All You Need Is Kill Japonesa

Tradução: Virtual Core


Volume Único

Capítulo 2: Sargento Ferrell

{1} “Se um gato pode pegar ratinhos”, disse um imperador chinês, “é um bom gato”.

Rita Vrataski era um gato muito bom. Ela matou sua parte e foi devidamente recompensada. Eu, por outro lado, era um gato de rua sarnento vagando apressadamente pelo campo de batalha, pronto para ser esfolado, eviscerado e transformado em uma raquete de tênis. O alto escalão fez com que Rita fosse cuidadosamente preparada, mas eles pouco se importavam com o resto de nós.

O TFM já durava três horas esgotantes, e pode ter certeza de que incluiu uma fodida prancha isométrica. Eu estava tão ocupado tentando descobrir o que fazer em seguida que não estava prestando atenção ao aqui e agora. Depois de meia hora, as Forças Especiais dos EUA desistiram de assistir nossas torturas e voltaram para o quartel. Fiquei olhando para Rita e ela saiu junto com o resto, o que significava que eu estava na rola longa. Era como um loop de software se/então:

Se checkflag Rita-aderir-ao-TFM = verdadeiro, o fim.

Senão continuar rotina: Porra de Prancha Isométrica

Talvez isso fosse a prova de que eu poderia mudar o que aconteceu. Se olhasse para Rita, ela se juntaria ao TFM, e eles iriam terminá-lo depois de uma hora. O alto escalão tinha convocado esta sessão de TFM sem um bom motivo. Então eles poderiam terminar quando quisessem.

Se meu palpite estivesse correto, minha causa não era necessariamente desesperada. Uma janela de oportunidade pode se apresentar na batalha de amanhã. As probabilidades de que isso aconteça podem ser de 0,1%, ou mesmo 0,01%, mas se pudesse melhorar minhas habilidades de combate, por mais insignificante que fosse, essa oportunidade poderia surgir — eu encontraria uma maneira cria-la. Se pudesse treinar para superar cada obstáculo esta pequena trilha de mortes, talvez um dia eu acordaria em um mundo com um amanhã.

Da próxima vez eu teria certeza de olhar para Rita durante o TFM. Me senti um pouco mal por trazê-la para isso, ela que era basicamente uma espectadora em meu interminável show. Mas não havia realmente muita escolha. Eu não tinha tempo para construir músculos que desapareceriam no próximo loop. Esse tempo seria melhor gasto preparando meu cérebro para a batalha.

Quando o treinamento terminou, os homens fugiram para o quartel para escapar do calor do sol, resmungando sob sua respiração coletiva. Caminhei até o sargento Ferrell, que estava agachado para amarrar os sapatos. Ele estava nessa a mais tempo do que qualquer um de nós, então decidi que ele seria a melhor opção para começar a me ajudar com meu programa de treinamento de batalha. Não só era ele o membro sobrevivente mais antigo do pelotão, mas me ocorreu que os 20% broca do sargento poderiam vir a calhar.

Ondas de calor cintilavam acima de seu corte de cabelo plano. Mesmo depois de três horas de TFM, parecia que ele poderia correr um triatlo e chegar em primeiro sem suar. Ele tinha uma cicatriz peculiar na base de seu pescoço grosso, um símbolo do tempo em que ainda não haviam corrigido todos os erros da Jackets e era necessário implantar chips para aumentar o tempo de reação dos soldados. Fazia tempo que não tinham que recorrer a nada tão rudimentar. Essa cicatriz era uma medalha de honra — vinte anos de serviço duro e ainda em forma.

“Alguma bolha hoje?” A atenção de Ferrell nunca deixou seus sapatos. Falou com um sotaque peculiar aos brasileiros.

“Não.”

“Começando a ter pé frio?”

“Estaria mentindo se dissesse que não estava com medo, mas não estou planejando correr, se é isso que quer dizer.”

“Para um novato, você até que está dando certo.”

“Você consegue manter seu treinamento, não é, Sarge?”

“Eu tento.”

“Se importaria se eu treinasse com você?”

“Está tentando fazer alguma estupidez, Soldado?”

“Não tem nada de estúpido em matar, senhor.”

“Bem, há algo estúpido com a sua cabeça se você quer se enfiar em uma daquelas malditas jackets um dia antes de irmos morrer. Quer trabalhar até suar, vá encontrar umas coxas para se enfiar entre elas”. Os olhos de Ferrell continuavam em seus sapatos. “Dispensado.”

“Sargento, com todo o respeito, não vejo o senhor correndo atrás das moças.”

Ferrell finalmente olhou para cima. Seus olhos eram canos de espingarda de 20mm disparando em mim do seu rosto bronzeado. Eu cozinhei sob o sol brilhante.

“Está me dizendo que acha que sou uma dessas bichas que preferem se enfiar em uma Jacket cheirando a suor do que entre as pernas de uma mulher? É isso que você está me dizendo?”

“Isso — não é o que quis dizer, senhor!”

“Certo, então, sente-se.” Ele passou a mão pelo cabelo e deu tapinhas no chão.

Me sentei enquanto uma rajada de vento marítimo soprava entre nós.

“Eu estava em Ishigaki, sabe”, começou Ferrell. “Deve ter sido há pelo menos dez anos atrás… As Jackets eram baratas como o inferno… Tinha este lugar perto do saco — bem aqui — onde as placas não se encontravam direito, esfregando diretamente a sua pele. Os lugares que tinham se esfolado durante o treinamento seriam esfolados novamente quando entrasse em batalha. Doía tanto que alguns caras se recusavam a rastejar no chão. Eles se levantavam e caminhavam bem no meio do tiroteio. Você poderia dizer que isso iria mata-los, mas sempre havia quem se levantasse de qualquer modo. Poderiam andar com alvos pintados no peito.” Ferrell assobiou como uma bomba caindo. “Perdi um bando de homens desse jeito.”

Ferrell tinha uma mistura de sangue japonês e brasileiro nele, mas veio da América do Sul. Metade desse continente tinha sido devastada pelos Mimics. Aqui no Japão, onde a alta tecnologia era mais barata do que comida boa, nossas Jackets eram máquinas de precisão. Ainda assim, havia muitos países onde tudo o que podiam fazer era enviar suas tropas com uma máscara de gás, um bom lançador de foguetes antigo e uma oração. Esqueça a artilharia ou o apoio aéreo. Qualquer vitória que eles conseguiram foi de curta duração. Nanorobôs que brotavam dos cadáveres de Mimic comeriam os pulmões de qualquer soldados que sobrasse. E assim, pouco a pouco, o deserto sem vida se espalhou pelas terras que as pessoas chamavam de lar.

Ferrell veio de uma família de fazendeiros. Quando suas colheitas começaram a fracassar, escolheram abandonar suas terras e se mover para uma das ilhas no Leste, refúgios seguros protegidos pelas maravilhas da tecnologia. Famílias com pessoas servindo na UDF receberam prioridade para a imigração, e é assim que Ferrell se juntou ao exército japonês.

Esses “Soldados da Imigração”, como eram conhecidos, eram comuns na Infantaria Armada.

“Você já ouviu a expressão kiri-oboeru?”

“O que?” Eu perguntei, assustada ao ouvir japonês.

“É um velho samurai dizendo que significa: ‘Derrube o inimigo e aprenda’.”

Eu balancei a cabeça. “Não me parecia familiar.”

“Tsukahara, Bokuden, Itou, Miyamato Musashi — todos samurais famosos em seus dias, estamos falando de quinhentos anos atrás.”

“Eu acho que li uma história em quadrinhos sobre Musashi uma vez.”

“Malditas crianças, não saberiam diferenciar Bokuden de Batman.” Ferrell suspirou exasperado. Lá estava eu, japonês puro sangue, e ele sabia mais sobre a história do meu país do que eu. “Samurais eram guerreiros que ganhavam a vida lutando, assim como você e eu. Quantas pessoas acha que o samurai que acabei de nomear matou em sua vida?”

“Se os nomes deles ainda existem depois de quinhentos anos, talvez… dez ou vinte?”

“Nem perto, os registros de então são incompletos, mas o número está em algum lugar entre trezentos e quinhentos. Cada um deles. E não tinham armas. Não tinham bombas. Todos os homens que eles mataram eles cortaram na mão — maldito combate corpo a corpo. Eu diria que é o suficiente para justificar uma medalha ou duas.”

“Como fizeram isso?”

“Envie um homem para o outro lado a cada semana, então faça o mesmo por dez anos e você terá seus quinhentos. Por isso são conhecidos como mestres espadachins. Eles não apenas matam uma vez e pronto. Continuaram matando e melhorando.”

“Parece um jogo, quanto mais você mata, mais forte você fica, é isso? Merda, ainda tenho muito o que fazer.”

“Exceto que seus oponentes não virtuais. Eram homens vivos, respirando, que matavam, como o gado, homens com espadas, homens lutando por suas vidas, o mesmo que eles. Se quisessem viver, tinham que pegar o inimigo com a guarda baixa, armadilhas, e às vezes fugir com o rabo entre as pernas.”

Não é a primeira imagem que surge em sua cabeça quando pensa em um mestre espadachim.

“Aprender o que vai te matar e como matar seu inimigo — a única maneira de saber uma coisa dessas é tentando. Algum garoto que foi ensinado a balançar uma espada em um dojo não tem chance contra um homem que foi treinado em batalha, eles sabiam e continuavam fazendo isso, enquanto empilhavam centenas de cadáveres. Um corte de cada vez.”

“Kiri-oboeru.”

“Está certo.”

“Então, por que eles se incomodam em nos treinar?”

“Ah, direto ao ponto. Cérebros assim, você é esperto demais para ser soldado.”

“Que seja, Sargento.”

“Se você realmente quer lutar contra os Mimics, precisa de helicópteros ou tanques, mas os helicópteros custam dinheiro, e também é preciso dinheiro para treinar os pilotos. E os tanques não vão se sair bem neste terreno — muitas montanhas e rios, mas o Japão está rastejando de gente, então eles os envolvem em Jackets e os enviam para a linha de frente, limões em limonada.”

Olha o que aconteceu com os limões.

“Toda essa merda que eles fazem no treinamento é o mínimo necessário. Eles pegam um bando de recrutas que não sabem a diferença entre o cu e o cotovelo e os ensinam a não cruzar a rua quando a luz está vermelha. E mantenha suas cabeças para baixo quando as coisas ficam feias. A maioria dos bastardos esquecem tudo isso quando a merda começa e são derrubados muito rápido. Mas se tiver sorte, você pode viver por causa dele e talvez até mesmo aprender algo. Pegue a sua primeira batalha, aprenda algo com isto e talvez você tenha algo para chamar de soldado.” Ferrell parou. “O que é tão engraçado?”

“Hã?” Um sorriso se esgueirou em meu rosto enquanto ele estava falando e nem percebi.

“Quando vejo alguém sorrindo assim antes de uma batalha, começo a me preocupar com os parafusos em sua cabeça.”

Eu estava pensando em minha primeira batalha, quando Mad Wargarita tentou me ajudar, quando minhas tripas enlameadas foram queimadas em cinzas, quando desespero e medo escorriam pelo meu rosto. Keiji Kiriya tinha sido um dos desgraçados. Duas vezes.

A terceira vez, quando eu fugi, minha sorte não tinha sido boa também. Mas por alguma razão, o mundo continuou me dando outra chance, me desafiando a encontrar uma maneira de sobreviver. Não por sorte, mas por conta própria.

Se pudesse suprimir o desejo de fugir, continuaria acordando para um dia inteiro de treinamento seguido por um dia no campo de batalha. E o que poderia ser melhor do que isso? Quase por padrão, eu continuaria aprendendo, um corte de cada vez. O que levou dez anos para os espadachins, eu poderia fazer em um dia.

Ferrell se levantou e deu um tapa nas minhas costas, fazendo com que minha linha de pensamentos parasse. “Não há muito que se preocupar com isso agora, por que você não vai encontrar umas garotas?”

“Estou bem, Sargento, só estava pensando —” Ferrell desviou o olhar. Continuei. “Se eu viver a batalha de amanhã, haverá outra batalha depois, certo? E se eu sobreviver a essa batalha, vou para a próxima. Se pegar o que aprendi em cada batalha, e entre as batalhas eu praticar nos simuladores, minhas chances de sobrevivência devem continuar subindo.”

“Bem, se você quiser analisar demais —”

“Não é ruim ir treinar agora, é?”

“Você não desiste fácil, não é?”

“Não.”

Ferrell sacudiu a cabeça. “Para ser honesto, tinha pensado em alguém diferente. Talvez esteja ficando velho demais para isso.”

“Diferente como?”

“Ouça, existem três tipos de pessoas na UDF: viciados que mal estão vivos, pessoas que se inscreveram à procura de um bilhete de refeição, e as pessoas que apenas seguiam o fluxo, deram um passo errado em algum lugar, e acabaram aqui.”

“Eu estou supondo que você me encaixou no último grupo.”

“Foi o que eu fiz.”

“Em que grupo você está, Sargento?”

Ele deu os ombros. “Vista o traje de primeiro nível. Retorne aqui dentro de quinze minutos.”

“Senhor-uh, o traje de batalha completo?”

“Um soldado de Jacket não pode praticar sem o seu equipamento, não se preocupe, não vou usar projéteis reais.”

“Senhor, sim senhor!”

Eu o saudei, e realmente quis fazer isso.

O corpo humano é uma máquina engraçada. Quando você quer mover algo — digamos, seu braço — o cérebro realmente envia dois sinais ao mesmo tempo: “Mais força!” E “Menos força!” O sistema que executa o corpo automaticamente mantém algum poder de volta para evitar esforço demais e se partir em dois. Nem todas as máquinas têm esse recurso de segurança embutido. Você pode apontar um carro para uma parede, pisar no acelerador que o carro vai se esmagar contra a parede até que o motor seja destruído ou fica sem combustível.

Artes marciais usam cada resquício de força que o corpo tem à sua disposição. No treinamento de artes marciais, você soca e gritar ao mesmo tempo. O “Grite mais alto!” ajuda a substituir o “menos força!”. Com a prática, você pode aumentar a quantidade de força que seu corpo aguenta. Em essência, você está aprendendo a canalizar o poder do corpo para destruir a si mesmo.

Um soldado e seu traje trabalham da mesma maneira. Assim como o corpo humano tem um mecanismo para regular a força, Jackets têm um sistema para manter o esforço de energia em equilíbrio. Com 370 quilogramas de força no aperto, uma Jacket poderia facilmente esmagar um cano de rifle, para não mencionar osso humano. Para evitar que acidentes como esse aconteçam, os revestimentos são projetados para limitar automaticamente a força exercida e até mesmo ativamente contra-atacar a inércia para equilibrar adequadamente a quantidade de força entregue. Os técnicos chamam esse sistema de auto balanceador. O balanceador automático retarda as ações do operador da Jacket por uma fração de segundo. É um intervalo de tempo tão pequeno que a maioria das pessoas nem sequer nota. Mas no campo de batalha, esse intervalo poderia significar a diferença entre a vida e a morte.

Em três batalhas completas de dez mil Jackets cada, apenas um soldado pode ter a desgraça de ter um problema com o balanceador automático, e se o balanceador decidir falhar quando você tem um Mimic por perto, está tudo acabado. É uma pequena chance, mas ninguém quer ser o azarado. É por isso que, no início de cada batalha, veteranos como Ferrell desligam o balanceador automático. Eles nunca nos ensinaram isso no treinamento. Tive que aprender a andar de novo com o balanceador automático desligado. Ferrell disse que eu tinha que ser capaz de me mover sem pensar.

Precisei de sete tentativas para caminhar em linha reta.

 

{2} Dois sentinelas foram postos na estrada que conduz à seção da base sob a jurisdição dos E.U.A. Eles eram enormes, cada homem carregando um rifle de alta potência nos braços, tão grande quanto minhas coxas.

Seus portes físicos os faziam parecer Jackets em exibição. Eles não precisavam dizer uma palavra para que as pessoas entendessem quem estava no comando. Bombas cluster¹ poderiam chover do céu que esses caras continuariam em pé, sem piscar, até segunda ordem.

Se os observasse pelo canto do olho enquanto me dirigia para o portão principal seguiria a rota que tomei quando tentei desertar no terceiro loop. Fugir seria fácil. Com o que aprendi, provavelmente poderia evitar a emboscada Mimic e chegar em Chiba. Mas hoje eu tinha outro objetivo em mente.

Eram 10:29. Eu estava no ponto cego das sentinelas. Com passadas de oitenta centímetros, as sentinelas estavam exatamente quinze segundos de onde eu estava.

Uma gaivota sobrevoou. O rugido distante do mar misturado com os sons da base. Minha sombra era uma pequena piscina aos meus pés. Não havia mais ninguém no caminho.

Um caminhão de combustível americano passou. As sentinelas saudaram.

Tive apenas que caminhar no ritmo certo.

Três, dois, um.

O caminhão se aproximou de uma bifurcação na estrada. Uma velha senhora que fazia a limpeza entrou na frente do caminhão. Os freios soaram. O motor do caminhão parou. As sentinelas pararam para ver o tumulto, suas atenções se desviaram por alguns momentos preciosos.

Passei direto por eles.

Eu podia sentir o calor emitido daqueles corpos. Com músculos como esse, eu não tinha dúvida de que eles poderiam arrancar minha espinha. Por um instante, senti um desejo irracional de atacá-los.

Claro, eu posso parecer que seria carregado pelo vento, mas não se deve julgar um livro pela capa. Quer me testar? Quem quer um pedaço do recruta asiático?

As habilidades que aprendi para pilotar um Jacket são úteis em um combate corpo a corpo contra outro ser humano? Eu tinha ficado mais melhor, mais forte? Por que esperar pelos Mimics, por que não me testar aqui e agora?

O guarda à direita se virou.

Fique calmo. Mantenha o ritmo constante. Ele está se virando para a esquerda. Quando o fizer, deslizarei para seu ponto cego, atrás da outra sentinela. Quando ele buscar por qualquer sinal de Keiji Kiriya, eu serei parte do cenário.

“Você viu alguma coisa?”

“Calma, o capitão está olhando, e ele não parece feliz.”

“Foda-se.”

E assim, eu me infiltrei no território dos EUA.

Meu alvo era um Jacket modelo americano. Depois de alguns loops, cheguei à conclusão de que preciso de uma nova arma — algo que não tínhamos no Exército Japonês. Os fuzis padrão de 20mm não eram muito eficazes contra Mimics. Eram o meio termo entre o número de balas que um soldado podia carregar, a velocidade de disparo necessária para atingir um alvo em movimento e uma quantidade aceitável de recuo. Elas eram armas bastante poderosas, mas se você realmente quiser perfurar um endoesqueleto, 50mm era a única forma de ter certeza.

A estratégia básica da UDF era usar uma linha de infantaria blindada disparando rajadas de 20mm para desacelerar o inimigo o suficiente para que a artilharia e os tanques pudessem matá-los. Na prática, o apoio nunca veio rápido ou pesado o suficiente. Acabava como nossa responsabilidade eliminar os Mimics.

A arma de último recurso e que eu usei, era o pile driver no ombro esquerdo. Você poderia abrir um buraco e derramar as entranhas de um Mimic com um desses. O lançador de foguetes também poderia vir a calhar, mas era difícil de acertar, e muito provavelmente você não teria munição quando mais precisasse. À medida que me acostumava com a luta, eu confiava cada vez mais no poder do pile driver de 57mm.

Mas ele tinha um grande inconveniente: só podia ser usado 20 vezes e não dava para recarregar como os rifles. Uma vez que disparasse aquela vigésima rodada, você estava acabado. Na melhor das hipóteses, um soldado perfuraria vinte buracos em alguma coisa. Uma vez que o pile driver estivesse sem carga, não daria nem para enfiar uma estaca no coração de um vampiro. As pessoas que projetaram o Jacket apenas não consideraram a possibilidade de que alguém sobreviveria tempo suficiente em combate corpo a corpo com um Mimic para usar mais de vinte rodadas.

Foda-se.

Ficar sem carga tinha me matado muitas vezes. Outro beco sem saída. A única maneira de evitar era encontrar uma arma corpo-a-corpo que não ficasse sem munição. Eu tinha visto, uma vez, na batalha que deu início a todo esse ciclo.

O machado de batalha. Rita Vrataski, uma Valquíria vestida com um Jacket carmesim, e seu machado. Poderia ter sido mais apropriado chamá-lo de um pedaço de carboneto de tungstênio na forma de um machado. Um machado de batalha nunca fica sem munição. Você ainda pode usá-lo se ele for danificado. Aguentava muitas pancadas. Era a arma corpo-a-corpo perfeita.

Mas, no que diz respeito ao mundo, Keiji Kiriya era um recruta que ainda não viu sua primeira batalha. Se pedisse para substituírem o pile driver padrão por uma arma diferente, simplesmente porque não gostei, eles com certeza iriam me ignorar. Yonabaru riu de mim e Ferrell me deu um soco. Quando tentei falar diretamente com nosso comandante de pelotão, ele me ignorou completamente. Tinha que conseguir essa arma sozinho.

Fui para o quartel da divisão de abastecimento que tinha acompanhado as Forças Especiais dos EUA. Cinco minutos depois de atravessar o lado norte-americano da base, cheguei a um lugar protegido por apenas uma soldada. Ela estava girando uma chave mecânica na mão.

O cheiro do petróleo flutuava no ar, inundando a espuma salgada do oceano. O zumbido sempre presente de homens que se moviam sobre a base tinha recuado. Na escuridão do quartel, as armas de aço que a humanidade usava para derrubar seus inimigos estavam desfrutando de uma soneca curta.

A mulher com a chave era Shasta Raylle, uma técnica civil. Seu salário era pelo menos do nível de um primeiro tenente. Muito acima do meu, de qualquer forma. Dei uma olhada nela: altura, 152 centímetros; peso, 37 quilogramas; acuidade visual, 20/300; alimento favorito, bolo de maracujá. Tinha um pouco de sangue indiano americano e usava os cabelos pretos puxados para trás em um rabo de cavalo.

Se Rita era um lince à espreita, Shasta era um coelho desavisado. Ela pertencia ao lar, enrolada em um quarto aconchegante e acolhedor assistindo TV e se enchendo com bombons, não manchada com óleo e graxa em alguma base militar.

Falei tão gentilmente quanto pude. “Olá.”

Shasta saltou ao som da minha voz. Droga. Não fui gentil o suficiente.

Seus grossos óculos caíram no chão de concreto. Observá-la olhar para os óculos era como assistir a um tetraplégico em um piso molhado. Em vez de pôr a chave de lado e procurar com as duas mãos, ela tateou em vão com apenas uma. Não é exatamente o que você esperaria de alguém que se graduou como a melhor da turma no MIT, desenvolveu alguns dos mais avançados Jackets militares em seu primeiro posto de pesquisa na indústria de defesa e, em seguida, foi direto para a UDF como técnica de um Jacket vermelho ferrugem.

Inclinei-me e peguei seus óculos — mais parecidos com um par de lentes de aumento.

“Você deixou cair” eu disse, colocando-os em lugar onde esperava que ela pudesse ver.

“Obrigado, quem quer que seja.”

“Não precisa agradecer.”

Shasta olhou para mim. As lentes de fundo de garrafa deram foco aos seus olhos.

“E você é…?”

“Keiji Kiriya.”

“Obrigado, Keiji Kiriya, sou Shasta Raylle.” Eu tinha deliberadamente informado meu posto e pelotão. A cabeça de Shasta abaixou. “Eu sei que isto pode parecer um barracão simples e comum — bem, na verdade é, mas não é essa a questão, o ponto é, ele contém tecnologia militar altamente sensível. Somente pessoas com a identificação de segurança apropriada são permitidas aqui dentro.”

“Eu sei, não quero entrar.”

“Oh. Bem, estou feliz por termos resolvido isso.”

“Na verdade,” dei um passo em frente, “eu vim te ver.”

“Eu? Estou lisonjeada, mas acho que não posso — quero dizer, você parece muito legal e tudo, é só que não acho que isso seria apropriado, e ainda há preparativos a fazer para amanhã, e —”

“Não é nem meio-dia.”

“Levará o resto do dia!”

“Se você apenas escutar —”

“Eu sei que parece que tudo o que eu tenho feito é remover e reconectar esta peça aqui — e bem, é isso mesmo, mas eu realmente estou ocupada.” Seu rabo de cavalo balançou enquanto ela balançava a cabeça para si mesma, pontuando sua sinceridade.

Está tendo a ideia errada. Tenho que por essa conversa nos trilhos de novo —”

“Então a unidade de memória externa foi danificada?”

“Foi, mas — como você sabia disso?”

“Ei, você e eu sabemos que uma unidade de memória externa não tem uso na batalha. Mas como os chips personalizados contêm tecnologia militar sensível, você tem que preencher uma montanha de papelada para requisitar um desses malditos, estou certo? E aquele filho-da-puta no arsenal batendo em você, não importa quantas vezes você diga a ele que não está interessada a situação não melhora, suponho. É quase o suficiente para te fazer pensar em roubar um de um dos Jackets do Corpo Japonês.”

“Roubar um dos — eu nunca pensei nisso!”

“Não?”

“Claro que não! Bem, o pensamento pode ter cruzado minha mente uma ou duas vezes, mas nunca faria isso! Por acaso pareço com o tipo que…” Seus olhos se arregalaram quando viu o que estava no saco plástico que puxei do meu bolso.

Um sorriso malicioso se espalhou pelo meu rosto. “E se alguém roubasse um para você?”

“Eu poderia ficar com isso? Por favor?”

“Seu tom mudou bem rápido!”

Eu levantei a bolsa contendo o chip acima da minha cabeça. Shasta pulou quando tentou agarrá-lo, mas ela e seus 158 centímetros estavam sem sorte. O óleo manchando suas roupas fez as minhas narinas se expandirem.

“Pare de me provocar e apenas me dê isso, ok?”

Pulo. Pulo.

“Você não sabe o que eu tive que passar por causa disso.”

“Estou te implorando, por favor?”

Pulo.

“Eu vou te dar, mas preciso de algo em troca.”

“Alguma coisa… em troca?”

Gole.

Ela agarrou a chave contra o peito, achatando seus seios que estavam ocultos sob o macacão. Ela tinha se acostumado a bancar a vítima depois de alguns anos com os animais das Forças Especiais. Se era tão fácil provocá-la, não posso realmente culpa-los.

Eu apontei o saco de plástico em direção ao machado de batalha gigante pendurado em uma grade na parte traseira do quartel. Shasta não parecia entender o que eu estava olhando. Seus olhos vasculharam cautelosamente o lugar.

“Vim pedir isso emprestado.” Apontei meu dedo para a orla.

“A menos que meus olhos tenham piorado mais do que pensei, esse é o machado de batalha da Rita.”

“Bingo.”

“Então… você também está na Infantaria Armada?”

“No pelotão japonês.”

“Não é fácil para mim dizer — eu não quero ser rude — mas tentar imitar Rita só vai te machucar.”

“Isso significa que você não vai me emprestar?”

“Se você realmente acha que vai precisar dele, eu empresto, é apenas um pedaço de metal — nós temos muitas peças sobressalentes. Quando Rita me pediu uma, eu o fiz cortando as asas de um bombardeiro”.

“Então por que a relutância?”

“Bem, porque, francamente, você será morto.”

“Com ou sem isso, eu morrerei um dia.”

“Eu não posso te fazer mudar de ideia?”

“Provavelmente não.”

Shasta ficou quieta. A chave pendurada em sua mão como um velho pano, seus olhos perderam o foco. Uma mecha de cabelo desgrenhado presa ao suor e óleo manchado em sua testa. “Eu estava no norte da África antes”, disse ela. “O melhor soldado do melhor pelotão de lá me pediu a mesma coisa que você. Tentei avisá-lo, mas havia política envolvida, as coisas ficaram complicadas, então deixei ele pegar.”

“E ele morreu?”

“Não, escapou por pouco, mas seus dias de soldados acabaram… Se ao menos eu tivesse encontrado um meio de impedi-lo.”

“Você não deve culpar a si mesma. Você não é o ataque dos Mimics.”

“Esse é o problema, ele não foi ferido lutando contra os Mimics. Você sabe o que é inércia?”

“Eu terminei o ensino médio.”

“Cada um desses machados de batalha pesa 200Kg, uma Jacket que suporta 370Kg pode suportá-lo, com certeza, mas mesmo assim, é uma enorme quantidade de inércia. Ele quebrou suas costas balançando o machado. Amplificado o poder de um Jacket, você pode, literalmente, se partir em dois.”

Eu sabia exatamente do que ela estava falando — essa inércia era exatamente o que eu procurava. É preciso algo maciço para quebrar o endoesqueleto Mimic com um golpe. Se isso iria me matar no processo pouco importava.

“Olha, eu tenho certeza que pensa que você é bom, mas Rita não é um soldado comum.” Shasta fez uma última tentativa de me dissuadir.

“Eu sei.”

“Ela é extraordinária, de verdade, ela nunca usa seu balanceador automático e não estou dizendo que ela desliga antes da batalha. Sua Jacket nem sequer está equipada com isso. Ela é o único membro do nosso time sem ele. Em um pelotão de elite, ela é melhor do que a elite.”

“Eu parei de usar um balanceador automático há muito tempo. Nunca pensei em removê-lo inteiramente. Tenho que fazer isso, menos peso para carregar.”

“Ah, então você é próximo da Rita, suponho?”

“Não. Não chego nem aos pés de Rita Vrataski.”

“Sabe o que ela me contou da primeira vez que a conheci, ela disse que estava contente por viver em um mundo cheio de guerra, você pensa o mesmo?” Shasta me avaliou por trás de suas grossas lentes. Eu sabia que ela queria dizer exatamente isso. Eu devolvi seu olhar fixo sem uma palavra.

“Por que você está tão aficionado no machado de batalha dela?” ela perguntou.

“Eu não diria que estou aficionado, estou apenas tentando encontrar algo mais eficaz do que um pile driver. Posso usar uma lança ou um cutelo, se você tiver. Algo que eu possa usar mais de vinte vezes.”

“Foi o que ela disse quando me pediu que lhe fizesse o machado.”

Shasta relaxou seu aperto na chave.

“Qualquer comparação com a Cadela do Campo de B… uh, Valquíria é um grande elogio.”

“Sabe, você é muito…” Sua voz se apagou.

“Eu sou o quê?”

“Incomum.”

“Talvez sim.”

“Lembre-se, não é uma arma fácil de usar.”

“Eu tenho muito tempo para praticar.”

Shasta sorriu. “Eu encontrei soldados que pensam que podem seguir os passos de Rita e falharam, e encontrei alguns que a reconhecem pelo prodígio que ela é e nunca tentaram igualá-la, mas você é a primeira pessoa que conheci que percebe a distância entre Rita e ainda está preparado para alcançá-la.”

Quanto mais compreendia a guerra, mais eu sabia o prodígio que a Rita era. Na segunda vez, quando Rita se juntou a nós na sessão de TFM, eu só a encarava como um novo recruta que não conhecia melhor. Agora que passei pelo ciclo vezes o suficiente para me chamar um verdadeiro piloto de Jacket, a diferença entre ela e eu parecia ainda maior. Se não tivesse, literalmente, uma quantidade infinita de tempo, já teria desistido.

Com um salto magnífico, Shasta arrancou o chip de silício da minha mão. “Espera aí. Deixa eu pegar alguns documentos para o machado antes de ir.”

“Obrigado.”

Ela saiu para pegar os papéis, depois parou. “Posso te perguntar uma coisa?”

“Manda.”

“Por que você tem o número quarenta e sete escrito em sua mão?”

Eu não sabia o que dizer para ela. No improviso não consegui inventar um motivo acreditável para um soldado ter um número escrito em sua mão.

“Oh, isso é… quero dizer, espero não ter perguntado algo que não deveria?”

Eu balancei a cabeça. “Você sabe como as pessoas riscam os dias em um calendário? É algo do tipo.”

“Se é importante o suficiente para escrever em sua mão, deve ser algo que não quer esquecer. Quarenta e sete dias até você ir para casa, talvez? Ou os dias até o aniversário da sua namorada?”

“Se eu tivesse que dar um nome para isso, eu diria que é o número de dias desde que eu morri.”

Shasta não disse mais nada.

Eu peguei meu machado de batalha.

 

{3} 06:00: Acordar.

06:03: Ignorar Yonabaru.

06:10: Roubar chip de silício do arsenal.

06:30: Tomar café da manhã.

07:30: Praticar o movimento básico do corpo.

09:00: Visualizar o treinamento durante a porra do TFM.

10:30: Pegar o machado de batalha com Shasta.

11:30: Almoçar.

13:00: Treinar com ênfase na correção de erros da batalha anterior. (Em Jacket.)

15:00: Encontrar Ferrell para o treinamento de batalha real. (Em Jacket.)

17:45: Jantar.

18:30: Assistir à reunião de pelotão.

19:00: Ir para a festa de Yonabaru.

20:00: Verificar Jacket.

22:00: Ir para a cama.

01:12: Ajudar Yonabaru em seu beliche.

Isso é mais ou menos como eu gasto meu dia.

Fora o treinamento, tudo se tornou rotineiro. Passei por aquelas sentinelas tantas vezes que podia fazer isso com meus olhos fechados. Estava começando a me preocupar em ter me tornado um ladrão mestre antes de me tornar um soldado profissional. Não que a capacidade de roubar qualquer coisa em um mundo que se restaura no final de cada dia faça muita diferença.

O passar do dia não mudou muito de um loop ao outro. Se me desviasse muito da rotina, eu poderia forçar algo diferente a acontecer, mas se não fizesse nada, iria jogar sempre da mesma forma. Era como se todos continuassem a ler o mesmo roteiro que do dia anterior e continuar sendo reprovado.

Era 11:36 quando fui almoçar na Cafeteria nº 2. A senhora me serviu a mesma porção de sopa de cebola na mesma tigela no mesmo horário. Movi meu braço para evitar o mesmo respingo que fazia o mesmo arco no ar. Desviei dos amigos que sempre me chamavam para almoçar e me sentei no mesmo lugar.

Rita estava sentada três filas à minha frente, de costas para mim enquanto comia. Eu não tinha escolhido esta hora para comer porque coincidia com o seu almoço. Apenas aconteceu assim. Por nenhuma razão em particular, me acostumei a vê-la comer do mesmo ângulo todo dia.

Cafeteria nº 2 não era o tipo de que se esperava que um sargento com a Rita fosse comer. Não que a comida fosse ruim. Era muito boa, na verdade. Mas ouvi dizer que as Forças Especiais dos EUA trouxeram consigo sua própria cozinheira, o que só aprofundou o mistério de sua presença. Ela poderia engolir um rato vivo que não se pareceria mais com uma cobra em nosso meio. E assim nossa salvadora comeu sozinha. Ninguém tentou falar com ela, e os assentos à sua volta estavam sempre visivelmente vazios.

Por todas as suas proezas na batalha, Rita Vrataski comia como uma criança. Ela lambeu a sopa dos cantos de sua boca e desenhou imagens em sua comida com as pontas de seus pauzinhos. Aparentemente, os pauzinhos eram algo novo para ela. Às 11:43 ela deixou cair um feijão em seu prato. Ele rolou, acelerando, primeiro saltando para sua bandeja, e depois para a mesa. O feijão voou pelo ar com um giro no sentido horário, indo para o chão de concreto. Cada vez, com reflexos relâmpagos, Rita estendia sua mão esquerda, pegava o feijão no ar, e o colocava em sua boca. Todos em menos de 0.11 segundos. Se ela tivesse vivido no Velho Oeste, imagino que teria atirado Billy the Kid. Se tivesse sido um samurai, ela poderia ter lido todos as sacadas da katana de Kojiro Sasaki. Mesmo quando ela estava comendo, a Cadela do Campo de Batalha era a Cadela do Campo de Batalha.

Hoje, como todos os dias, ela estava tentando comer uma umeboshi² em conserva. Ela deve ter confundido com um pedaço comum de frutas secas. Depois de duas ou três tentativas de pegá-lo com os pauzinhos, ela colocou tudo na boca.

Estômago adentro.

Rita dobrou como se tivesse tomado um tiro de 57mm no intestino. Suas costas se contraíram. Seu cabelo cor de ferrugem parecia que estava prestes a ficar em pé. Mas ela não cuspiu de volta. Ela engoliu tudo. Rita um copo de água como que por vingança.

Ela devia ter pelo menos vinte e dois anos, mas nunca imaginaria quem a observasse. Os uniformes militares de cor de areia não a lisonjeavam, mas se você a vestisse em uma dessas roupas que as garotas da cidade usam, ela seria bonita. Pelo menos eu gostava de imaginar que sim.

O que há de errado com essa comida? Tem gosto de papel.

“Está se divertindo sozinho?” A voz veio de cima da minha cabeça.

Segurando meus pauzinhos sem mover um músculo, olhei pelo canto do olho. Um rosto pré-histórico olhou para mim por baixo de um corte de cabelo plano. Seus traços eram mais parecidos com dinossauros do que com humanos. Definitivamente, algum velociraptor se infiltrou nessa árvore genealógica. Meu ânimo morreu quando vi a tatuagem em seu ombro: um lobo usando uma coroa. Ele era da 4ª companhia, eles guardavam rancor da nossa desde o jogo de rugby. Eu voltei a levar comida para a minha boca com uma regularidade de máquina.

Ele ergueu as sobrancelhas, dois arbustos largos que daria inveja ao mundo das lagartas. “Perguntei se você estava se divertindo.”

“Como não poderia me divertir em tão boa companhia?”

“Então, como é que você está engolindo sua sopa como se fosse algo que estivesse preso no fundo de um esfregão de banheiro?”

Havia apenas um punhado de soldados sentados nas mesas grandes da lanchonete. O cheiro de algo doce flutuava da cozinha. A luz artificial das lâmpadas fluorescentes no teto iluminava o camarão frito empilhado em nossas placas pesadas.

Se você tiver que categorizar a comida preparada no UDF como boa ou ruim, definitivamente era boa. Havia apenas três coisas que um soldado da UDF fazia, afinal: comer, dormir e lutar. Se a comida não era boa você teria um problema moral em suas mãos. E de acordo com Yonabaru, o alimento na base Flower Line era melhor do que a maioria.

A primeira vez que eu provei, pensei que era deliciosa. Isso foi há cerca de cinco meses subjetivos, talvez mais. Aproximadamente após um mês no loop, comecei a temperar pesadamente minha comida. O exagero intencional de temperos criava um gosto a apenas horrível o suficiente para me lembrar da comida. E agora, até isso tinha parado de funcionar. Não importa se você está comendo alimentos preparados por um chef de quatro estrelas, após oitenta dias da mesma coisa, todos os gostos são iguais. Provavelmente porque é igual. Nesse ponto, era difícil para mim pensar em comida como algo que não fosse uma fonte de energia.

“Se minha cara te fez perder a fome, peço desculpas.” Não adianta tentar começar uma briga.

“Espera aí. Está tentando dizer que isso é culpa minha?”

“Não tenho tempo para isso.”

Comecei a empurrar o resto da comida na minha boca. Ele bateu a mão do tamanho de uma luva de beisebol na mesa. Sopa de cebola salpicou na minha camisa, deixando uma mancha onde os esforços da senhora do almoço tinham falhado. Eu realmente não me importo. Não importa o quão grande seja a mancha, amanhã ela teria sumido e eu nem sequer teria que lavar.

“Os caras da 4ª companhia não valem o tempo da 17ª, é isso?”

Percebi que, involuntariamente, havia provocado o cara. Esse loop estava amaldiçoado desde o início, realmente. Eu tinha matado Ferrell acidentalmente no final do último loop, e isso fez tudo sair dos trilhos desta vez. De onde eu estava, não fazia nem cinco horas desde que ele morrera vomitando sangue. Claro que eu também fui KIA, mas era de se esperar. Ferrell morreu tentando proteger um novo recruta.

Eu tinha planejado aliviar minha mente observando Rita do jeito que sempre fiz, mas meu mau humor deve ter sido mais óbvio do que eu esperava. Claramente, foi ruim o suficiente para acionar algo que não tinha acontecido em nenhum dos loops anteriores.

Peguei minha bandeja e fiquei de pé.

O corpo do homem era uma parede de carne bloqueando meu caminho. As pessoas começaram a se reunir, ansiosas por uma briga. Era 11:48. Se eu perdesse tempo aqui, isso acabaria com toda a minha agenda. Só porque eu tinha todo o tempo do mundo não significa que eu tinha tempo a perder. Cada hora perdida significava que uma hora mais fraco, e isso me custaria no campo de batalha.

“Você está correndo, merdinha?” Sua voz ressoou pela cafeteria.

Rita se virou e olhou para mim. Era óbvio que ela acabara de perceber que o recruta que a olhava durante o TFM estava comendo na mesma lanchonete. Algo me disse que se eu devolvesse o olhar, ela me ajudaria do jeito que ela ajudou durante o TFM — ou como ela ajudou na minha primeira batalha. Rita não era o tipo que viraria as costas para alguém em apuros. Sua humanidade estava começando a se mostrar. Me perguntei qual era a dela. Talvez ela começasse a falar sobre o chá verde para distrair esse cara. Eu ri com a ideia.

“O que é tão engraçado?”

Opa. “Nada a ver com você.”

Meus olhos deixaram Rita. O Keiji Kiriya de pé na lanchonete naquele dia não era nenhum recruta verde. Minha aparência externa pode ser a mesma, mas dentro eu era um veterano endurecido por setenta e nove batalhas. Eu poderia lidar com meus próprios problemas. Eu me aproveitei de Rita uma vez durante o TFM e uma vez mais, indiretamente, por usar conversa mole para conseguir um dos seus machados extras. Não precisava envolvê-la uma terceira vez só para escapar de um problema durante o almoço.

“Tá tirando uma com a minha cara?” Ele não ia deixar isso passar.

“Me desculpe, mas realmente não tenho tempo a perder porra.”

“Quê que cê tem entre as pernas? Duas bolas de pingue-pongue?”

“Nunca abri meu saco para olhar.”

“Filho da puta!”

“É o bastante!” Uma voz sensual abafou nossa discussão. Não era Rita.

A salvação tinha vindo de um quarto elemento inesperado. Me virei para ver uma mulher bronzeada de pé ao lado da mesa. Seus peitos cobertos por um avental ocupavam uns bons 60% do meu campo de visão. Ela ficou entre nós segurando um camarão frito com um par de longos pauzinhos. Era Rachel Kisaragi.

“Eu não quero briga aqui, é uma sala de jantar, não um ringue de boxe.”

“Só tentei ensinar bons modos a esse recruta.”

“Bem, a escola acabou.”

“Ei, você foi o único reclamando sobre como ele parecia comendo sua comida.”

“Mesmo assim.”

Rachel olhou para mim. Ela não tinha demonstrado a menor indicação de raiva quando derrubei seu carrinho de batatas, então devo ter feito uma boa impressão. Uma parte dela provavelmente queria envergonhar alguém associado a Jin Yonabaru, amplamente considerado como a pessoa mais irritante na base. Não que eu a culpasse. Eu tropecei e derramei as batatas, e agora isso. As consequências eram minha responsabilidade.

Em uma base marcada por café e deserto, uma mulher como Rachel obrigatoriamente atrairia um admirador ou dois, mas nunca tinha percebido o quão popular ela era. Este homem não tinha escolhido uma briga comigo por alguma rivalidade entre companhias. Ele estava se exibindo.

“Está tudo bem, eu não deveria ter dito nada.” Rachel virou-se para encarar o iminente gigante e me afastou com um gesto pelas costas. “Aqui um camarão, por conta da casa.”

“Guarde para os pinguins.”

Rachel franziu o cenho.

“Esse idiota não tem nada a dizer?” Ele lançou um braço grande e carnudo sobre o ombro de Rachel e deu um golpe.

Eu reagi instintivamente. Meses em um Jacket me condicionaram a manter sempre os pés firmemente plantados no chão. Minha perna direita girou no sentido horário, minha esquerda no sentido anti-horário, trazendo-me para baixo em uma posição de batalha. Eu parei sua investida com meu braço esquerdo e levantei a bandeja de almoço em minha mão direita impedir as placas de caírem, meu centro de gravidade nunca deixando o centro do meu corpo. Rachel largou o camarão frito. Eu a arranquei de seu gracioso mergulho pelo ar antes que ela pudesse tocar o chão.

A defesa tinha tirado o cara do equilíbrio. Ele deu dois passos cambaleantes para a frente, depois um terceiro, antes de cair no almoço do soldado sentado à sua frente. Alimentos e pratos voaram com um estrondo espetacular. Fiquei de pé, equilibrando minha bandeja em uma mão.

“Você deixou cair isso.” Entreguei a Rachel o camarão frito. Os espectadores bateram palmas.

“Porra! merda!” O cara já estava de pé, o punho voando em minha direção. Ele era teimoso. Tive alguns instantes para considerar se deveria esquivar o seu soco, lançar um contra-ataque, ou dar as costas e correr.

Falando de experiência, um de direita encaixado de um homem que tinha sido treinado para pilotar um Jacket definitivamente teria impacto, mas não se comparava ao que um Mimic poderia fazer. O soco desse perdedor seria forte o suficiente para infligir dor, mas não uma ferida mortal, a menos que ele tivesse muita sorte. Eu assisti enquanto ele colocava toda sua força no balanço. Seu punho foi velejar depois da ponta do meu nariz. Ele estava negligenciando seu trabalho, deixando uma abertura. Eu não aproveitei.

Foi a minha primeira chance de te matar.

Ele se recuperou do soco perdido, sua respiração ruindo em seu nariz. Ele começou a brincar como um boxeador. “Pare de pular e lute como um homem, cadela!”

Ainda não foi o suficiente?

A diferença entre nossos níveis de habilidade era mais profunda do que a Fossa das Marianas³, mas eu acho que a demonstração não foi o suficiente para ele desistir. Pobre bastardo.

Ele veio com um gancho de esquerda. Voltei meio passo.

Whoosh.

Outro golpe. Me afastei. Eu odiaria tê-lo matado duas vezes agora.

Lá, minha terceira chance. Agora uma quarta. Ele estava deixando aberturas demais para contar. Eu poderia tê-lo colocado no chão mais de dez vezes em um único minuto. Por sorte, para ele, meu trabalho não era mandar pilotos de Jackets para a enfermaria, não importa o quão excitante isso fosse. Meu trabalho era enviar Mimics para o inferno.

Com cada soco ele dava e perdia, a multidão gritava.

“Anda, você nem sequer arranho ele!”

“Pare de enrolar e acerta logo um!”

“Acerta ele! Acerta ele! Acerta ele!”

“Cuidado com as portas, não quero ninguém quebrando elas! Eu dou dez dólares no grande!” Seguido imediatamente por “vinte no magricela!” Ei, sou eu! Pensei enquanto evitava outro soco. Então alguém gritou: “Cadê meu camarão frito? Eu perdi meu camarão frito!”

Quanto mais selvagem a multidão, mais esforço ele colocava em seus socos e mais fácil era evitar.

Ferrell tinha um ditado: “Quebre cada segundo”. A primeira vez que eu ouvi, eu não entendi o que significava. Um segundo era um segundo. Não havia nada para esticar ou quebrar.

Mas acontece que você pode esculpir a percepção do tempo em pedaços mais e mais finos. Se você ligar um interruptor na parte traseira de seu cérebro, poderia prestar atenção em um segundo como frames em um filme. Depois de descobrir o que estaria acontecendo dez quadros mais tarde, poderia tomar todas as medidas que você precisava virar a situação a seu favor. Tudo de forma subconsciente. Na batalha, você não podia contar com alguém que não dividisse o tempo.

Evitar seus ataques era fácil. Mas não queria criar mais problemas desnecessários do que eu já tinha. Dava muito trabalho alterar meu horário, mas se isso continuasse, a 17ª estaria na cafetaria em breve. Eu precisava acabar com isso antes que eles aparecessem.

Decidi que tomar um de seus socos seria a forma mais rápida. O que eu não esperava era Rachel entrar para tentar detê-lo. Ela alterou o curso de seu soco direito apenas o suficiente para mandar o golpe que passaria perto da minha bochecha direto no meu queixo. Uma onda de calor se espalhou em meus dentes até a parte de trás do meu nariz. Os pratos da minha bandeja dançaram pelo ar. E havia Rita perto do meu campo de visão, saindo da lanchonete. Eu faria desta dor uma lição para a próxima vez. Perdi a consciência e perambulei por um sono lamacento…

Quando voltei, me encontrei deitado em várias cadeiras unidas em uma cama improvisada. Algo úmido estava na minha cabeça — um lenço de mulher. Um ligeiro cheiro cítrico pendia no ar.

“Você está acordado?”

Eu estava na cozinha. Acima de mim um ventilador industrial zumbia, espalhando o vapor da sala. Ali perto, um líquido verde-oliva era cozido a fogo brando em um pote enorme. O cardápio manuscrito da próxima semana pendurado na parede. Acima dele estava a cabeça de um homem rasgado de um cartaz.

Depois de olhar para os seus dentes branqueados por algo que parecia uma eternidade, finalmente o reconheci. Era a cabeça do corpo do cartaz em nosso quartel. Me perguntei como ele conseguiu chegar ali, onde podia passar os dias sorrindo com sabedoria para as mulheres que trabalhavam na cozinha.

Rachel estava descascando batatas, jogando cada pele espiralada em uma cesta enorme que combinava com a escala do pote. Estas eram as mesmas batatas que tinham caído na minha cabeça na quarta vez do loop. Eu tinha comido o maldito purê de batata que ela estava fazendo setenta e nove vezes. Não havia outras trabalhadoras na cozinha além de Rachel. Ela deve ter preparado as refeições para todos esses homens por conta própria.

Me sentando, mordi o ar algumas vezes para testar minha mandíbula. Esse soco me pegou no ângulo certo. As coisas não pareciam estar alinhando do jeito que deveriam. Rachel me viu.

“Desculpe por isso, ele não é tão mau.”

“Eu sei.”

Ela sorriu. “Você é mais maduro do que parece.”

“Não maduro o suficiente para ficar longe de problemas, aparentemente.” Respondi com um encolher de ombros.

As pessoas sempre estavam um pouco nervosas no dia anterior a uma batalha.

E os caras estavam sempre procurando uma oportunidade de se parecer na frente de Rachel. As cartas estavam todas contra mim, embora tenho certeza que a cara que eu fiz não ajudou nem um pouco.

“O que você é, pacifista? Raça rara nessas partes.”

“Eu gosto de me guardar para a batalha.”

“Isso explica.”

“Explica o quê?”

“Por que você estava se segurando, você é obviamente o melhor lutador.” Os olhos de Rachel olharam para mim atentamente. Era alta para uma mulher. A base da Flower Line foi construída há três anos. Se ela viesse para a base imediatamente depois de obter sua licença de nutricionista, isso a faria pelo menos quatro anos mais velha do que eu. Mas ela certamente não parecia. E não era como se ela se esforçasse para parecer jovem. O brilho bronzeado da sua pele e seu sorriso acolhedor eram naturais. Ela me lembrava a bibliotecária pela qual me apaixonei no colégio. O mesmo sorriso que tinha roubado meu coração e me fazia trabalhar feliz na biblioteca durante o quente verão há muito tempo.

“Nossas vidas deveriam ser escritas em pedra. O papel é muito frágil — muito fácil de reescrever.” Pensamentos como esse tinham ocupado minha mente ultimamente.

“Coisa estranha para se dizer.”

“Talvez.”

“Você está saindo com alguém?”

Eu olhei para ela. Olhos verdes. “Não.”

“Estou livre esta noite.” Depois acrescentou, apressada: “Não fique com a ideia errada, não digo esse tipo de coisa para qualquer um.”

Isso eu sabia. Ela tinha deixado Yonabaru de lado facilmente. Por uma semana inteira ouvi queixa após queixa sobre a mulher mais gostosa cujas pernas estavam trancadas junto com a entrada principal. “É uma farsa nos dias de hoje”, ele me disse. Tive a sensação de que não era um tratamento especial só porque Yonabaru era quem ele era.

“Que horas são?” Ainda tinha um horário a manter.

“Quase três horas, você apagou por cerca de três horas.”

15:00. Eu deveria estar treinando com Ferrell. Tinha que corrigir o que eu fiz no último loop — o movimento que tinha matado o tenente Ferrell e o tenente. Eles tinham morrido me protegendo porque eu estava me exibindo. Ainda podia ver as imagens da família carbonizada e ardente, com que Ferrell tinha decorado o interior de seu Jacket, tremulando ao vento. A imagem dele sorrindo sob um brilhante sol brasileiro, cercado por irmãos e irmãs, queimou em minha mente.

Não possuo nenhum talento extraordinário que me separe dos meus iguais. Sou apenas um soldado. Há coisas que posso e que não posso fazer. Se praticar, com o tempo poderei fazer coisas que agora não posso. Não deixarei meu excesso de confiança matar quem me salvou outra vez.

Sob outras circunstâncias, eu poderia ter aceitado seu convite.

“Desculpe, mas não sou o cara que você está procurando.”

Me virei e comecei a correr em direção ao campo de treinamento onde o sargento Ferrell estava esperando, pingando de suor e cheio de adrenalina.

“Idiota!”

Eu não parei para devolver o elogio.

 

{4} Tentativa # 99:

KIA quarenta e cinco minutos após o início da batalha.

 

{5} Tentativa # 110:

Eles atravessaram nossa linha. Yonabaru é o elo fraco.

“Keiji… aquele romance de mistério… Era aquele cara que comia o pudim que…”

Com essas palavras, ele morre.

KIA cinquenta e sete minutos depois do início da batalha.

 

{6} Tentativa # 123:

As enxaquecas que começaram após cerca de cinquenta loops estão piorando. Não sei qual é a causa. Os analgésicos que os médicos me dão não funcionam de jeito nenhum. A perspectiva dessas dores de cabeça que me acompanham em cada batalha daqui em diante não estão melhorando a minha moral.

KIA sessenta e um minutos depois do início da batalha.

 

{7} Tentativa # 154:

Perder a consciência a oitenta minutos depois do início da batalha. Eu não morro, mas ainda estou preso no loop. Tanto faz. Se é assim que vai ser, é assim que vai ser.

 

{8} Tentativa # 158:

Eu finalmente dominei o machado de batalha de carboneto de tungstênio. Posso rasgar através de um endoesqueleto de Mimic com um movimento do pulso.

Para derrotar os inimigos resistentes, a humanidade desenvolveu lâminas que vibram em frequências ultra-altas, pile drivers que atiram a velocidades de mil e quinhentos metros por segundo e armas de combate corpo-a-corpo explosivas que utilizaram o efeito Munroe. Mas as armas de fogo acabam a munição. Elas travam. Elas quebram. Se você acertar uma lâmina fina pelo ângulo errado, ela vai se quebrar. E assim Rita Vrataski reintroduziu a guerra ao machado simples, porém altamente eficaz.

Era uma solução elegante. Cada impulso gerado pelo Jacket era convertido em pura força destrutiva. O machado poderia se dobrar ou lascar, mas sua utilidade como arma não seria diminuída. Na batalha, as armas que você poderia usar para espancar seu inimigo eram as mais confiáveis. As armas que haviam sido afiadas até uma borda fina, como a katana, cortariam tão profundamente que seriam enfiadas no corpo de seu inimigo e você não poderia puxá-las de volta. Havia realmente histórias sobre guerreiros que enfraqueceram suas lâminas com uma pedra antes da batalha para impedir que isso acontecesse. O machado de Rita tinha provado seu valor repetidamente.

Meu pelotão rastejou em direção à ponta norte da ilha de Kotoiushi, Jackets no modo de hibernação. Faltavam cinco minutos para que nosso comandante de pelotão desse o sinal para o início da batalha. Não importa quantas vezes eu experimente, esse era o momento que eu ficava mais tenso. Posso ver porque Yonabaru deixa qualquer merda sair da sua boca. Ferrell apenas deixa nossa conversa rolar.

“Eu estou te dizendo, você tem que se enfiar em alguma vagina, se esperar até que você esteja preso em um desses Jackets, já é tarde demais”.

“É.”

“E quanto a Mad Wargarita?” Vocês estavam conversando durante o TFM, né? Você enfiar não ia, eu sei que você ia.”

“É.”

“Você é um cara frio.”

“É?”

“Você nem se cagou, e você tá calmo como uma puta. Na minha primeira vez eu tinha borboletas batendo um tornado no meu estômago.”

“É como um teste padronizado.”

“Do que você está falando?”

“Você não fez eles no colégio?”

“Cara, você não espera que eu me lembre da escola, não é?”

“É.” Eu tinha mudar o foco da conversa do Yonabaru, mas minha mente estava em piloto automático. “É.”

“É o quê? Eu nem disse nada.” A voz de Yonabaru me alcançou através de um nevoeiro.

Sinto como se estivesse lutando neste mesmo lugar por cem anos. Há meio ano, eu era um garoto na escola. Não poderia me importar menos com uma guerra que estava lentamente afogando a terra em seu próprio sangue. Eu vivia em um mundo de paz, cheio de família e amigos. Nunca imaginei que trocaria salas de aula e o campo de futebol por uma zona de guerra.

“Você está engraçado desde ontem.”

“É?”

“Cara, não vá ferrar com a gente. Dois de uma vez do mesmo pelotão — como é que ia parecer? E eu estava querendo perguntar: o que diabos é esse pedaço de metal que você está carregando? Que merda que você planeja fazer com isso? Tentando afirmar sua individualidade? Trabalhando em um projeto de arte?”

“É para esmagar.”

“Esmagando o quê?”

“O inimigo, principalmente.”

“Se você se aproximar, é para isso que serve o seu pile driver. Vai me dizer que está melhor com um machado? Talvez a gente devesse encher nosso pelotão com lenhadores. Hi ho, hi ho.”

“Eram os anões.”

“Bom ponto. É verdade. Ponto para você.”

Ferrell entrou em nossa conversa. “Ei, não sei onde ele aprendeu, mas ele com certeza pode usar essa coisa, mas Kiriya, só use isso quando estiverem na sua cara e você não tiver escolha. A guerra moderna ainda é travada com balas. Tente não se esquecer.”

“Sim senhor.”

“Yonabaru.”

Eu acho que o sargento sentiu que ele precisava chamar a atenção ao redor.

“Sim?”

“Só… faça o que sempre faz.”

“Que diabos, Sargento? Keiji fica com os elogios e eu fico com isso? Uma alma delicada como a minha precisa de algumas palavras inspiradoras de encorajamento também.”

“Eu poderia muito bem encorajar meu rifle por tudo o que ele já fez.”

“Você sabe o que é isso? Discriminação, é isso mesmo!”

“De vez em quando você me faz pensar, Yonabaru”, disse Ferrell, sua voz pelo link de comunicação. “Eu daria a minha pensão ao homem que inventar uma maneira de apertar o seu — merda, começou! Não deixem eles estourarem suas bolas, senhores!”

Eu saltei para a batalha, o habitual zumbido no meu capacete. Assim como das outras vezes.

Lá. Um alvo.

Eu disparo. Me abaixo. Um dardo passa pela minha cabeça.

“Quem está lá na frente, você está muito longe, quer se matar?”

Fingi seguir as ordens do líder do pelotão. Não importa quantas vidas você tem, se seguir as ordens de cada oficial fresco da academia, vai acabar entediado até morrer.

O trovão explodiu das balas que cruzavam o céu. Limpei a areia do meu capacete. Olhei para Ferrell e assenti. Levou apenas um instante para que ele percebesse que o fogo supressor que eu acabei de soltar tinha frustrado uma emboscada inimiga. Em algum lugar em Ferrell, seus instintos lhe diziam que esse recruta chamado Keiji Kiriya, que nunca tinha pisado na batalha em sua vida, era um soldado que ele poderia usar. Ele foi capaz de ver além da imprudência do que eu tinha acabado de fazer. Era esse tipo de adaptabilidade que o manteve vivo durante vinte anos.

Para ser honesto, Ferrell era o único homem no pelotão que eu poderia usar. Os outros soldados só tinham visto duas ou três batalhas no máximo. Mesmo os que sobreviveram no passado. Estes novatos não sabiam o que era andar na navalha entre a vida e a morte. Eles não sabiam que a linha que dividia os dois, a fronteira empilhada com cadáveres, era o lugar mais fácil para sobreviver. O medo que permeava cada fibra do meu ser era implacável, era cruel, e era a minha melhor esperança para passar por isso.

Essa era a única maneira de lutar contra os Mimics. Eu não sabia nada sobre outras guerras, e francamente, não me importava. Meu inimigo era o inimigo da humanidade. O resto não importava.

O medo nunca me deixou. Meu corpo tremia com ele. Quando sentia a presença de um inimigo fora de meu campo de visão, podia senti-lo rastejar ao longo da minha espinha. Quem me disse que o medo tinha uma maneira de penetrar em seu corpo? Teria sido o líder do pelotão? Ou foi Ferrell? Talvez tenha sido algo que ouvi durante o treinamento.

Mas mesmo quando o medo esgota meu corpo, ele me acalma, me conforta. Soldados que se deixam levar por um pico de adrenalina não sobrevivem. Na guerra, o medo é a mulher sobre a qual sua mãe te avisou. Você sabia que ela não era boa para você, mas você não podia deixa-la. Tinha que encontrar uma maneira de se dar bem, porque ela não iria a lugar algum.

A 17ª Companhia do 3º Batalhão, 12º Regimento, 301ª Divisão de Infantaria Armada era munição para canhão. Se o assalto frontal fosse bem-sucedido, os Mimics que fugissem do cerco iriam nos lavar como água subindo através de um barranco seco. Se falhasse, seríamos um pelotão solitário no meio de um mar de inimigos. De qualquer forma, nossas chances de sobrevivência eram escassas. O comandante de pelotão sabia disso, e o sargento Ferrell sabia disso. Toda a companhia era formada por soldados que sobreviveram à matança em Okinawa. Quem melhor para essa tarefa de merda? Em uma operação envolvendo vinte e cinco mil Jackets, se uma companhia solitária de 146 homens for varrida, não valeria nem um memorando na mesa do ministério da defesa. Nós éramos o sacrifício cujo sangue lubrificaria as rodas da maquinaria da guerra.

Para começar, havia apenas três tipos de batalha: fodido, seriamente fodido, e fodido acima de qualquer coisa. Não adianta entrar em pânico. Haveria caos de sobra. O mesmo para os Jackets. O mesmo para o inimigo. O mesmo para os amigos. O mesmo para mim e para os músculos que não estavam prontos para o que eu exigia deles, gritando em protesto.

Meu corpo nunca mudou, mas o sistema operacional que o dirigia tinha passado por uma revisão total. Comecei como um recruta inexperiente, uma boneca de papel varrida pelos ventos da guerra. Me tornei um veterano que dobrou a guerra à própria vontade. Carreguei o fardo de uma batalha sem fim como a máquina de matar que me tornei — uma máquina com sangue e nervos no lugar de petróleo e fios. Uma máquina não fica distraída. Uma máquina não chora. Uma máquina usa o mesmo sorriso amargo dia após dia. Ele lê a batalha enquanto ela se desenrola. Seus olhos examinam o próximo inimigo antes de terminar de matar o primeiro, e sua mente já está pensando no terceiro. Não foi sorte, e não foi azar. Simplesmente era. Então continuei lutando. Se isso fosse continuar para sempre, continuaria para sempre.

Atire. Corra. Um pé, depois o outro. Continue andando.

Um dardo rasgou o ar em que eu estava apenas um décimo de segundo atrás. Ele cavou no chão antes de detonar, despejando areia no ar. Era minha vez. O inimigo não podia ver através da chuva de terra — eu podia. Lá. Um, dois, três. Eu peguei os Mimics através da improvisada cortina de poeira.

Acidentalmente chutei um dos meus amigos — o tipo de chute que você costumava quebrar uma porta quando as duas mãos estão cheias. Tinha uma arma na minha mão esquerda e um machado de batalha na minha direita. Foi uma coisa boa que Deus nos deu, dois braços e pernas. Se eu tivesse apenas três apêndices para trabalhar, não seria capaz de ajudar esse soldado, quem quer que ele fosse.

Quando me virei, cortei outro Mimic com um único golpe. Corri até o soldado caído. Ele tinha um lobo com uma coroa pintada em sua armadura — 4ª Companhia. Se eles estavam aqui, isso significa que tínhamos encontrado a principal força de assalto. A linha estava cedendo.

Os ombros do soldado tremiam. Estava em estado de choque. Se foi o Mimic ou meu pontapé que fez isso, eu não poderia dizer. Ele estava alheio ao mundo ao seu redor. Se o deixasse lá, ele seria um cadáver dentro de três minutos.

Coloquei a mão em sua placa de ombro e estabeleci comunicação de contato.

“Você se lembra de quantos pontos nós vencemos vocês no jogo?”

Ele não respondeu. “Você sabe, aquele que perderam para a 17ª Companhia.”

“O quê… o quê?” As palavras raspavam em sua garganta.

“O jogo de rugby, não se lembra? Batemos algum tipo de recorde da base, então acho que nós fizemos pelo menos dez, vinte pontos.”

Eu percebi o que estava fazendo.

“Sabe, é engraçado, eu falando com você assim… Ei, não acha que ela me acusaria por roubar sua ideia, não é? Não é como se ela tivesse uma patente ou qualquer outra coisa.”

“O que você está falando?”

“Você vai ficar bem.” Ele estava saindo do choque muito rápido — ele não era novato como eu tinha sido. Dei um tapa nas costas dele. “Você me deve, 4ª Companhia. Qual é o seu nome?”

“Kogoro Murata, e eu não te devo merda nenhuma.”

“Keiji Kiriya.”

“Essa sua atitude. Não tenho certeza se eu gosto.”

“O sentimento é mútuo, esperemos que nossa sorte se mantenha.”

Golpeamos os punhos e nos separamos.

Virei minha cabeça da esquerda para a direita. Corri. Puxei o gatilho. Meu corpo há muito havia passado a exaustão, mas uma parte de mim mantinha um senso de alerta aumentado, impossível em circunstâncias normais. Minha mente era seletiva — qualquer peça de informação que não fosse vital para a sobrevivência era automaticamente excluída.

Eu vi Rita Vrataski. O som de uma explosão anunciou sua chegada. Uma bomba guiada por laser caiu de um avião, longe do alcance do inimigo. Cobriu a distância entre nós em menos de vinte segundos, detonando precisamente onde a Valquíria tinha marcado.

Rita estava indo para o local que a bomba tinha atingido, uma mistura quebrada de detritos, partes iguais, vivas e mortas. Criaturas fluíram da cratera em direção a seu machado de batalha.

Mesmo em meio à batalha, ver o Jacket vermelho de Rita mexeu comigo. Sua mera presença dava nova vida em nossa linha quebrada. Sua habilidade era incomparável, o produto dos esforços das Forças Especiais dos EUA para criar o soldado dos soldados. Mas era mais que isso. Ela realmente era nossa salvadora.

Apenas um vislumbre de seu Jacket no campo de batalha levaria os soldados a dar outros dez por cento, mesmo que eles não tivessem mais nada. Tenho certeza de que havia homens que a veriam e se apaixonariam, como um homem e uma mulher em um navio afundando espiando um ao outro entre as ondas. A morte pode vir a qualquer momento no campo de batalha, então por que não? Os caras sábios que a chamaram de Cadela do Campo de Batalha realmente haviam vislumbrado isto.

Mas eu não acho que eles tinham o direito. Ou talvez eu estivesse começando a sentir algo por Rita Vrataski. Isso me caiu bem. Preso neste maldito loop, eu não tinha esperança de me apaixonar. Mesmo que encontrasse alguém que pudesse me amar em um dia curto, isso acabaria no próximo loop. Ele me roubou cada momento que passei com alguém.

Rita me salvou uma vez, há muito tempo. Ela me manteve calmo com sua conversa aleatória sobre chá verde. Ela me disse que ficaria comigo até eu morrer. Que melhor alvo para o meu amor não correspondido que minha salvadora?

Meu sistema continuava a responder automaticamente, apesar da distração que minhas emoções estavam dando. Meu corpo torceu. Plantei um pé no chão. Não tinha que pensar sobre a batalha que se desdobrava diante dos meus olhos. O pensamento só atrapalhava. Decidir qual a maneira de se mover, e como, era coisas que você fazia no treinamento. Se parasse para pensar em batalha, a morte estaria lá esperando, pronta para balançar a foice.

Eu lutava.

Fazia setenta e dois minutos desde que a batalha começou. Tanaka, Maie, Ube e Nijou, todos KIA. Quatro mortos, sete feridos e zero desaparecidos. Nijou tinha pendurado o cartaz da modelo de maiô na parede. Maie era de algum lugar no interior da China. Ele nunca disse uma palavra. Eu não sabia muito sobre os outros dois. Gravei o rosto dos homens que eu deixei para morrer profundamente em minha mente. Em poucas horas a dor desapareceria, mas eu me lembraria. Como um espinho no meu coração, me atormentava e me endureceu para a próxima batalha.

De alguma forma, nosso pelotão se manteve unido. Eu podia ouvir as lâminas dos helicópteros à distância. Eles não tinham sido disparados do céu. Esta foi a melhor tentativa. O líder do pelotão não tinha palavras para o recruta que tinha tomado o controle em suas próprias mãos. De vez em quando, Ferrell disparava algumas vezes para ajudar.

E então eu vi — o Mimic que eu tinha lutado na primeira batalha que me tinha prendido neste maldito laço. Eu tinha disparado três rodadas do pile driver naquele dia. Eu não sei como, mas sabia que era ele. Do lado de fora era o mesmo cadáver de rã inchado como todo o resto, mas aqui na minha 157ª passagem através do laço, eu ainda podia reconhecer o Mimic que havia me matado pela primeira vez.

Ele tinha que morrer de forma dolorosa.

De alguma forma eu sabia que se pudesse matá-lo, eu passaria algum tipo de limite. Não pude quebrar este loop batalha após a batalha, mas algo mudaria, mesmo que fosse algo pequeno. Eu tinha certeza disso.

Fique aí. Eu estou indo até você.

Falando em cruzar fronteiras, eu não tinha lido mais nada naquele romance de mistério. Não sei por que isso se passou na minha cabeça, mas aconteceu. Passei algumas das minhas últimas preciosas horas lendo aquele livro. Eu parei assim que o detetive estava prestes a revelar o mistério. Estava tão preocupado com o treinamento que não tinha pensado nisso. Deve fazer quase um ano agora. Talvez tenha chegado a hora de terminar esse livro. Se matasse esse Mimic e chegasse ao próximo nível, eu começaria esse último capítulo.

Preparei meu machado de batalha. Tomando cuidado com o vento, eu disparei.

Estática estalou em meus fones de ouvido. Alguém estava falando comigo. Uma mulher. Era nossa salvadora, a Cadela do Campo de Batalha, Valquíria Encarnada, Mad Wargarita — Rita Vrataski.

“Quantos ciclos já se passaram para você?”


Notas:

1 Bomba que se fragmenta liberando projéteis menores para causar um maior número de vítimas.

2 Umê em conserva. Embora umê seja chamado de ameixa, ele está mais próximo ao damasco. Tem sabor forte, muito ácido e salgado. Geralmente acompanha o arroz.

3 A Fossa das Marianas é o local mais profundo dos oceanos, atingindo uma profundidade de 11034 metros. Localiza-se no oceano Pacífico, a leste das ilhas Marianas.

4 Descoberto pelo cientista americano Charles E. Munroe. Usado em projéteis perfurantes de blindagem. Resulta na produção de um jato fino de metal derretido de altíssima velocidade (mais de 8230 m/s) que perfura blindagens abrindo um orifício de oito a dez vezes o diâmetro do próprio jato.

 



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