Aelum Brasileira

Autor(a): Marin


Volume 2

Capítulo 32: Acácia

GRIS

 

A escuridão é tamanha que mal posso ver minhas mãos; mas, pela maneira que o som ecoa, é certo que estou em um local fechado.

Uma sensação familiar toma conta de mim, aflição, um desejo insaciável de sair daqui, porém também sinto que se eu sair, me arrependerei.

Junto forças para levantar do chão frio em que estou sentado, mas uma bela voz feminina me interrompe:

— Estou aqui para te ajudar — ela diz, na medida em que sai das sombras e uma luz esverdeada inunda o local. — Não temas.

A luz esverdeada que se projeta do corpo da bela garota revela que estou na parte oca de uma árvore gigante.

Ela fala em outra língua, uma que desconheço, mas sua voz ecoa por minha mente, e a compreendo perfeitamente. Será algum tipo de magia?

Sua presença é assustadora, mas também graciosa, e não consigo desviar o olhar. Sua pele é marrom escura, já seus cabelos são pretos e cacheados, com fios e mechas esverdeados. Ela usa um vestido verde, que aparenta ser feito com folhas. Seus traços são diferentes de qualquer garota que eu já tenha visto.

— Dríade — digo sem pensar. Logo me sinto bobo por soltar tal palavra fora de contexto.

— De fato. Mas se referir a alguém pela sua raça é grosseiro. Prefiro que me chame pelo meu nome, por gentileza, e me chamo Acácia. — A dríade, sentada diante de mim, se inclina para frente e me observa mais de perto, então complementa: — Qual o seu nome, meio humano?

— Meu nome é Gris, filho do caçador.

Você é ousado por dizer ser filho de um caçador, em meio a uma floresta. — Acácia diz essas palavras, ao passo que franze a testa, inclina seu rosto para o lado e o sustenta com seu punho.

Apesar de dizer que veio me ajudar, seu comportamento não condiz com as expressões, pois ela é muito provocativa. A dríade não parece ter gostado da minha resposta. Droga, será que eu não deveria ter dito isso. Acho que eu preciso parar de dizer que sou filho do professor por aqui.

— Mas não se preocupe, Gris, pois não estou aqui para lhe fazer mal algum. Minha atribuição é proteger estas florestas, elas são parte de mim, minha família e lar. Aqui, todos são caçadores ou caças eventualmente, o que inclui nós dois. Mas, como eu te disse antes, estou aqui para oferecer a minha ajuda...

— Sinto muito, Sra. Acácia, e agradeço também, mas acredito que não necessito de ajuda agora.

A dríade dá um sorriso e diz: — Que garoto curioso e inocente você é, por não saber o risco em que se encontra. Eu vim te ajudar a escapar daquele a quem você chama de professor.

— Valefar?

Ao dizer o nome, o rosto da dríade se contorce e sua beleza se esvai por um breve instante. É como se seu lado sombrio vazasse por sua fina máscara de beleza e graciosidade.

 Em reação, meus músculos se enrijecem e sinto uma fisgada em meu braço direito, no ponto da ferida ainda não curada. É quando ela complementa: — Sim, eu vim te livrar do monstro que te sequestrou.

— O professor não me... Sequestrar?

— Observo você há algum tempo, Gris. Mas não podia te ajudar na orla exterior e tampouco tenho muito tempo agora, pois ele se aproxima. — Ela aponta com seu indicador em direção às minhas costas. — Portanto, responda-me algo: do que você se lembra de antes de ser trazido para esta floresta?

Ahm... Eu não lembro de nada. Nada antes de conhecer o professor.

— E você sabe o que o seu professor é?

— Um caça...

— Xiu... — Acácia coloca seu dedo indicador em meus lábios. Sua mão é quente e macia, já seu cheiro é de flores. — Não precisa me responder tão rápido. Você nunca percebeu nada de estranho nele? Já viu outro caçador na Floresta de Prata? Pois, ele vivia sozinho aqui dentro desta selva e você já deve ter notado que não há outros caçadores além dele por aqui.

A dríade retira seu dedo de meus lábios e aguarda a resposta para todas as perguntas.

O que ela quer saber não é minha resposta, pois ela já a possui. Portanto, sua intenção é me convencer a não confiar no professor. Neste ponto, não é muito diferente da forma que a Srta. Cintia age.

Fato é que já faz muito tempo que eu percebo que os conhecimentos e comportamentos do professor não são compatíveis com o seu trabalho, mas eu não sei se devo confiar na dríade mais do que nele.

— Vejo que você tem medo de revelar qualquer coisa. Parece que ele ganhou sua confiança, afinal. Mas não precisa me dizer o que ele é; pois eu, mais do que ninguém, sei o que ele é. Você não é o primeiro que ele rapta e traz para esta floresta para torturar, Gris, porque ele já fez isso diversas vezes com outras crianças.

— Não. É mentira.

— Não adianta tentar me enganar. Eu vi acontecer com você.

— Ele não é mais assim.

— As pessoas não mudam tão rápido, Gris. Quer que eu te diga o que ele fez com as outras crianças iguais a você? Os outros que ele atraiu para cá?

Não, eu não quero que ela diga, mas também não consigo dizer para ela parar. O que eu faço? Talvez eu precise saber, porém eu não quero.

Cintia me vem à mente. Ela diria que eu devo saber, que devo entender, para tomar decisões melhores.

— Ele envenenava os poços e a água das pessoas da cidade. Emboscava outras no meio das estradas. Seu professor atraia bestas daqui até o meio das cidades para devorar seus cidadãos.

— Não! Não é ele... Você não o conhece!

— Mas, principalmente, sequestrava crianças e as trazia para cá, esperava suas famílias entrarem nesta floresta para resgatá-las, então matava a todos. Seu professor fez isso várias, várias, várias...

— O professor não faria isso!

— Tem certeza, filho do caçador? Você tem certeza que ele não te mantém aqui como uma isca para matar alguém?

— Não, o professor... — digo em baixo som e viro meu rosto.

— Está tentando se convencer? — Ela se inclina para me ver melhor.

— Não faz sentido, Sra. Acácia, o professor me ensinou um monte de coisa, ele me ensinou a caçar, a ler, a lutar e... — Tampo minha própria boca. Por muito pouco, eu não digo que ele me ensinou a vontade do guerreiro.

— Vejo que sua maior virtude é lealdade, mas é impossível ser leal a todos. Lealdade, por si só, não significa nada sem sabedoria. Você precisa escolher bem em quem depositará sua confiança, e será que o monstro que você segue é a pessoa correta para isso? — A dríade se aproxima um pouco mais, e termina de dizer em baixo som:

— Pois, te digo, é bem provável que ele já tenha assassinado toda a sua família. Ou será que ainda falta alguém para ele matar e, por isso, você ainda respira? Será que se você escapar, não salvará alguém dele?

Droga, eu não queria estar aqui. Por que eu tenho que ouvir isso?

— Eu quero voltar, Sra. Acácia. Deixe-me ir, por favor.

— Que lamentável. Pretendia te levar comigo, caso quisesse. — Ela inclina seu corpo para trás, como se tentasse me ver de outra perspectiva. A dríade raciocina por um instante e continua: — Eu te darei um presente, e isso te ajudará a perceber o monstro naquele a quem você chama de professor. — Ela coloca dois dedos na minha testa e vejo uma luz branca tomar conta do ambiente.

Sinto cansaço, mas não é do meu corpo e, sim, da minha mente.

— Você é livre para ir, Gris. Pode se juntar ao seu professor, pois não sou eu quem sequestro pessoas. Em todo caso, estas florestas são meus ouvidos, portanto eu te observarei e, caso mude de ideia, é só se afastar dele e me chamar pelo nome. Eu atenderei.

Tum! Crack! Escuto um som vindo das minhas costas na medida em que a luz esverdeada da dríade some, levando-a consigo para a escuridão de onde ela veio. Em seu lugar, uma luz branca toma conta do local: é o sol.

Ainda sentado, eu viro o meu rosto e percebo que estou dentro da parte oca de uma árvore, e a luz vem da abertura que o professor fez com as mãos nuas. Ele parece preocupado. Acho que estou chorando.

— Dessa vez... era uma dríade.

Ahm!? Que língua que você está falando, abobado? — diz Alienor.

— Sua raposa, boca-suja! Eu vou lavar sua boca com sabão quando chegarmos em Ticandar. Não vê que ele está com medo — responde a garota de cabelos brancos e sardas em seu rosto.

As vestes dela são verdes e brancas. Ela aparenta ter uns quatorze anos de idade, é da minha altura; porém, apesar de sua aparência jovial, a sua forma de falar e agir condizem mais com alguém um pouco mais velha.

O professor mantém o braço da menina preso o tempo todo, de modo que é impossível dela escapar. Isso me faz lembrar do que Acácia acabou de me dizer: Valefar sequestra pessoas?

— Achei que você não sabia chorar — diz o...

— Monstro... — digo tal palavra, ao passo que olho para Valefar. Por que eu falei isso? Por que o chamei de monstro?

— Creio que teremos que conversar, Gris, mas não aqui e não agora.

Percebo que os dois soldados lumens, com máscaras de animais, agora nos acompanham.

Após tudo isso, nós escoltamos a garota de cabelos brancos e chegamos em Ticandar, sem qualquer outro transtorno e sem dizer qualquer outra palavra.

A cidade-estado de Ticandar. Ela esbanja vida. Creio que seja a melhor definição daquilo que eu vi.

A cidade é composta por uma infinidade de árvores escuras e gigantes, as quais possuem até quinhentos metros de altura, oitenta metros de diâmetro, outros oitenta metros de espaçamento entre cada árvore. Além disso, elas se entrelaçam e formam ruas e pontes, em uma estrutura que forma uma espécie de palácio colossal em formato cilíndrico.

 Todas as ruas, pontes e escadas são feitas de galhos de árvores. Existem ruas horizontais que ligam uma árvore à outra no mesmo nível, e também pontes em espirais que vêm desde o chão até a copa, em uma espécie de serpentina.

As casas dos lumens ficam dentro dos troncos e são todas muito belas por dentro. Mas não possuem muitos objetos, pois creio que eles não valorizam coisas efêmeras. Entretanto, os poucos utensílios e pertences que vislumbrei me dão a impressão de que são muito antigos, resistentes e duráveis.

A luz do sol pouco alcança a cidade nas partes inferiores, mas o local nunca anoitece, por conta da infinidade de vaga-lumes prateados que preenchem os troncos das árvores e iluminam o ambiente. Eles são atraídos pelo fluxo positivo que emana daquele local.

Vista de longe, da outra margem do Rio Reluzente, a cidade parecia um palácio feito de luz. Ticandar é tão iluminada por diversas fontes que é possível se esquecer, por alguns instantes, o que é escuridão.

Ao passo que andei pela cidade, vi seus habitantes viverem quase que em simbiose com as bestas. Elas são dos mais diversos tamanhos e tipos. Algumas são os próprios lumens que assumem formas de bestas, já outras são familiares invocados por eles e, por fim, as demais são as selvagens que entram desfilam pela cidade. Mas essas não atacam a ninguém e são tão dóceis que mais parecem animais de estimação.

Receio que isso seja o efeito de alguma uma magia antiga e poderosa que cerca a cidade, a qual torna as bestas amigáveis quando aqui adentram. Porém, o motivo disso acontecer é segredo até mesmo entre os próprios lumens. É possível que somente o mais antigo dos anciões, Khan, conheça a fundo tal segredo.

O Grande Khan, como é chamado por eles, não possui esse título levianamente, pois parece ser consenso que ninguém é mais ancestral que ele por estas terras. Há divergências no que diz respeito à sua idade, mas todos reconhecem que, no mínimo, ele já viveu por dois milênios.

Um tempo considerável, até mesmo para o padrão dos lumens, que vivem em média mil anos.

As leis dos lumens são muito antigas, em sua maioria, pois seu estilo de vida parece pouco mudar dentro desta fortaleza natural e intocável que chamamos de Floresta de Prata. Neste sentido, Khan parece ser o responsável por criar boa parte dessas leis, pois detém sozinho o poder de legislar.

Os outros nove lumens mais velhos, salvo o Grão Ancião, elegem a cada dez anos aquele a quem entendem por ser o mais competente para executar as leis pela cidade. Quanto aos nove, são responsáveis por julgar os casos de conflitos dentro destas terras.

A população Lumen não é muito grande, eles devem ser em torno de cinquenta mil habitantes, mas todos são muito poderosos, principalmente em magia de criação. Portanto, sua força militar não pode ser ignorada.

É possível afirmar que até mesmo um artesão lumen, considerado inapto por eles para o combate, se equipare a um capitão de Thar em nível de ameaça, algo em torno de um nível Eversão — Classe E, conforme os termos da Guilda de Aventureiros.

Uma criança lumen, com meros doze anos, já possa ser tão poderosa quanto a média de um sargento do exército de Thar. Em alguns casos, uma criança dessa idade pode alcançar o nível de ameaça Flagelo – Classe F, conforme os critérios da Guilda.

Os lumens chegam à maturidade aos vinte anos, e nessa idade os mais proficientes chegam ao nível de ameaça Desastre — Classe D. A maioria dos lumens se encontra nesse nível de poder.

Estimo que cada ancião seja no mínimo Catástrofe — Classe C.

Quanto ao grande ancião, não tive acesso a qualquer detalhe sobre sua força. Entretanto, se minhas suspeitas estiverem corretas sobre o fato dele ser o autor da magia que torna as bestas dóceis, seu nível de poder pode ser de Calamidade — Classe B, mas saliento que isso ainda é especulação.

Desse modo, invadir estas terras com o exército atual seria quase impossível, pois a Floresta de Prata é uma fortaleza natural impenetrável, por conta da infinidade de bestas que cercam a cidade, as quais atacariam somente os estrangeiros.

É de se alertar que qualquer tipo de desmatamento da Floresta de Prata é visto como ato hostil pelos lumens, pois eles consideram toda a selva como seu território, mas toleram que visitantes perambulem pela orla exterior.

Quanto a orla interior, há somente uma estranha exceção de forasteiro que pode caminhar por ela, um caçador que vive na floresta.

Apesar de humano, parece respeitado pelos lumens. Ele possui acesso ao Grão Ancião, algo muito raro.

Receio que esse caçador possa conter mais informações úteis, porém parece ser altamente perigoso. Solicito permissão para me aproximar dele.

É o relato.

(Autor desconhecido. Espião de Erun. Relatório dirigido à Mansão Negra de Thar. Conteúdo extraviado).

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