duas vezes pegar outro umeboshi entre eles antes que ela desistisse e apenas espetou um em um único pau, levantando-o para a boca. As frutas arrastaram gotas de líquido cor-de-rosa que mancharam a bandeja onde caíram.
Uma multidão de espectadores começara a se reunir ao nosso redor. Eles observaram em um silêncio inquieto no início, mas a excitação cresceu rapidamente com cada caroço cuspido na bandeja.
O suor frisado em nossa pele. Rachel estava de lado, observando com um sorriso preocupado. Eu avistei meu amigo do 4º na multidão. Ele estava passando um bom tempo me observando sofrendo. Cada vez que Rita ou eu colocávamos mais ume em nossas bocas, uma onda chacoalhava a multidão.
“Comam mais rápido!”
“Não desista agora, continuem!”
“Você não vai deixar essa garota te vencer, não é?”
“Porra, você acha que ele pode derrotar Rita? Você é louco!”
“Coma! Coma! Coma!”
“Cuidado com as portas, não quero ninguém quebrando isso! Eu aposto dez dólares no cara magricela!” Seguido imediatamente por: “Vinte em Rita!” Então alguém gritou: “Onde está meu camarão frito? Eu perdi meu camarão frito!”
Estava quente, barulhento, e de uma maneira não dá para explicar, eu me senti em casa. Havia uma ligação invisível que não estava lá nos loops anteriores. Tinha um gosto do que o amanhã traria, e de repente todas as pequenas coisas que acontecem em nossas vidas, os detalhes do dia, assumiram uma nova importância. Só então, estar rodeado por todo esse barulho era bom.
No final, nós comemos todos os umeboshi do pote. Rita comeu o último. Falei que foi um empate, mas como Rita tinha comido o primeiro, ela insistiu que ela tinha vencido. Quando me opus, Rita sorriu e ofereceu para resolvermos isso com outro pote. É difícil dizer se aquele sorriso significava que ela realmente poderia continuar comendo ou se a sobrecarga de comida azeda a deixou um pouco zonza. O gorila do 4º trouxe outro pote cheio do fruto vermelho do inferno e o colocou no meio da mesa com um baque.
Nesse ponto, já sentia que eu era umeboshi da cintura para baixo. Levantei a bandeira branca.
Depois disso, falei com Rita sobre tudo — o Yonabaru que nunca se calava, Sargento Ferrell e sua obsessão de treinamento, a rivalidade entre o nosso pelotão e o 4º. De sua parte, Rita me disse coisas que não deu tempo para contar no último loop. Quando não estava dentro de seu Jacket, a Cadela tinha um sorriso tímido que se adequava bem a ela. As pontas de seus dedos cheiravam a graxa de máquina, ameixa em conserva e um pouco de café.
Eu não sei o que eu havia ativado ou como, mas naquele 160º loop minha relação com Rita se aprofundou como nunca. Na manhã seguinte, Jin Yonabaru não acordou no beliche superior. Ele acordou no chão.
{3} Não encontrei paz no sono. Um Mimic apagava a minha vida, ou eu apagava no meio da batalha. Depois disso, nada. Então, sem aviso, o nada cedeu. O dedo que apertava o gatilho do meu rifle estava preso a três quartos do meu livro de bolso. Eu me encontrava deitado na cama, cercada por sua armação de tubos, ouvindo a voz aguda do DJ anunciar o clima do dia. Claro e ensolarado aqui nas ilhas, o mesmo que ontem, com um aviso UV para a tarde. Cada palavra abriu caminho no meu crânio e ficaram presas lá.
Em “ensolarado” eu peguei a caneta, em “ilhas” escrevi o número na minha mão, e quando ele chegou a “aviso UV” já tinha saído da cama e ia para o arsenal. Essa era a minha rotina de despertar.
Dormir na noite antes da batalha era uma extensão do treinamento. Por alguma razão, meu corpo nunca ficou cansado. A única coisa que trouxe comigo foram minhas memórias e as habilidades que eu tinha dominado. Passei a noite atirando e girando, minha mente relembrando os movimentos que tinha aprendido no dia anterior enquanto rodava o programa em meu cérebro. Eu tinha que ser capaz de fazer o que não pude da última vez no loop, matar os Mimics que não pude matar, salvar os amigos que não pude salvar. Como fazer uma prancha isométrica em minha mente. Meu próprio tormento noturno privado.
Acordei em modo de batalha. Como um piloto passando por interruptores antes da decolagem, eu me inspecionava uma parte de cada vez, verificando se havia músculos com câimbra. Não pulava nem o dedo mindinho.
Girando noventa graus, saltei da cama e abri os olhos. Pisquei. Minha visão ficou turva. O quarto era diferente. A cabeça do primeiro-ministro não estava olhando para mim de cima do modelo de maiô. Quando notei, já era tarde demais. Meu pé procurou uma plataforma que não estava lá e minha inércia me mandou cair da cama. Minha cabeça bateu em um chão coberto de azulejos, e finalmente percebi onde estava.
A luz do sol brilhava através de camadas de vidro resistente a explosões e se espalhava pelo vasto e arejado quarto. Uma brisa artificial do purificador derramou sobre meu corpo enquanto estava deitado esparramado no chão. As paredes espessas e vidro bloqueando completamente os sons da base que eram normalmente tão altos em meus ouvidos.
Eu estava no Sky Lounge. Originalmente uma sala de reunião dos oficiais que era como uma sala de recepção, a visão noturna de Uchibo através de seu vidro multicamadas daria um bom preço.
Tanto quanto a vista foi boa, foi um lugar ruim para acordar, a menos que você seja uma cabra das montanhas ou um eremita que ame as alturas. Ou você poderia ser Yonabaru. Ouvi que ele tinha um lugar secreto aqui em cima, um andar mais alto do que até mesmo os oficiais foram autorizados a ir. “Seu ninho de amor”, nós o chamávamos.
Mais como um amor aéreo.
Olhando para o outro lado do oceano, pude ver a suave curva do horizonte. A praia de Uchibo era vagamente visível através da névoa da manhã. Os triângulos de ondas se ergueram, transformaram-se em espuma e desapareceram no mar. Além dessas ondas ficava a ilha que os Mimics faziam a desova. Por um momento, pensei ter visto um parafuso verde brilhante disparar através das ondas. Pisquei meus olhos. Foi apenas um reflexo do sol na água.
“Você certamente dormiu bem ontem à noite.” Rita ficou de pé sobre mim, vinda do outro quarto.
Olhei lentamente do chão de cerâmica. “Parece que já faz anos.”
“Anos?”
“Desde que eu tive uma boa noite de sono, tinha esquecido como é bom.”
“Isso é coisa do loop.”
“Você deveria saber.”
Rita fez um gesto de simpatia.
Nossa salvadora, a Cadela do Campo de Batalha, parecia mais relaxada esta manhã do que eu jamais a vira. Seus olhos eram mais suaves à luz fresca da manhã, e a luz do sol fazia com que seu cabelo cor de ferrugem brilhasse de laranja. Ela me deu o tipo de olhar que daria a um cachorro que a seguiu até em casa. Ela era bonita.
A sala de repente ficou muito brilhante, e eu estreitei os olhos contra o brilho. “Que cheiro é esse?”
Um odor incomum misturado com o ar limpo proveniente do filtro. Não era necessariamente um cheiro ruim, mas eu não o chamaria de agradável. Muito picante para ser comida, demasiado salgado para ser perfume. Francamente, eu não sabia o que diabos era.
“Tudo o que fiz foi abrir a sacola, você tem um nariz afiado.”
“No treinamento, eles nos disseram para ser cautelosos com quaisquer odores incomuns, uma vez que isso poderia significar que havia um problema com o filtro Jacket — não que eu esteja em um Jacket agora.”
“Nunca conheci ninguém que confundisse comida com armas químicas antes”, disse Rita. “Você não gosta do cheiro?”
“Gostar não é a palavra que eu usaria, cheira… estranho.”
“Não tem como você me agradecer por ferver um café para nós?”
“Isso é… café?”
“Claro que é.”
“Esta não é sua maneira voltar com o lance do umeboshi, é?”
“Não, isto é o que os grãos de café torrados colhidos de árvores de café reais que cresceram no chão se parecem.”
“Tenho uma xícara de café artificial todos os dias.”
“Espere até que eu prepare, você ainda não cheirou nada.”
Eu não sabia que havia algum grão de café natural sobrando no mundo. Suspeitei que o café real ainda existia, em algum lugar, mas não sabia que alguém ainda tinha o hábito de beber.
A bebida chamada de café nos dias de hoje era feita a partir de feijões cultivados em laboratório com aromatizante artificial adicionando sabor e aroma. Os artificiais não cheiravam tão forte como os grãos que Rita estava triturando, e não provocavam seu olfato como estes. Suponho que seja possível extrapolar o cheiro do material artificial e eventualmente se aproximar do real, mas a diferença de impacto era como a diferença entre uma 9mm e uma 120mm.
“Isso deve valer uma pequena fortuna”, falei.
“Eu disse que estávamos na linha do Norte da África antes de virmos aqui, era um presente de uma das aldeias que libertamos.”
“Um presente.”
“Ser rainha não é tudo ruim, sabe.”
Um moedor de café a manivela estava no meio da mesa de vidro. Um pequeno dispositivo de forma única — vi um desses uma vez em uma loja de antiguidades. Ao lado, havia algum tipo de funil de cerâmica coberto com um pano manchado de marrom. Imaginei que você devia colocar os grãos de café no meio e passar a água através deles.
Um fogão a gás portátil produzido pelo exército e uma frigideira pesada dominavam o centro da mesa. Um líquido transparente borbulhava ruidosamente na frigideira. Duas canecas nas proximidades, um lascado com pintura rachada, e um que parecia novo. Na própria borda da mesa havia um saco plástico reutilizável cheio de grãos de café marrom escuro.
Rita não parecia ter muitos pertences. Não havia nada além de um saco translúcido no pé da mesa — parecia um saco de boxe. Sem o equipamento de fazer café para sustenta-lo, a bolsa tinha desabado, quase vazia. Soldados deviam estar prontos para serem enviados para os cantos mais distantes da Terra, a qualquer momento, não tinham permissão para muita carga, mas até mesmo para esses padrões, Rita extrapolava. O fato de que uma das poucas coisas que ela trouxe foi um moedor de café a mão não ajudou a melhorar a ideia de que ela era meio estranha.
“Você pode esperar na cama, se quiser.”
“Eu prefiro assistir. Isto é interessante.”
“Então acho que vou ficar moendo.”
Rita começou a girar o cabo do moedor de café. Um som grave e sombrio encheu a sala e a mesa de vidro tremeu. O cabelo de Rita tremeu sobre sua cabeça.
“Quando a guerra acabar, eu vou te servir o melhor chá verde que você já provou — em troca do café.”
“Pensei que o chá verde veio da China.”
“Pode ter começado lá, mas foi aperfeiçoado aqui. Levou bastante tempo antes que eles sequer permitissem que ele fosse exportado. Me pergunto que tipo devemos tomar.”
“Eles o servem gratuitamente em restaurantes?”
“Isso mesmo.”
“Depois da guerra…” Rita soou um pouco triste.
“Ei, esta guerra vai acabar um dia, sem dúvida, você e eu vamos cuidar disso.”
“Você tem razão, tenho certeza que sim. Rita pegou os grãos e os espalhou no pano que cobria o funil. “Você tem que cozinhar primeiro.”
“Oh…”
“Muda completamente o sabor, algo que um velho amigo me ensinou uma vez, não sei como funciona, mas ele estava certo.”
Ela umedeceu os grãos moídos com um pouco de água fervente. As bolhas de cor creme sibilavam onde a água os tocava. Um aroma marcante, amargo, doce e azedo, encheu o ar que cercava a mesa.
“Ainda cheira estranho?”
“O cheiro é maravilhoso.”
Usando um movimento circular, Rita o derramou cuidadosamente na água. Gota a gota, um líquido marrom brilhante começou a encher a chaleira de aço que esperava em baixo.
Uma fina linha de vapor começava a subir da caneca quando um som penetrante perfurou as paredes grossas e estremeceu o vidro resistente do Sky Lounge. O piso de cerâmica tremeu. Rita e eu estávamos no chão em um piscar de olhos. Nossos olhos se encontraram.
Não havia nenhum tilintar de vidro quebrado, apenas um som afiado, como se alguém tivesse jogado um livro grosso no chão. Fraturas em forma de teia de aranha se espalhavam pelo vidro da janela, um dardo cor de areia estava no meio da teia. O cristal líquido roxo penetrou nas fendas e no chão.
Tarde demais, sirenes começaram a explodir através da base. Três fios de fumaça subiam pela janela. A água fora da costa tinha virado um verde lívido.
“U-um ataque?” Minha voz estava tremendo. Provavelmente meu corpo também. Em todos os 159 loops nunca houve um ataque surpresa. A batalha deveria começar depois que pousássemos na ilha de Kotoiushi.
Um segundo e terceiro dardos impactaram a janela. A vidraça inteira se rachou, mas de alguma forma se manteve firme. Fissuras atravessavam a janela. Raios de luz nadaram diante dos meus olhos.
Rita tinha ficado de pé e colocava calmamente a chaleira de volta ao fogão portátil. Ela matou a chama com uma mão hábil.
“Este vidro é realmente forte, nunca se sabe se é apenas conversa”. Rita refletiu.
“Nós temos que recuar — não, eu tenho que encontrar o sargento — espere, nossos Jackets!”
“Você deve começar se acalmando.”
“Mas, o que está acontecendo!” Eu não tinha a intenção de gritar, mas não pude me controlar. Nada disso estava no roteiro. Tinha estado tanto tempo no loop que a ideia de novos acontecimentos me aterrorizava. O acontecimento em questão envolver Mimics e dardos explodindo contra as janelas do quarto que eu estava não ajudou.
“Os Mimics usam os loops para ganhar a guerra. Você não é o único que se lembra do que aconteceu em cada ciclo.”
“Então isso é tudo porque estraguei a última vez?”
“Os Mimics devem ter decidido que essa era a única maneira de vencer.”
“Mas… a base — como chegaram até aqui?”
“Eles foram para o interior do Mississipi para atacar Illinois uma vez, eles são criaturas aquáticas, não é de surpreender que tenham encontrado um caminho para uma linha de quarentena criada por um bando de seres humanos que habitam a terra”. Rita estava calma.
“É…”
“Deixe a preocupação para os oficiais, para você e para mim, isso significa que vamos lutar aqui em vez de Kotoiushi.”
Rita estendeu a mão. Segurei e ela me ajudou a ficar de pé. Seus dedos tinham calos nas bases por causa das placas de contato Jacket. A palma da mão com a qual ela segurava a chaleira era muito mais quente que a minha. Eu podia sentir a apreensão no meu peito começar a recuar.
“O trabalho de um soldado Jacket é matar todos os Mimic à vista, certo?”
“Sim. Sim, isso mesmo.”
“Iremos primeiro para o hangar dos Estados Unidos, eu colocarei o meu Jacket, vamos pegar armas para nós dois, eu te dou cobertura no caminho para o hangar japonês.”
“Ok.”
“Então caçamos o servidor e o matamos, fim do loop, depois disso, basta limpar tudo o que restou.” Eu parei de tremer. Rita sorriu com ironia. “Não há tempo para o nosso café da manhã.”
“Só tenho que terminar isso antes que fique frio”, eu disse, pegando um copo.
“Está tentando melhorar o humor?”
“Valeu a pena.”
“Isso poderia ser bom, embora café nunca tenha o mesmo gosto quando você reaquece e se deixar o material natural por aí, depois de cerca de três dias começa a crescer mofo. Isso aconteceu comigo uma vez na África. Eu quis me bater.”
“E ficou bom?”
“Muito engraçado.”
“Se você não beber, como sabe que não está?”
“Você pode beber todo o café mofado que quiser. Não espere que eu cuide de você quando ficar doente.”
Rita se afastou da mesa, deixando para trás o café fresco natural. Quando começamos a sair do quarto, uma pequena mulher que estava pressionada contra a porta caiu. Seus cabelos negros estavam trançados em um rabo-de-cavalo que flutuou atrás de seu bizarro capacete com penas. A nativa americana favorita de todos, Shasta Raylle.
“Estamos sob ataque, estamos sob ataque!” gritou, quase ofegante. Seu rosto estava coberto de linhas de tinta vermelha e branca. Comecei a me perguntar se o loop inteiro era apenas eu ficando louco nos últimos segundos de vida em uma cratera fumegante em algum lugar.
Rita deu um passo para trás para apreciar uma das mentes mais brilhantes que o MIT tinha a oferecer. “Que tribo está atacando?”
“Não é uma tribo! Os Mimics!”
“É assim que você se veste para a batalha?”
“Está ruim?” perguntou Shasta.
“Eu não costumo criticar os costumes de alguém, mas eu diria que você está cerca de duzentos anos de atrasada.”
“Não, você não entende!” Shasta disse. “Eles me forçaram a vestir assim na festa ontem à noite! Esse tipo de coisa sempre acontece quando você não está por perto.”
Acho que todo mundo tem um peso para carregar, pensei.
“Shasta, por que você está aqui?” disse Rita com surpreendente paciência.
“Eu vim dizer que seu machado não está no hangar, está na oficina.”
“Obrigado pelo aviso.”
“Tenha cuidado lá fora.”
“O que você vai fazer?”
“Eu não posso lutar, então pensei em encontrar um bom lugar para me esconder.”
“Use meu quarto” disse Rita rapidamente. “Os dardos não conseguem atravessar as paredes ou o vidro, é mais difícil do que parece, só precisa me fazer um pequeno favor.”
“Um… favor?”
“Não deixe ninguém entrar aqui até que ele ou eu voltemos.” Rita apontou um polegar em minha direção. Eu não acho que Shasta tenha percebido que havia alguém parado ao lado de Rita até então. Quase pude ouvir seus grandes olhos piscando de algum lugar atrás de seus óculos enquanto ela me olhava. Eu não tinha conhecido Shasta Raylle ainda neste loop.
“E você é…?”
“Keiji Kiriya, um prazer.”
Rita caminhou em direção à porta. “Você não deve deixar ninguém entrar, não importa quem eles sejam ou o que digam. Eu não me importo se é o presidente, mande ele ir se foder.”
“Sim senhora!”
“Eu estou contando com você. Oh, e uma outra coisa —”
“Sim?”
“Obrigado pelo charme da sorte, vou precisar.”
Rita e eu corremos para o hangar.
{4} Quando Rita e eu fizemos a viagem relativamente longa do Sky Lounge, as Forças Especiais dos Estados Unidos já haviam estabelecido um perímetro defensivo com seu hangar no centro.
Dois minutos para Rita vestir o Jacket. Um minuto quarenta e cinco segundos para correr para a oficina de Shasta. Seis minutos e quinze segundos para derrubar dois Mimics que encontramos no caminho para o hangar Japonês. Ao todo, doze minutos e trinta segundos se passaram desde que deixamos o Sky Lounge.
A base estava um caos. Chamas disparavam para o céu e veículos quebravam nas estradas. A névoa esfumaçada enchia as vielas entre os quartéis, tornando difícil de ver. Um rojão de pequeno porte, inútil contra Mimics, rasgou o ar o ar, abafado pelo ocasional rugido de um lançador de foguetes. Os dardos se encontraram com os helicópteros de ataque enquanto eles se precipitavam para o céu, rompendo suas pás de rotor e os enviando espiralando em direção ao chão.
Para cada pessoa que corria para o norte para fugir da carnificina, havia outra correndo para o sul. Não havia maneira de saber qual caminho era seguro. O ataque surpresa quebrou a cadeia de comando. Ninguém no topo tinha uma ideia melhor do que estava acontecendo do que quem estava abaixo.
Não havia praticamente nenhum cadáver Mimic, e não havia nenhum sinal dos dez mil Jackets na base. Corpos humanos estavam espalhados aqui e ali. Não demorou mais do que um olhar para um torso esmagado para saber que eram KIAs.
Um soldado morto estava deitado de bruços no chão, trinta metros na frente do meu hangar. Seu torso tinha sido rasgado em carne moída, mas ele ainda estava segurando uma revista com as duas mãos. Debaixo de uma fina camada de poeira, uma loira sorridente e de topless olhava das páginas. Eu conheceria aqueles seios prodigiosos em qualquer lugar. O cara na cama perto da minha esteve olhando para eles durante todas aquelas conversas que eu tinha com Yonabaru no quartel. Era Nijou.
“Pobre bastardo, morreu vendo pornografia”, eu disse.
“Keiji, você sabe o que temos que fazer.”
“Sim, eu sei, não há como voltar desta vez, não importa quem morra.”
“Não há muito tempo, vamos.”
“Estou pronto.” Pensei que estivesse por um momento. “Isso não é uma batalha, é um massacre.”
A porta do hangar estava aberta. Havia marcas onde alguém tinha agarrado a fechadura com algo parecido com um pé-de-cabra. Rita encostou o machado de batalha no chão e destravou o rifle de 20mm pendurado nas costas dela.
“Você tem cinco minutos.”
“Só preciso de três.”
Eu corri para o hangar. Era um edifício comprido e estreito com Jackets em ambos os lados da passagem. Cada edifício abrigava Jackets suficientes para um pelotão, vinte e cinco para uma parede. O ar interior era pesado e úmido. As luzes acesas nas paredes tremiam. A maioria dos Jackets ainda pendurados em seus ganchos, sem vida.
O cheiro forte de sangue quase me derrubou. Uma enorme piscina escura tinha se reunido no centro da sala, manchando o concreto. Duas linhas que pareciam ter sido pintadas com uma escova se estendiam da piscina para a outra entrada, na extremidade do hangar.
Alguém havia sido terrivelmente ferido aqui, e quem os arrastou para longe não tinha meios para fazê-lo perfeitamente. Se todo o sangue tivesse vazado de uma pessoa, ele já estaria morto. Um punhado de Jackets estava espalhado em desordem no chão, como a pele dessecada de alguma besta em forma humana.
Um Jacket era muito parecido com um daqueles trajes ridículos que usam em parques temáticos para se parecerem com algum rato sorridente. Quando estão vazios, simplesmente penduram na parede com buracos na parte de trás esperando por alguém para vestir.
Como Jackets liam minúsculos sinais elétricos musculares, cada um tem que ser feito sob encomenda. Se usasse o Jacket de outra pessoa, não há como dizer o que aconteceria. Poderia não se mover, ou poderia esmagar seus ossos como galhos, mas seja qual for o resultado, não seria bom. Ninguém conseguiu saiu do treinamento sem aprender pelo menos isso. Os Jackets no chão eram evidências claras de que alguém havia ignorado essa regra básica por necessidade desesperada. Eu balancei a cabeça.
Meu Jacket tinha sido deixado intacto em seu ancoradouro. Eu entrei. Dos trinta e sete check-ups, eu saltei vinte e seis.
Uma sombra se movia para a extremidade do hangar, onde as trilhas de sangue conduziam — onde Rita não observava. Meu sistema nervoso entrou em pânico. Eu estava a vinte metros da porta, talvez menos. Um Mimic poderia cobrir a distância em menos de um segundo. Um dardo ainda mais rápido.
Eu poderia matar um Mimic com minhas mãos nuas? Não. Posso lidar com isso? Sim. Mimics movem mais rápido do que até mesmo um humano com Jackets poderiam se mover, mas seus movimentos eram fáceis de ler. Eu poderia esquivar de seu dardo e me apertar contra a parede para comprar tempo suficiente para chegar até Rita. Inconscientemente, assumi uma postura de batalha, girando minha perna direita no sentido horário e minha esquerda no sentido anti-horário. Então a identidade da sombra finalmente se revelou: era Yonabaru.
Ele estava coberto de sangue da cintura para baixo. O sangue seco cobria sua testa. Parecia um pintor descuidado. Um sorriso substituiu a tensão em seu rosto e ele começou a correr em minha direção.
“Keiji, merda, eu não vi você a manhã toda. Estava começando a me preocupar.”
“Eu também. Estou feliz que você esteja bem.” Saí do modo de evasão e pisei sobre as roupas que eu tinha deixado no chão.
“O que você acha que está fazendo?” ele perguntou.
“Como é que eu vou matar alguns Mimics?”
“Você está louco, não é a hora.”
“Você tem algo melhor para fazer?”
“Eu não sei, que tal uma boa retirada, ou encontrar um lugar onde os Mimics não estejam e ir para lá. Ou talvez simplesmente fugir da merda!”
“Os americanos estão se preparando, precisamos nos juntar a eles”.
“Eles não são nós, esqueça eles, se não partimos agora, talvez não tenhamos outra chance.”
“Se corrermos, quem vai sobrar para lutar?”
“Você enlouqueceu? Escute o que está dizendo!”
“É para isso que treinamos.”
“A base está perdida, cara, está fodida.”
“Não enquanto Rita e eu estivermos aqui.”
Yonabaru agarrou meu braço tentando me puxar como uma criança puxando com todo seu peso a mão de seu pai para chegar à loja de brinquedos. “Você está ficando louco, cara, não há nada que você ou eu possamos fazer que faça a diferença”, ele disse com outro puxão.
“Talvez esta seja a sua ideia de dever, honra, toda essa merda, mas acredite, não temos nenhum dever de nos matarmos por nada… Eu e você somos apenas soldados comuns… Nós não somos como Ferrell ou aqueles caras das Forças Especiais. A batalha não precisa de nós.”
“Eu sei.” Eu sacudi a mão de Yonabaru com a menor das contrações. “Mas preciso da batalha.”
“Você realmente quer fazer isso, não é?”
“Não espero que você entenda.”
Rita estava me esperando. Tinha levado quatro minutos.
“Não diga que não te avisei.”
Ignorei o comentário glorioso de Yonabaru e saí correndo do hangar. Rita e eu não éramos os únicos soldados vestindo Jackets agora. Meu HUD foi preenchido com ícones indicando outros aliados. Agrupados em grupos de dois ou três, eles haviam se escondido nos quartéis ou atrás de veículos derrubados, onde podiam saltar em intervalos para disparar rajadas curtas com seus rifles.
O ataque surpresa Mimic tinha sido impecável. Os soldados foram completamente isolados do comando. Mesmo aqueles vestindo Jackets não estavam lutando como um pelotão disciplinado — era mais como uma multidão armada. Para que a infantaria blindada pudesse ser eficaz contra um Mimic, eles tiveram que sair da cobertura e jogar tudo o que tinham no inimigo apenas para retardá-los. Um a um, mesmo dois para um, não tinha chance.
Ícones aliados piscaram no meu monitor. O número de aliados se manteve estável graças às Forças Especiais dos EUA. O número de ícones Mimic estava aumentando constantemente. Metade do tráfego era estática, e o resto era uma mistura de gritos de pânico e “Foda-se! Foda-se!” Não ouvi ninguém dar ordens. As terríveis previsões de Yonabaru não pareciam muito distantes. Eu abri um canal de comunicação com Rita. “E agora?”
“Faça o que fazemos melhor, mate alguns Mimics”.
“Alguma coisa mais específica?”
“Siga-me, vou te mostrar.”
Nós nos juntamos à batalha. O Jacket carmesim de Rita era um estandarte para o nosso exército fragmentado se recuperar. Fomos de um soldado solitário para o outro, reunindo-os. Até que o último Mimic estivesse morto, continuaríamos.
A Valquíria voou de um extremo da Flower Line para o outro à vontade, levando sua mensagem de esperança para todos que a viram. Até mesmo as tropas japonesas, que nunca tinham visto seu Jacket em pessoa, muito menos lutaram a seu lado, ganharam vontade e propósito à vista daquele aço vermelho cintilante. Onde quer que ela fosse, o coração da batalha seguia.
Em seu Jacket, Rita era invencível. Seu companheiro poderia ter um calcanhar de Aquiles ou dois, mas eu era melhor que qualquer Mimic. O inimigo da humanidade havia encontrado os seus carrascos. Era hora de mostrar a eles o quão profundo no Inferno eles haviam caído.
Levando células de energia e munição dos mortos, chutamos e pisoteamos um no campo de batalha. Se um edifício entrava em nosso caminho, nós criávamos um novo caminho na força. Detonamos um depósito de combustível para destruir uma horda inteira de Mimics. Arrancamos parte da base da torre de antena e usamos como barricada. A Cadela do Campo de Batalha e o escudeiro ao seu lado eram a encarnação da morte em aço.
Encontramos um homem escondido atrás do casco ardente de um carro blindado. Um Mimic estava se abaixando sobre ele, e eu sabia sem ninguém falar que este era meu. Eu bati e o Mimic caiu. Rapidamente, me coloquei entre o cadáver do Mimic e o homem para protegê-lo da areia que se derramava do seu corpo. Sem um Jacket para filtrar os nanorobôs, a areia era mortal.
Rita segurou o perímetro em volta do ferido. Fumaça subiu do carro, reduzindo a visibilidade para quase nada. A dez metros de distância, por volta das seis horas, estava uma torre de aço que desabou. Além disso, nosso Doppler estava repleto de pontos brancos de luz. Se ficássemos aqui seríamos cercados por Mimics.
A perna do homem estava presa sob o veículo virado. Ele era bem musculoso, uma velha câmera pendia do pescoço que era muito mais grosso do que o meu. Era Murdoch, o jornalista que estava tirando fotos no lado de Rita durante o TFM.
Rita se ajoelhou e examinou sua perna. “Pensei que você ficaria fora da batalha.”
“Foi uma boa foto, major, um Pulitzer com certeza, se eu tivesse conseguido pegar, mas não contava com a explosão.” A fuligem e a sujeira sujavam os cantos de sua boca.
“Eu não sei se isso faz você seja sortudo ou azarado.”
“Encontrar uma deusa no Inferno significa que ainda tenho sorte”, disse ele.
“Esta placa está cravada em sua perna muito fundo. Vai levar muito tempo para te tirar.”
“Quais são minhas opções?”
“Você pode ficar aqui tirando fotos até que um Mimics te esmague até a morte, ou eu posso cortar sua perna e te levar para a enfermaria.”
“Rita, espera!”
“Você tem um minuto para pensar sobre isso, os Mimics estão chegando.”
Ela levantou seu machado, não realmente interessado em oferecer os sessenta segundos completos.
Murdoch respirou fundo. “Posso te perguntar uma coisa?”
“O que?”
“Se eu viver — você vai me deixar tirar uma foto sua? Sem dedos do meio?”
Os soldados japoneses e norte-americanos estavam a pouco mais de duas horas em combate. Neste tempo, os soldados tinham juntado algo que você poderia realmente chamar de uma frente. Foi uma batalha feia, mas não foi uma derrota. Haviam muitos homens ainda vivos, ainda em movimento, ainda lutando.
Rita e eu atravessamos os restos da base.
{5} A frente correu para o meio da Base da Flower Line, formando um meio-círculo de frente para a costa. As Forças Especiais dos Estados Unidos estavam no centro do arco irregular onde os ataques inimigos eram mais ferozes. Soldados empilhavam sacos de areia, se escondiam entre os escombros e despejavam balas no inimigo, foguetes e insultos quando podiam.
Se desenhasse uma linha imaginária dos EUA até a Ilha Kotoiushi, o Campo de Treinamento No. 3 estaria no meio. Era daí que os Mimics chegavam à terra. Geralmente, Mimics se comportavam com todo o intelecto de um equipamento de jardinagem. Os ataques surpresa não estavam em seu repertório militar. E podia ter certeza de que seu ponto fraco — o servidor — estaria fortemente defendido, cercado pela maior parte da força Mimic. Mísseis que cavavam sob as rochas, bombas de fragmentação que se quebravam em mil explosivos, bombas de combustível que incineravam qualquer coisa perto delas. Todas as ferramentas humanas de destruição tecnológica eram inúteis por conta própria. Derrotar o Mimic era como desarmar uma bomba. Você tem que desarmar cada parte na ordem apropriada ou ela vai explodir na sua cara.
O Jacket de Rita e o meu eram uma combinação perfeita, sangue e areia. Um machado cobrindo as costas do outro. Esquivamos dos dardos, cortamos através de Mimics, buracos explodindo em concreto com picos de carboneto de tungstênio. Tudo em busca do Mimic cuja morte poderia acabar com isso.
Eu sabia que a ordem bem o suficiente: destruir o roteador e os backups para impedir que os Mimics enviem um sinal para o passado. Pensei que eu tinha chegado bem no meu 159º loop, e não era provável Rita tivesse estragado as coisas. Mas de alguma forma tudo tinha reiniciado novamente. Conhecer Rita um pouco mais intimamente neste loop 160º foi bom, mas em troca Flower Line tinha tomado no cu. Haveria muitas mortes de pessoal não-combatente e um monte de KIA quando a poeira baixasse.
Eu poderia dizer que Rita tive uma ideia. Ela tinha passado por mais loops do que eu, então talvez ela tenha visto algo que não vi. Pensei que tivesse me transformado em um veterano, mas ao lado dela eu ainda era um novato recém-saído do treinamento.
Estávamos de pé no Campo de Treinamento No. 3, a barricada de arame farpado virada de lado. Mimics se abarrotavam na área, ombro a ombro — como se tivessem ombros. Incapaz de suportar o peso maciço dos Mimics, o concreto tinha dobrado e rachado. O sol começava a afundar no céu, lançando sombras complexas sobre o terreno irregular. O vento era tão quanto no dia anterior, mas o filtro do Jacket removia todo o traço do oceano e seu cheiro.
Então lá estava o servidor Mimic. Rita e eu o vimos ao mesmo tempo. Não sei como nós soubemos que era ele, mas soubemos.
“Não posso levantar meu esquadrão de apoio pelo link de comunicação. Nós não teremos qualquer apoio aéreo.”
“Normal.”
“Você se lembra do que tem que fazer?”
Acenei com a cabeça dentro do meu Jacket.
“Então vamos.”
O campo estava repleto de dez mil metros quadrados de Mimics esperando que nossos machados os enviassem para o esquecimento da morte. Avançamos para encontrá-los.
Quatro pernas esguias e uma cauda. Não importa quantas vezes eu visse um Mimic, nunca seria capaz de pensar em nada além de um sapo morto e inchado. Olhando, não havia como diferenciar o servidor de seus clientes, mas Rita e eu sabíamos a diferença.
Eles comiam terra e cagavam veneno, deixando para trás um terreno sem vida. A inteligência alienígena que os criara tinha dominado as viagens espaciais e aprenderam a enviar informações através do tempo. Agora eles estavam tomando o nosso mundo e transformando-o em um semelhante ao seu, até a última árvore, flor, inseto, animal e humano ser condenado.
Desta vez tínhamos que destruir o servidor. Chega de erros. Se não o fizéssemos, esta batalha nunca terminaria. Coloquei toda a inércia que ousei atrás de meu machado — um golpe limpo o roteador. “Consegui!”
O ataque veio de trás.
Meu corpo reagiu antes que eu tivesse tempo para pensar. No campo de batalha, não deixava minha mente consciente comandar meu corpo. Os cálculos frescos e imparciais do meu reflexo eram muito mais precisos do que a mente jamais poderia ser.
O concreto aos meus pés se partiu em dois, fazendo com que a poeira cinza subisse no ar como se o chão tivesse explodido. Minha perna direita rolou para manter o equilíbrio. Eu ainda não podia ver o que estava me atacando. Não havia tempo para balançar meu machado de batalha.
Meus braços e minhas pernas se moveram para acompanhar o meu centro de gravidade. Os tremores percorreram meus nervos, se esforçando para fornecer a resposta evasiva necessária a tempo. Se minha coluna tivesse conectada à blindagem nas minhas costas, teria sido um desastre.
Eu empurrei com o cabo do meu machado. Feito direito, isso daria faria um estrago como o do pile driver. Com a possível exceção da blindagem dianteira em um tanque, não havia muitas coisas que pudessem resistir a um golpe direto com 370 quilos de força de perfuração.
O golpe resvalou. Porra!
Uma sombra se moveu no limite de minha visão. Não há tempo para sair do caminho. Segurei a respiração que tomei antes do golpe com o machado. O golpe estava chegando. Lá. Por um instante meu corpo voou, então eu estava rolando, minha visão alternando entre céu e terra, céu e terra. Saí do giro e recuperei meus pés em um único movimento fluido. Meu machado estava pronto.
Lá, com uma perna ainda levantada no ar, estava um Jacket vermelho. Rita!
Talvez ela tivesse me tirado do caminho de um ataque que eu não tinha visto, ou talvez eu tivesse atravessado em seu caminho. Mas ela definitivamente foi a pessoa que me jogou no ar.
Que merda…?
O Jacket vermelho agachado e preparado. A lâmina do machado era uma navalha reluzente. Entreguei meu corpo à batalha. Cento e cinquenta e nove loops o tinham treinado para se mover com facilidade, e assim foi. A primeira batida veio do lado, me errando por um triz. Desviei o segundo, um vicioso balanço de cima, com o cabo do meu machado. Antes que o terceiro golpe pudesse vir, saltei para fora do alcance do dano e coloquei alguma distância entre nós.
Respirei fundo e a realidade da situação me acertou.
“Que porra você está fazendo?”
Rita caminhou lentamente em minha direção, o machado de batalha balançando baixo, quase roçando o chão. Ela parou, e sua voz estalou no link de comunicação. Sua voz alta e delicada, tão estranha para o campo de batalha:
“O que parece que estou fazendo?”
“Parece que você está tentando me matar, merda!”
“Os humanos percebem as transmissões dos Mimics como sonhos. Nos nossos cérebros são as antenas que recebem essas transmissões. Mas não é só isso. Nossos cérebros se adaptam — nos tornamos os roteadores. Eu não estou mais no loop, mas ainda estou conectada. Ainda posso sentir o servidor Mimic porque eu mesma sou um roteador. A enxaqueca é um efeito colateral. Você também, não é?”
“Do que você está falando?”
“É por isso que o loop não parou da última vez, mesmo que você tenha destruído os backups. Você não destruiu o roteador — eu.”
“Rita, eu não entendo.”
“Se você se tornar um roteador, os Mimics ainda serão capazes de criar o loop. Eu sou um roteador. Você está preso em um loop. Se me matar, o loop não se propaga. Eu te mato, e isso vai continuar para sempre… Eternamente, só um de nós pode escapar.
Nada disso fazia sentido. Eu era um novo recruta preso em um loop temporal que não entendia. Rezava para me tornar tão forte quanto a Valquíria que via no campo de batalha. Me tornei um cadáver inúmeras vezes tentando seguir seus passos, e depois de 160 tentativas, finalmente ganhei o direito de ficar ao seu lado. Tínhamos lutado juntos, rido juntos, almoçado e conversado besteiras juntos. Me arrastei pelo inferno para me aproximar dela e agora o mundo ia nos separar. Não podia ficar muito mais fodido do que isso. O mesmo loop que me transformou em um guerreiro ia me matar.
“Se a humanidade está pensando em ganhar, é preciso alguém que possa quebrar o loop.” A voz de Rita estava fria e nivelada.
“Espera, tem que ter —”
“Agora vamos descobrir se essa pessoa é Rita Vrataski ou Keiji Kiriya.”
Rita se preparou.
Eu abaixei meu rifle. O tempo necessário para apontar e apertar o gatilho era o tempo que eu não tinha contra a Cadela do Campo de Batalha. Agarrei meu machado de batalha com as duas mãos.
Nossa luta se desenrolou por toda a base. Passamos do Campo de Treinamento No.3 para o campo que usamos para o TFM, pisoteando os restos da tenda que o general usou para se abrigar do sol abrasador do meio-dia. Atravessamos os vestígios fumegantes dos quartéis do 17ª e digladiamos os machados em frente ao hangar. Nossas lâminas deslizaram uma contra a outra. Me abaixei para evitar o golpe e continuei correndo.
Os outros soldados pararam e olharam quando passamos. Seus capacetes escondiam suas expressões, mas não seu choque. E porque não? Eu também não podia acreditar que isso estava acontecendo. Minha mente estava em negação, mas meu corpo continuou a funcionar, inconsciente, como a máquina eficiente que tinha se tornado. Com os movimentos aperfeiçoados, pressionei o ataque.
À medida que nos aproximávamos da linha de tropas dos EUA, uma luz verde no meu HUD piscou — comunicação com Rita. A ligação entre nossos Jackets retransmitiu a transmissão para mim.
“Chief Breeder para Calamity Dog”. A voz de um homem. Rita desacelerou quase imperceptivelmente. Aproveitei a oportunidade para ampliar o espaço entre nós. A voz continuou “A supressão do inimigo está quase um sucesso. Você parece um pouco ocupada, precisa de uma mão?”
“Negativo.”
“Alguma ordem?”
“Mantenha os japoneses fora disto, eu não serei responsável pelo que acontecer se eles ficarem no meu caminho.”
“Entendido. Boa caça. Chief Breeder desligando.”
O canal fechou, e eu gritei para Rita. “Isso é tudo que você tem a dizer? Que merda!” Não houve resposta. O Jacket vermelho de Rita se aproximou de mim. Não há mais tempo para falar. Eu estava muito ocupado lutando pela minha vida.
Eu não sabia se Rita estava realmente tentando me matar ou apenas me testando. Eu era uma máquina de combate de precisão boa o suficiente para processar informação extra. Rita e qualquer coisa mais complicada do que correr / defender / esquivar teria que esperar. Quaisquer que fossem suas intenções, seus ataques eram mortalmente reais.
O portão principal da base estava à minha direita. Nós estávamos no caminho que tomei todas aquelas vezes para me esgueirar para a base dos EUA e roubar um dos machados de Rita. A linha das Forças Especiais dos EUA se estendia para a direita do outro lado do local onde os dois sentinelas estavam.
Rita balançou a arma sem olhar para quem ou o que poderia bater. Eu não vi nenhuma razão para trazer mais alguém para isso, então comecei a nos afastar da linha. Cafeteria No. 2 estava cerca de cem metros à frente. Os dardos haviam feito seu estrago na estrutura, mas contra todas as probabilidades, ele ainda estava de pé. Era distante o suficiente da linha. Um batimento cardíaco mais tarde eu estava a centena de metros e fazendo o meu caminho através da porta do outro lado do edifício.
Era um entardecer escuro lá dentro, apenas luz suficiente para ver. As mesas estavam de lado, empilhadas em uma barricada improvisada em frente à entrada da porta pela qual passei. Alimentos e garrafas de molho de soja quase vazias estavam espalhadas no chão de concreto. Não havia sinal de ninguém — morto ou vivo — em toda a sala.
Este foi o lugar onde gastei incontáveis almoços assistindo Rita comer. Onde lutei contra aquele macaco da 4ª Companhia comido umeboshi com Rita. Que lugar melhor para Rita e eu decidirmos nossas vidas em um duelo até a morte?
Uma luz laranja brilhou através de um buraco na parede oeste. Quando olhei para o relógio ao lado, mal pude acreditar que oito horas se passaram desde que a batalha começou. Já era anoitecer. Não era de admirar que me sentia como se meu Jacket estivesse carregado com chumbo. Eu não tinha músculo para isso. Minha energia foi drenada e o sistema estava prestes a começar a desligar. Eu nunca estive em uma batalha que durou metade deste tempo.
O Jacket vermelho de Rita entrou na cafeteria. Bloqueei um balanço horizontal com o meu machado. Parte do meu Jacket rangia. Se eu bloqueasse toda a força do golpe, o torque teria rasgado meu Jacket de dentro para fora. Tive medo de que Rita fosse capaz de me acertar de novo. Rita Vrataski era um prodígio na batalha — e ela aprendeu a ler todas as minhas fintas.
Cada movimento na batalha acontece em um nível subconsciente. Isso torna duplamente difícil compensar quando alguém aprende a ler esses movimentos. Rita estava um passo à frente de mim, já girando para entregar um golpe mortal no espaço onde eu estaria antes de eu chegar até lá.
Ela acertou o alvo. Instintivamente entrei no arco do seu machado, evitando o peso total do golpe. Minha placa do ombro esquerdo saiu voando. Uma luz vermelha de advertência se acendeu no meu monitor.
Rita chutou, e não havia maneira de evitar. Voei pela sala. Faíscas voaram quando meu Jacket raspou ao longo do chão de concreto quebrado. Girei uma vez e colidi com o balcão. Uma chuva de pauzinhos choveu sobre minha cabeça.
Rita já estava se movendo. Não há tempo para descansar. Cabeça, ok. Pescoço, ok. Torso, ombro direito, unidade de braço direito — tudo ok, mas minha placa no ombro esquerdo não. Eu ainda podia lutar. Soltei o meu machado. Abaixei e saltei. Rita golpeou, quebrando o balcão e levantando uma chuva de madeira e metal.
Eu estava na cozinha. Diante de mim havia uma enorme pia de aço inoxidável e um cano de gás industrial. Frigideiras e panelas grandes o suficiente para ferver porcos inteiros pendurados ao longo de uma parede. Pilhas de talheres de plástico chegavam ao teto. Fileiras de bandejas limpas ainda sem servir o café da manhã, agora gelado.
Eu recuei, derrubando pratos no chão em uma avalanche de comida e plástico. Rita ainda estava vindo. Joguei um pote nela e acertei. Aparentemente não foi o suficiente para dissuadi-la. Talvez devesse ter arremessado a pia da cozinha em vez disso. Com um balanço do machado, Rita destruiu metade do balcão e um pilar de concreto reforçado com aço.
Eu continuei adiante — em uma parede. Caí no chão como um balanço horizontal cortando em minha direção. O rosto do fisiculturista, ainda sorrindo sobre a cozinha, recebeu o golpe em meu lugar. Eu mergulhei nas pernas de Rita. Ela saltou fora do caminho. Deixei o impulso me levar de volta às ruínas do balcão da cafeteria. Meu machado estava bem onde eu tinha deixado.
Pegar uma arma que você já jogou fora só poderia significar uma coisa: você estava pronto para lutar de volta. Ninguém pega uma arma que não planeja usar. Estava claro que eu não poderia continuar correndo para sempre. Se Rita realmente queria me matar — e eu estava começando a pensar que ela queria — não haveria escapatória. Afastar de ataque após o outro tinha deixado o meu Jacket quase sem energia. Estava na hora de me decidir.
Havia uma coisa que não podia me deixar esquecer. Algo que tinha prometido a mim mesmo há muito tempo atrás, quando resolvi lutar contra esse caminho. Escondido debaixo da luva na minha mão esquerda estava o número 160. Quando esse número era apenas 5, eu tomei a decisão de levar tudo o que pudesse aprender para o dia seguinte. Nunca compartilhei o segredo desses números com ninguém. Nem com Rita, nem com Yonabaru, nem mesmo Ferrell com quem treinei tantas vezes. Só eu sabia o que isso significava.
Esse número era meu amigo mais próximo, e enquanto ele estivesse lá, eu não tinha medo de morrer. Não importava se Rita me matasse. Eu nunca teria chegado tão longe sem ela de qualquer forma. O que poderia ser mais apropriado do que redimir meu salvador com a minha própria morte?
Mas se eu desistisse agora, tudo teria desaparecido. As entranhas que derramei naquela ilha cheia de crateras. O sangue com que me engasguei. O braço que deixei deitado no chão. Toda a merda do loop. Ela desapareceria como a fumaça no cano de uma arma. As 159 batalhas que não existiam em lugar nenhum, exceto na minha cabeça, teriam desaparecido para sempre, sem sentido. Se desse tudo o que tinha e perdesse, isso era uma coisa. Mas eu não ia morrer sem lutar. Rita e eu provavelmente estávamos pensando a mesma coisa. Eu entendi o que ela estava passando. Inferno, ela e eu éramos as únicas duas pessoas em todo o maldito planeta que poderiam entender. Eu tinha rastejado sobre cada centímetro de Kotoiushi tentando encontrar uma maneira de sobreviver, assim como Rita tinha feito em alguma batalha na América.
Se eu vivesse, ela morreria, e nunca mais encontraria alguém como ela. Se ela vivesse, eu teria que morrer. Não importa quantas maneiras diferentes eu pensasse sobre isso, não parecia haver outra saída. Um de nós teria que morrer, e Rita não queria falar sobre isso. Ela ia deixar nossa habilidade decidir. Ela tinha escolhido falar com aço, e eu tinha que dar uma resposta.
Peguei meu machado.
Corri para o meio da cafeteria e testei seu peso. Me encontrei em pé quase exatamente onde Rita e eu comemos umeboshi. A vida não é engraçada? Foi apenas um dia atrás, mas parecia uma vida inteira. Rita me derrotou naquilo também. Acho que é justo dizer que ela tem um talento para competição.
O Jacket carmesim de Rita avançou um passo de cada vez, me avaliando. Ela parou fora do alcance do machado, sua arma reluzente agarrada firmemente em sua mão.
Os sons da luta lá fora invadiam o silêncio da cafeteria. Explosões distantes faziam barulhos diferentes. As cápsulas que rasgavam o céu eram as flautas. Os rifles automáticos formavam a percussão. Rita e eu éramos a bateria estridente de carboneto de tungstênio.
Não havia espectadores nas ruínas da lanchonete. Pilhas de mesas e cadeiras viradas eram nossa única plateia, observadores silenciosos para a dança mortal de nossos Jackets. Nós nos movemos em uma espiral, como Rita sempre fez, traçando um padrão no chão de concreto. Estávamos dançando um balé de guerra, envolto no auge da tecnologia da humanidade, nossas armas brutas cantando um cântico de mil anos.
A lâmina do meu machado era entalhada e maçante. Meu Jacket estava coberto de ranhuras, sua bateria estava quase esgotada. Meus músculos se moviam por pura força de vontade.
Uma tremenda explosão abalou a lanchonete. Saltamos com o som.
Eu sabia que seu próximo ataque seria um golpe mortal. Não havia como evitar. Não havia tempo para pensar — pensar era para o treino. Batalha era apenas ação. A experiência gravada em meu corpo através de 159 batalhas guiaria meus movimentos.
Rita puxou o machado para o golpe. Meu machado responderia de baixo. As duas lâminas gigantes cruzaram, rasgando placas de metal.
Havia apenas uma diferença real entre Rita e eu. Rita tinha aprendido a lutar contra os Mimics sozinha. Eu tinha aprendido a lutar com os Mimics assistindo Rita. O momento exato que ela iria golpear, o próximo passo que ela iria dar — meu sistema tinha gravado tudo. Eu sabia qual seria seu próximo passo. É por isso que o golpe de Rita só me roçou, e o meu abriu seu Jacket.
Havia um buraco na armadura carmesim de Rita.
“Rita!”
Seu machado de batalha tremia em suas mãos. O Jacket de Rita estava fazendo seu melhor para filtrar os comandos involuntários desencadeados pelas convulsões em seus músculos. A alavanca de carboneto de tungstênio do machado bateu ruidosamente contra suas luvas. Sangue, óleo e alguns fluidos outros fluidos escorriam da fenda recém-aberta em sua armadura. A cena era estranhamente familiar para mim, e senti um terror renovado. Ela estendeu o braço e procurou o plug no meu ombro. Uma comunicação de contato. A voz de Rita estava clara no meu capacete.
“Você ganhou, Keiji Kiriya.” O Jacket carmesim se inclinou contra mim. A voz de Rita estava seca e cheia de dor.
“Rita… por quê?”
“Eu sabia há muito tempo, desde que recebi o primeiro sinal Mimic, a batalha sempre acaba.”
“O quê? Eu não…”
“Você é o único a sair desse loop.” Rita tossiu, um som mecânico através do link.
Eu finalmente entendi. Quando conheci Rita ontem, ela já tinha decidido que iria morrer. Eu não entendi o que era na época. Pensei que tinha acidentalmente tropeçado algum tipo de rota diferente. Eu deveria estar tentando encontrar uma forma de salvá-la, mas deixei o dia escapar de meus dedos.
“Desculpe, Rita, eu… eu não sabia.”
“Não se desculpe, você venceu.”
“Venci? Não podemos… simplesmente continuar repetindo esse dia? Nunca sairíamos do laço, mas estaríamos juntos, sempre. Podemos ficar juntos mais do que toda a vida. Todo dia será uma batalha. Podemos lidar com a batalha. Se eu tiver que matar mil Mimics, um milhão, eu vou. Nós vamos fazer isso juntos.”
“Toda manhã você acordará com uma Rita Vrataski que não sabe que você existe.”
“Eu não me importo.”
Rita balançou a cabeça. “Você não tem escolha, tem que sair do loop antes que o que aconteceu comigo aconteça com você. Terminar essa coisa maldita enquanto ainda pode.”
“Eu não posso sacrificar você para isso.”
“O Keiji Kiriya que eu conheço não sacrificaria a raça humana por si mesmo.”
“Rita —”
“Não há muito tempo, se tem algo a dize, diga agora.” O Jacket carmesim escorregava.
“Eu vou ficar com você até você morrer. Eu — eu te amo.”
“Bom. Não quero morrer sozinha.”
Seu rosto estava escondido debaixo do capacete, e eu estava grato. Se eu tivesse que ver suas lágrimas, eu nunca poderia terminar o loop. A luz do pôr-do-sol, vermelha e baixa no céu tocava o Jacket de Rita, envolvendo-a como um rubi brilhante.
“Luta longa, Keiji, já é o pôr do sol.”
“É lindo.”
“Maldito sentimental.” Havia um sorriso em sua voz. “Eu odeio céus vermelhos.”
Foi a última coisa que ela disse.
{6} O céu estava brilhante.
Rita Vrataski estava morta. Depois que matei o servidor Mimic e limpei os retardatários, eles me jogaram na cadeia. Disseram que era por negligência no dever. Ignorando imprudentemente as ordens de um oficial superior, eu havia colocado meus companheiros em perigo. Não importa que não havia oficiais superiores para dar ordens. Eles estavam se esforçando para encontrar alguém para culpar pela morte de Rita, e eu não podia culpá-los por quererem um bode expiatório.
A corte marcial ocorreu três dias depois que me prenderam. Libertado das acusações. No final, eles decidiram me dar uma medalha.
Um general, o que tinha encomendado o TFM, me deu tapinhas nas costas e me disse eu tinha feito um bom trabalho. Ele quase rolou os olhos quando disse. Eu queria dizer a ele para enfiar a medalha no seu rabo, mas me segurei. A morte de Rita era minha responsabilidade. Não fazia sentido me estressar com ele.
A medalha foi a Ordem da Valquíria, concedida aos soldados que mataram mais de cem Mimics em uma única batalha. Um prêmio originalmente criado para um soldado muito especial. A única maneira de receber uma honra maior era morrer em batalha — como Rita tinha.
Eu realmente tinha matado um monte de merdas. Mais do que todas as mortes de Rita combinadas em apenas uma batalha. Eu não me lembro muito do que aconteceu depois que destruí o servidor, mas, aparentemente, encontrei uma bateria para substituir a minha e fui a sozinho matar metade dos Mimics que haviam invadido Flower Line.
A reconstrução da base ia a um ritmo febril. Metade dos prédios na base tinha estavam no chão e arrastar os destroços era uma tarefa monumental por si só. O quartel da 17ª Companhia tinha desaparecido, e o livro que eu nunca consegui terminar virou cinzas.
Eu andava sem rumo enquanto pessoas corriam de um lado para o outro da base.
“Lutar como um maníaco maldito? É assim que soldados condecorados fazem?”
A voz era familiar. Me virei a tempo de ver um punho vindo direto para mim. Minha perna esquerda se reposicionou. Não tive tempo para pensar. Tudo o que pude fazer foi decidir se deveria ou não lançar um contra-ataque. Se sim, os reflexos gravados em mim depois de 160 loops iriam reagir, tomando conta do meu corpo como um robô em uma fábrica.
Eu poderia mudar meu peso para a minha perna esquerda, desviar o soco com o meu ombro, e pegar o cotovelo do meu atacante enquanto pisava para a frente com o meu pé direito e prendia meu próprio cotovelo em seu lado. Isso iria cuidar do primeiro soco. Fiz a simulação em minha cabeça e percebi que estaria quebrando as costelas do meu agressor antes mesmo de saber quem ele era. Optei por apenas receber o soco. O pior que me aconteceria era um olho roxo.
Doía mais do que esperado. A força do golpe me lançou para trás e eu aterrissei forte com minha bunda. Pelo menos nada estava quebrado — tudo de acordo com o plano. Foi bom saber que eu tinha uma carreira de ser um saco de pancadas adiante se o exército me dispensasse.
“Não sei se você é um prodígio, mas tenho certeza que se acha.”
“Deixe-o em paz.”
Yonabaru estava de pé sobre mim. Parecia que queria continuar a me socar, mas uma mulher de camisa de soldado o deteve. Seu braço esquerdo estava em uma tipoia. O pano branco branqueado contrastava com a camisa cáqui. Ela deve ser a namorada de Yonabaru. Fiquei feliz por terem sobrevivido. Havia uma luz nos olhos da mulher, diferente de qualquer outra que eu já vi, como se ela estivesse observando um leão que tinha se libertado de suas correntes. Era um olhar reservado para algo que não fosse humano.
“Vem dar uma volta aqui como se nada tivesse acontecido — fico com nojo só de olhar para você.”
“Eu disse, deixe-o em paz.”
“Foda-se.”
Antes que pudesse me levantar, Yonabaru tinha saído. Me levantei devagar e me limpei. Minha mandíbula não doía muito. Não era nada comparado ao vazio que Rita havia deixado dentro de mim.
“Ele conseguiu encaixar um dos bons”, ouvi por trás de mim. Era Ferrell. Ele parecia o mesmo de sempre, com talvez uma ou mais rugas na testa para mostrar.
“Você viu isso?”
“Desculpe, não tive tempo de detê-lo.”
“Está bem.”
“Tente não ter raiva dele, ele perdeu muitos amigos naquele dia, só precisa de algum tempo para se acalmar.”
“Eu vi Nijou… ou que restou dele.”
“Nosso pelotão perdeu dezessete homens, eles estão falando em três mil vítimas, mas ainda não há um número oficial, você se lembra daquela linda jovem que dirigia a Cafeteria No. 2? Ela também não conseguiu.”
“Oh.”
“Não é culpa sua, mas isso não importa em um momento como esse, você deu um belo de um chute na amiga de Yonabaru, entre outras pessoas.”
“Outras?”
“Outras.”
Adicione Ferrell à lista de pessoas que esbarrei na batalha. Quem sabe o que mais eu tinha feito. Não conseguia me lembrar de nada, mas estava claro que fui um maníaco homicida no campo de batalha. Talvez fui eu quem colocou o braço da namorada de Yonabaru naquela tipoia. Não me admira que ele estivesse tão puto. Um pontapé de Jacket seria mais que suficiente para fazer isso. Merda, dá para se esmagar órgãos internos com facilidade.
Eu esperava que Yonabaru se lembrasse desse medo. Isso ajudaria a mantê-lo vivo na próxima batalha. Ele pode não pensar mais em mim como um amigo, mas ele ainda era um amigo para mim.
“Eu sinto muito.”
“Esquece.” Ferrell definitivamente não estava zangado. Na verdade, ele parecia grato. “Quem te ensinou a pilotar um Jacket assim?”
“Você, sargento.”
“Estou falando sério, filho. Se fosse sobre brocas tudo bem, mas não há um soldado em todo o Corpo Japonês que possa te ensinar a lutar assim.”
O sargento Bartolome Ferrell lutou mais batalhas do que quase qualquer um na UDF. Ele sabia o que era um guerreiro. Ele entendeu que se eu não o tivesse expulsado do caminho, ele estaria morto. Ele sabia que o recruta novato de pé na frente dele era um guerreiro melhor do que ele poderia esperar se tornar. E ele sabia que na batalha, o único lugar que importava era o quanto você era bom. O sargento Ferrell era o responsável pela fundação em que eu construí minhas habilidades. Mas não posso explicar isso para ele, então não tentei.
“Ah, quase esqueci, uma mulher rato do Corpo dos EUA perguntou por você.”
Shasta Raylle. A Shasta Raylle que só me encontrei brevemente no Sky Lounge. Dificilmente falamos. A Shasta que tinha me emprestado um machado de batalha era uma memória de um loop.
“Onde estão os depósitos e o hangar? Eu gostaria de verificar o meu Jacket.”
“Mal saiu da cadeia e já quer verificar seu Jacket? Você é duro mesmo.”
“Não sou nada demais.”
“O esquadrão dos EUA pegou o seu Jacket, aquela rata foi um dos que levaram.”
“O que eles querem com o meu Jacket?”
“Os oficiais têm planos, não fique surpreso se você acabar nas Forças Especiais dos EUA.”
“Sério?”
“Eles precisam de alguém para tomar o lugar da Valquíria. Tenho certeza que vai se encaixar.” Ferrell me deu um tapa no ombro e nos separamos.
Fui para o lado americano da base encontrar Shasta e meu Jacket. Os quartéis estavam tão destruídos que era difícil dizer onde o lado japonês terminava e os EUA começavam. As sentinelas e seus músculos tinham desaparecido.
Encontrei meu Jacket na oficina de Shasta. Ela estava lá também. Alguém havia arranhado as palavras “Killer Cage” no peitoral. “Cage” — era assim que os americanos pronunciavam meu nome. Acho que tenho um apelido agora. Eles não perdem muito tempo. Um bom nome para um porco que ganhou medalhas matando seus amigos. Teria que agradecer quem fez nisso. Que mundo fodido.
Shasta me viu olhando para a inscrição. “Fiquei de olho tanto quanto pude, mas eles fizeram isso de qualquer maneira.” Tenho a sensação de que ela falou algo semelhante a Rita no passado.
“Não se preocupe, eles me disseram que você estava procurando por mim?”
“Eu queria te dar a chave para o Sky Lounge.”
“Chave?”
“Como Rita me pediu, ninguém esteve lá desde que vocês partiram. Não foi fácil manter as pessoas fora por três dias, mas posso ser muito engenhosa.” Shasta me entregou um cartão-chave. “Apenas ignore o material na entrada.”
“Valeu.”
“Ainda bem que pude ajudar.”
“Posso te perguntar uma coisa?”
“O que?”
“Você sabe por que Rita pintou o Jacket de vermelho? Não era sua cor favorita, pensei que você pudesse saber.”
“Ela disse que queria se destacar, mas não sei por que alguém gostaria de se destacar em um campo de batalha.”
“Obrigado, isso faz sentido.”
“Suponho que você queira chifres no seu?” Eu devo ter franzido a testa porque ela imediatamente acrescentou: “Desculpe, só estava brincando.”
“Está tudo bem, preciso me adaptar, obrigado pela chave, vou ver o Sky Lounge.”
“Antes de você ir —”
“Sim?”
“Não é da minha conta, mas eu queria saber…”
“O que é?” Eu perguntei.
“Você era um velho amigo de Rita?”
Apertei meus lábios num sorriso irônico.
“Desculpe, eu não deveria ter perguntado.”
“Não, está tudo bem, na verdade, nós…”
“Sim?”
“Nós apenas nos conhecemos.”
“Claro, nós tínhamos acabado de chegar na base, foi estúpido perguntar.”
Eu deixei Shasta e segui meu caminho para o Sky Lounge. Abri a porta gentilmente, embora soubesse que não teria ninguém lá.
Uma fita amarela com a palavra “BIOHAZARD” impressa em intervalos regulares cruzava a entrada. Havia um extintor perto de meus pés, e um resíduo granulado cobria o chão. Imaginei que este era o plano de Shasta. A base ainda estava coberta de areia condutora dos Mimics e a descontaminação de instalações não vitais como o Sky Lounge não estava na lista de prioridades. Esperta.
Eu entrei. O ar estava velho. O cheiro de Rita já estava desaparecendo do quarto. Nada tinha sido movido de onde tínhamos deixado. O moedor de café ressaltou o quão curta foi sua estadia aqui. Era o único vestígio de que ela já tinha estado aqui. Quase todo o resto do que ela possuía era militar. O conjunto de café era o único pertence pessoal que ela tinha. Claro que ela não tinha me deixado uma nota — isso seria sentimental demais para a Cadela do Campo de Batalha.
A caneca na mesa de vidro ainda tinha o café que Rita havia feito. Peguei a caneca. O café estava escuro e imóvel. Tinha esfriado para a temperatura ambiente dias atrás. Minhas mãos tremiam, enviando pequenas ondulações para a da superfície negra. Era assim que Rita encarava a solidão. Agora eu entendia.
Você era apenas uma peça no tabuleiro e eu era a peça que substituiria você. Nada além do falso herói que o mundo precisava. E agora esse mundo ia me empurrar através do mesmo campo de batalha manchado de sangue e cheio de fumaça. Mas você nunca odiou o mundo pelo que ele fez a você.
Então não deixaria o mundo perder. Poderia me deixar em um campo de Mimics com nada além de um machado de carboneto de tungstênio e um revestimento moribundo que eu abriria meu caminho. Mergulharia em massacres maiores do que todos os veteranos no UDF jamais viram e emergiria ileso. Treinaria até saber o nano segundo preciso para puxar o gatilho, o momento exato para dar cada passo. Não deixaria um dardo sequer arranhar a pintura do meu Jacket.
Enquanto eu viver e respirar, a humanidade nunca cairá. Prometo. Pode levar uma dúzia de anos, mas vou ganhar esta guerra por você. Mesmo que não esteja mais aqui para ver. Você era a única pessoa que eu queria proteger, e você foi embora.
Lágrimas quentes ameaçavam cair de meus olhos enquanto olhava o céu através do vidro rachado, mas eu não choraria. Não para os amigos que eu perderia nas batalhas à frente. Os amigos que eu não seria capaz de salvar. Não vou chorar por você até que a guerra esteja finalmente acabada.
Através da janela entortada eu vi o céu, azul de cristal, parecendo se alongar ao infinito. Uma nuvem flutuava preguiçosamente. Me virei para encarar a janela e, como uma esponja absorve água, meu corpo absorveu o claro e ilimitado céu.
Você odiava estar sozinha, mas manteve distância do quartel, dormiu e acordou na solidão, porque era muito difícil enfrentar os amigos que sabia que iriam morrer. Presa em um pesadelo cruel e interminável, seus únicos pensamentos eram para eles. Não suportava perder nem mesmo um deles, não importa quem.
O vermelho era sua cor, só sua. Deve descansar com você. Vou pintar meu Jacket de azul da cor do céu, a cor que você me disse que amava quando nos conhecemos. Num campo de um milhão de soldados, me destacarei de todos os outros, um para-raios para os ataques do inimigo. Eu serei seu alvo.
Fiquei sentada ali por algum tempo segurando a última xícara de café que fez para alguém que ela mal conhecia. Seu aroma criou em mim um desejo e uma tristeza insuportáveis. Uma pequena colônia azul esverdeada estava na superfície do café. Levando o copo aos meus lábios, eu bebi.