Volume 2
Capítulo 45: A Vivenda de Alvitres
GRIS
Não me aproximar da Alameda Cerúlio, foi o que ele disse. Mas que diferença faz, afinal eu já o desobedeci de todas as formas possíveis. Uma a mais ou a menos não fará diferença.
Talvez eu deva começar a pensar nas possíveis desculpas que darei ao professor quando ele voltar. Porém, terei de fazer isso depois, já que não tenho tempo agora. Portanto deixarei este problema para o meu eu do futuro resolver.
— Olha, é a Guilda de Aventureiros. — Aponta Alienor. — Vamos dar uma olhadinha?
Uma espada, uma adaga e um cajado cruzados, todos sobre um escudo. Esse é o símbolo que vejo acima da porta do local que Alienor se refere.
— Precisamos nos preparar para a luta, Alienor. Não temos tempo agora — respondo.
— Tsk! Tá bom, você tem razão. Nem deve ter nada de legal lá dentro mesmo.
Nesta rua, suspensa e azulada, há diversas construções com formas tradicionais, com telhados de barro e paredes feitas de alvenaria. São diferentes dos estabelecimentos padrões de Ticandar, estes que por fora são apenas árvores gigantes com claraboias e nada mais.
Devo admitir que é um tanto reconfortante ver construções mais parecidas com as de Lumínia. É nostálgico, eu diria.
Aqui há casas de apostas, leilões e diversos comércios diferentes. Porém algo em específico capta minha atenção. Há uma construção de cor preta e branca, com um símbolo de uma balança acima de uma gigantesca porta de metal. Eu pego meu colar para comparar.
— Eu sabia, é parecido.
É exatamente o mesmo desenho, mas com a diferença que o do banco possui uma esfera preta e outra branca em cada lado da balança.
— Que foi, Gris? — pergunta Alienor.
— Aquela balança. — Aponto para o símbolo — É idêntica a do amuleto que o professor me deu.
— Ahm! Será que ali é centro de operações dele?
— É o Banco de Estátera — diz Kali. O mascarado balança a cabeça confirmando a informação.
— O que acontece ali? — pergunto.
— O banco possui uma filial em cada continente. Qualquer valor depositado em uma das instituições é disponível aos clientes em qualquer outra, sob o pagamento de uma pequena taxa de administração, é claro — explica o Karakhan.
— Mas como que eles podem saber a quantidade de dinheiro que a pessoa tem em outro lugar?
— Há um artefato mágico idêntico em cada um dos bancos, e eles são interligados por uma magia antiga e muito poderosa. Quando a informação contida em uma é alterada, as informações das demais também é.
— Caramba, se uma pedra mágica com uma magia simples já é cara, então algo assim deve valer uma fortuna! — eu comento.
— Creio que você tem razão, mas por este e outros motivos há guerreiros muito poderosos que defendem tais locais. Além disso, a movimentação de dinheiro é tão grande que acaba compensando investir em proteção. Todos os grandes líderes do mundo inteiro guardam suas fortunas ali.
— Mas eles aceitam guardar dinheiro em uma instituição de outro país?
— Humpf! — Kali vira o rosto para o lado e cruza os braços de forma esnobe com meu comentário. Qual o problema dela comigo?
— Gris, como você não sabe de tudo isso? — indaga o Karakhan. — É senso comum até para crianças. O banco é uma instituição milenar e neutra, extremamente confiável, ele é mais antigo que a maioria das nações que existem e possui leis próprias dentro dele.
— Leis próprias?
— Ao entrar ali, você abre mão de todos os seus direitos, e passa a respeitar as leis do Banco de Estátera. É como entrar em outro país.
— Isso é incrível — eu digo.
— Não liguem para ele, pessoal. O Gris é um ermitão e não entende nada da civilização. Hahaha — caçoa a ruiva.
— Mas não é isso que viemos ver. Precisamos chegar na Vivenda de Alvitres. Eu mal posso esperar. Hihihi. — Outra risadinha estranha do mascarado.
O Karakhan aponta seu dedo para uma construção enorme, com detalhes finos e iluminada por uma luz avermelhada, bem diferente da luz azulada que predomina aqui. Na frente do estabelecimento, há um canteiro de flores coloridas.
— Espera! Aquilo ali não é um...? — questiona Kali.
— Exato, um local de pesquisa — complementa o mascarado, ao esfregar suas mãos.
Kali reage abaixando a cabeça e escondendo o rosto. Ela espreita para conferir se alguém está nos observando.
— Achei que você era uma guia, deveria saber dessas coisas. Hahaha — diz Alienor ao passo que coloca uma mão sobre o ombro da lumen e continua: — Eu sabia que aquele demônio estaria ligado a um lugar sujo assim. É bem típico dele mesmo...
Às vezes, eu não consigo acompanhar o que se passa na cabeça de Alienor. Parece que, apesar de estarmos no mesmo lugar, ela vive em um mundo diferente.
— Certo! Quanto de dinheiro vocês têm? — questiona o mascarado.
— Noventa e três peças de ouros imperiais, foi o que o caçador deixou comigo, já descontando o que gastamos com as roupas de Alienor e com a comida — explica Kali.
Nos entreolhamos, Alienor e eu não temos dinheiro, então somente damos de ombros.
— Uhm... creio que será suficiente. Só confiem em mim, que dará tudo certo. Hehehe — diz o Karakhan. Ele não inspira muita confiança!
Escuto uma música bonita e relaxante, vinda de um instrumento com cordas, ao passar pela porta da Vivenda de Alvitres. O ambiente condiz com seu exterior: Possui acabamentos arredondados e finos. O piso é de madeira, e as paredes são de uma cor carmesim.
A iluminação provém de lampiões fixados nas paredes, o que dá um aspecto charmoso e requintado ao local. Agora eu sei o que significa a palavra charmoso, mas isso não vem ao caso neste instante.
Estamos no corredor da recepção ainda, mas meus olhos me guiam até mulher loira com um longo vestido florido que passa pela porta. Ela vira seu rosto em minha direção, me vê e dá um sorriso.
A loira se aproxima de uma outra mulher de cabelos vermelhos escorada na parede e tampa parte do seu rosto com um leque roxo.
A ruiva olha na minha direção também, depois para sua colega novamente. Ambas tampam as bocas com seus leques, porém seus risos discretos são delatados pelos movimentos de seus ombros.
Sinto uma fisgada na costela e, involuntariamente, solto um som vergonhoso e sem sentido: — Ain!
Busco a origem da fisgada, foi Alienor que me cutucou. É quando ela diz: — Se comporte, seu tarado. Estamos aqui para algo importante.
Mas o que foi que eu fiz?!
— Vocês têm que idade? — pergunta um homem bem alto, forte e de cabelos pretos na entrada. Ele fala em linguagem lumen, mas com um sotaque imperial.
Ao lado do guarda há um tacape de metal, escorado na parede. Provavelmente para expulsar baderneiros. Ele tem uma postura de um guerreiro e deve saber lutar muito bem.
— O mais novo é este rapaz aqui, tem treze anos. Mas ele está participando do torneio e já venceu duas lutas. Aliás, todos os três aqui já participaram — argumenta o mascarado.
O guarda cruza seus braços, me analisa de cima a baixo e diz: — Você vai querer me dizer que esse bostinha aí sabe lutar?
— É, foi o que eu disse. Algum problema? — aduz o Karakhan.
O guarda inclina a cabeça para trás, levanta as mãos na altura dos ombros com as palmas viradas para nós e responde: — Qual foi? Qual foi? Eu só estou fazendo amizades aqui, Sr. Karakhan. Podem entrar, divirtam-se. Só não desrespeitem as garotas.
— Ah! — exclama o mascarado: — Tem mais uma coisa: As tulipas do lado de fora precisam de um pouco de água.
— Tenho cara de jardineiro, porra!? — pergunta o guarda. Depois ele coça a cabeça, olha para os lados discretamente, se aproxima do Karakhan, esconde sua boca, e cochicha: — As amarelas?
— As vermelhas, na verdade.
O guarda suspira, cruza os braços novamente e indica com a cabeça uma porta aos fundos do bordel.
As tulipas pareciam bem saudáveis do lado de fora. Tanto as amarelas, quanto as vermelhas. Bom, as cor-de-rosa e roxas também.
O Karakhan vira seu rosto para mim. Mesmo por detrás de sua máscara sem expressão, sinto que ele mandou uma piscadinha e um sorriso safado. É quase sobrenatural.
— Vamos acabar logo com isso. Quero ir embora — comenta Kali.
— Hey! Aqui vocês fazem rituais macabros também, não é? — pergunta Alienor. O guarda inclina sua cabeça para o lado e franze a testa. Eu, em resposta, a puxo pelo braço em direção à porta. — Pode confessar. Eu sei que fazem! Preciso saber, é importante...
Ao atravessar a boate, todos nos olham. Creio que nosso grupo seja bem inusitado e barulhento. O suficiente para roubar as atenções que deveriam ser destinadas às belas garotas que estão no local.
O lugar cheira a vinho, cigarro e perfumes de flores.
As mulheres são muito bonitas e trabalham servindo aos clientes nas mesas. Outras delas conversam com os fregueses, enquanto fumam.
Mas uma se destaca entre todas, pois é uma lumen muito bela com um vestido florido vermelho, igual que as cores das suas unhas e do batom de sua boca. Em contraste com o escarlate, sua pele é branca como a neve, iguais que as cores de seus cabelos que se prologam até a altura de sua cintura. Já seus olhos entreabertos são prateados.
Ela está no mesmo local que a origem da música que ouvi ao entrar, pois é ela quem toca uma arpa dourada. A lumen está sentada e concentrada no instrumento.
— Parece um pôr do sol, verdade? — comenta o Karakhan, ao se escorar no meu ombro e observar a lumen tocar a melodia.
— Ela é muito bonita, sim.
— Vejo que você é um homem de cultura, Gris. Hihihi.
— A gente não veio aqui para isso, verdade? — questiona Kali, com o rosto avermelhado.
— Infelizmente... não — responde o mascarado, depois solta um longo suspiro. — Mas tudo bem, pois a música já está acabando mesmo.
Com um semblante de derrota em seu caminhar, o mascarado vira as costas para a donzela da arpa e parte em direção à porta indicada pelo guarda. Nós o acompanhamos.
Ao abrir a porta, vejo que se trata de uma pequena sala com uma mesa retangular com bordas arredondadas no centro. Nas extremidades do quarto, há um sofá que se estende por toda a parede em uma distância suficiente para se servir à mesa. Assim como lá fora, as paredes são pintadas em vermelho.
— Sentem-se, precisamos esperar um instante — aduz o mascarado.
Enquanto nos acomodamos, o som da arpa para de tocar lá fora.
— Pois bem, dada a minha influência neste lugar — diz o Karakhan—, será permitido que vocês participem desta reunião. Entretanto jamais contem o que vocês virem ou ouvirem aqui. Estou seguro que não quererão a Vivenda de Alvitres como inimiga.
— Aqui não parece um lugar para coletar informações. Parece mais um lugar para pessoas degeneradas passarem o tempo — comenta Kali.
O mascarado ignora o comentário da lumen e diz: — Caso fiquem, deixem que eu faça as perguntas, isso é para que vocês mantenham sua saúde financeira. Os avisos já foram dados, se desejam sair, este é o momento.
— Hum... Eu até que gostei do lugar. Ficarei por aqui — diz Alienor, ao passo que cruza as pernas de lado e apoia seu cotovelo na mesa. — Você que está com a grana, branquela, então pague uma bebida e uns petiscos para nós.
— Você só pode estar de brincadeira! — responde a lumen.
— Eu pareço alguém que brinca? — contesta a ruiva com o rosto emburrado.
Pior que parece! Porém eu nunca diria. Valorizo o que me resta de saúde.
— Está querendo dizer alguma coisa, seu assediador de donzelas? — Alienor aponta na minha direção. Será que ela consegue ler minha mente também?!
Quando eu abro a boca para me defender, escuto a porta se abrir. Por ela, passa uma mulher de cabelos brancos e vestido vermelho. Seu perfume florido misturado com um cheiro de tabaco tomam conta do ambiente. Todos se calam e a observam.
A mulher senta na poltrona, cruza suas pernas, retira um cigarro branco de uma cartela preta e o conecta a um suporte de madeira, o qual leva à sua boca.
Seus movimentos são tão graciosos e precisos que dá a impressão de que se trata de um rito, um no qual ela deve repetir há muito tempo.
— Ignis — sussurra a donzela de vermelho, com o dedo indicador apontado para a ponta de seu cigarro. O breve vislumbre de sua voz é suficiente para concluir que é imponente e bela.
A lumen traga de seu cigarro, como se tivesse todo o tempo do mundo a seu dispor. Ela finalmente olha cada um de nós nos olhos e, ao final, fixa seu olhar no Karakhan.
— Disse algo sobre tulipas vermelhas, Sr. Lupino?
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