Volume 1 – Parte 1
Capítulo 9: No Crepúsculo
Os olhos do garoto se abriram com lentidão.
À medida que os sentidos eram recobrados, a visão se deparou com uma luz branca no domínio do espaço claustrofóbico.
Atravessando a camada de poeira que o envolvia, enxergou o foco daquele brilho se espalhar na superfície de algo muito próximo do rosto.
Tossiu bastante até entender a situação.
Parecia muito com o ocorrido traumático da última semana. Só que, ao invés do céu estrelado, Norman reconheceu a placa de metal amassada que deveria ter o esmagado.
Conforme a consciência voltava à normalidade de maneira gradativa, passou a retomar a sequência de eventos que o levou até aquela posição.
Só assim pôde notar que a mão direita estava erguida, com o braço inteiro dobrado, o suficiente para apontar àquela peça acinzentada.
Se ainda estava vivo, deveria agradecer ao movimento desesperado que ativou o Áster inconscientemente.
No mínimo poderia afirmar que aquela foi uma condição de vida ou morte semelhante às primeiras utilizações.
Sem fazer ideia de quanto tempo havia perdido ali, ele usufruiu do poder da Telecinesia para afastar o teto, assim ficando apto a se arrastar para a saída.
Com o tempo, escapou das ferragens amassadas. Lidou com as dores da maneira que deveria até sentir o espaço para se levantar no lado de fora.
Quando o fez, encontrou um cenário absurdo, que o levou a se indagar.
— O que é isso?...
Incompreensível era a palavra exata para definir o arrepio que escalou sua espinha, dado o choque causado por tal paisagem.
A fina camada de fumaça, a pairar por aquela pequena distância, era insuficiente para mascarar a quantidade de corpos a jazerem pelo chão.
No entanto, a imagem responsável por capturar o foco atordoado do garoto foi a de uma das pessoas mais próximas, desfigurada bem à sua frente.
Quando fitou o celular carregado pelo falecido recheado de sangue e miolos em volta da cabeça estourada, os joelhos estremeceram como se desejando sucumbir.
Havia um segundo, bem ao lado, que continuava a executar sua chamada. E isso fazia ressoar com aquele nas mãos frígidas de um corpo sem vida.
Mesmo que atendesse, de nada adiantaria.
— Willian? — murmurou com a voz falhada.
Seu novo retorno após vencer a morte não poderia ser mais traumático...
Quando a cortina de fumaça perdeu densidade, a destruição por todo o auditório ganhou detalhes.
Sentada no palanque de madeira, Helen olhava o corpo destruído de Hudson. Todos os sinais vitais dele tinham desaparecido.
Do que restou de sua pele, a coloração pálida passou a predominar. Mais uma vítima à lista do atentado caótico.
Ferido pela testa, braços e pernas, Norman também fitava o finado colega de classe através de um olhar pesado.
A garota em estado de choque tinha alguns ferimentos pelo torso, mas não passava por situação preocupante.
O pior estado era o de sua mente, congelada. Após dois de seus amigos serem mortos diante de si, nem mesmo piscar os olhos conseguia mais.
— Desculpa, Helen — murmurou o garoto, cabisbaixo. — Eu não... consegui fazer nada...
Fechou o punho machucado com força, ignorando toda a agonia que os cortes sobre palma e dorso despertavam.
A promessa feita num passado nem um pouco distante mais uma vez não seria concretizada.
Levado pela ansiedade intensa, caiu em uma armadilha que o fez perder toda a sequência que se seguiu enquanto desmaiado.
O desastre imprescindível era uma repetição em proporções menores do que vivenciou com sua família. Embora a quantidade de vítimas fosse maior...
Amigos, colegas de classe e até mesmo pessoas desconhecidas... Eram todos apenas inocentes, que não tinham ligação alguma com aquele evento surreal.
A impotência fez pressão em seu peito, como se o coração estivesse sendo esmagado.
Uma sensação que jamais desejara sentir em vida.
— Fica aqui. — Deu meia-volta em direção aos degraus do palco. — Eu vou...
Seu braço foi agarrado antes que pudesse descer.
Virou o rosto por cima do ombro e observou o terror e o horror estampados no par de íris escuro da garota.
Helen se agarrou como pôde, quase o enganchando no antebraço. As lágrimas eram derramadas em profusão.
— Por... favor... não me deixe... sozinha... — Em meio a soluços doloridos, ela implorou. — Onde você tava? Pra onde quer... ir agora? Por favor... Por favor, não me... não me deixe!...
O cacheado não encontrou palavras para responder os apelos num primeiro momento.
A debilitada chegou a encostar a testa no membro dele, que alastrou suas ardências através dos leves cortes.
O choro passou a pingar no solo. Se misturava aos fios do sangue, ganhando uma tonalidade avermelhada.
Mas para além daquela dor, o calor do copioso pranto predominou sobre a carne do Marcado de Altair.
Virou-se até ela, agachou as pernas até equiparar suas alturas de momento, então levou a mão esquerda a descansar sobre seu ombro.
Os olhos se cruzaram.
Por um instante, também pôde receber a onda de angústia que aqueles globos esverdeados carregavam.
— Foi mal... — Usou o polegar para limpar as lágrimas de uma das vistas dela. — Vou acabar com isso.
As palavras determinadas não tiveram retruca.
Ele se reergueu, ao que Helen tentou continuar o segurando para que ficasse ali, ao seu lado. Mas, dessa vez, não foi capaz de o alcançar.
Desprovida de forças para seguir, coube a ela permanecer ajoelhada no palanque de madeira destruído.
Mal pôde erguer o rosto para acompanhar o avanço de Norman rumo à luz vinda de fora.
Apenas fechou as vistas marejadas e escolheu se afundar na escuridão das próprias lamúrias...
★★★
O céu que cobria a universidade já mudava os tons vivos para a chegada da escuridão azulada.
E o confronto continuava, com Isabella e Isaac lidando com os soldados espalhados pelos quatro cantos da instituição antes que mais vítimas fossem feitas.
— Quantos vieram, afinal!!? — A bestial vociferou num resmungo, escondida atrás de um pilar de concreto.
Ao mesmo tempo que recuperava o fôlego gasto excessivamente, se escondia da salva de disparos de três outros inimigos nas proximidades.
Quando a munição deles terminou, ela reativou a máxima potência de seu Áster, que fez as unhas e os músculos crescerem de novo.
Girou com agilidade e avançou que nem uma felina em sua caça, lacerando a garganta de cada um com as garras.
Seu irmão também precisava remediar os movimentos de ataque, pois os efeitos colaterais lhe afetavam do corpo à mente.
Ao invés de se arriscar desviando das balas velozes dos fuzis com a leveza imposta a si mesmo, também utilizava pontos de esconderijo e investia quando se tornava seguro.
Sem contar a queda na eficiência de seus ataques, que se equiparavam à grande perda de força bélica dos invasores.
“Como um marcado tem uma organização desse tamanho?”, era a perguntava que matutava enquanto finalizava os adversários restantes nos corredores.
Após concluir dois novos abates com as facas sujas de sangue, ele viu, pela visão periférica, alguns recuando. Entrou em uma das salas e ficou atrás da porta.
No fim, era uma notícia agridoce. O lado ruim seria ter que deixá-los fugir, sabe-se lá para onde; o bom concernia ao alcance do limite da utilização de seus poderes.
Mesmo assim, permaneceu em alerta até o fim. Não poderia se dar ao luxo de perder daquela forma, num lugar como aquele.
Observou pelo quadrado de vidro no topo da estrutura de madeira. Sem encontrar qualquer indivíduo armado na adjacência, ele retomou o avanço pelo corredor.
Pelo menos, os sobreviventes — a grande maioria — tinha conseguido escapar. Graças às ações deles em defendê-los, porém, os homens sabiam quem eles eram.
Naquele cenário, ninguém ganhava ou perdia. Porém, os melhores resultados, de certo, pertenciam ao responsável por enviar tamanho caos àquele lugar.
Com tais divagações, ele parou de correr ao lado da escadaria de descida.
Avistou sua irmã, caminhando sobre a dúzia de corpos daqueles que abateu.
— Aquela desgraçada desapareceu — resmungou num cuspe de sangue. — Deve ter fugido e deixou o trabalho todo nas nossas costas. Maldita...
A Marcada de Betelgeuse encarou a própria palma em que o símbolo da constelação de Órion residia.
Com a passagem gradativa dos perigos, tornando o recinto cada vez mais silencioso, ela deixava a metamorfose do Áster perder intensidade.
Então, as pupilas dos olhos castanhos começavam a se tornar redondas de novo.
— Eles não tinham nada com isso — murmurou, o tom de voz voltando ao natural. — Por que isso foi acontecer?...
Arriou as sobrancelhas, melancólica.
Além do plano de emboscada contra dois adversários diretos ter dado errado — ao menos uma parte dele —, ver a chacina impossível de ser desfeita a fez se sentir mal.
Talvez se não tivessem escolhido aquele lugar para fazerem seu movimento, inocentes não teriam sido mortos por conta de sua procura.
O mais difícil disso tudo era aceitar que jamais poderiam mudar a história como fora escrita.
Conforme se recuperava daquele baque, ela continuou a varrer o perímetro através das vistas entrefechadas.
Nenhum sinal de pessoas perambulando por aquele lugar, fossem universitários ou soldados.
Contudo, algo diferente chamou sua atenção.
Logo adiante, viu a parte devastada pela queda do elevador que tinha jogado um dos marcados no princípio das coisas.
Sentiu algo estranho, então caminhou em direção ao transporte destruído a poucos metros dali.
Ignorando os corpos nos arredores, foi impactada após enxergar o meio das ferragens retorcidas.
Não estava lá.
O cadáver que deveria encontrar não estava lá.
Em retrospectiva veio a sequência de seu chute na retaguarda do garoto, que bateu e despencou com o elevador a seguir.
Estando no penúltimo piso, as chances de sobrevivência deveriam ser escassas, até mesmo para um escolhido para a Seleção Estelar
Ele continuava a ser um humano, afinal.
Isabella, com os olhos trêmulos e dentes conectados, percebeu muito tarde a aura furiosa que irradiava ao seu lado direito.
O brilho branco emanou da testa do garoto, como se o destino tivesse planejado meticulosamente aquele encontro.
Ele ergueu a mão destra e seu Áster despertou.
Antes que a Marcada de Betelgeuse pudesse reagir de qualquer maneira, uma viga de ferro foi arrancada do elevador e lançada contra ela.
À queima-roupa, lhe atingiu na altura da costela com o antebraço, o que quase a fez morder a língua no ato de segurar o grito de dor.
Com violência, foi lançada junta do objeto até bater as costas em uma das pilastras de concreto próximas.
— Sua maldita... — Norman soltou um grunhido enervado. — Vou te fazer pagar pelo que fez.
Seus olhos estavam dominados por uma escuridão afiada. Naquele estado de espírito, a própria moral tornou-se um poço de deturpação.
O “limitador humano” dentro de si fora rompido. E isso o tornava uma ameaça sem precedentes, pois poderia atropelar sem dificuldades o peso de matar alguém.
Depois que a garota voltou a pôr os pés no chão, ele fez a viga metálica retornar, já no intuito de executar um segundo ataque.
No entanto, após fazê-lo, uma dor de cabeça aguda lhe afligiu. O objeto pesado tombou no chão, enquanto ele se empenhou a fim de manter-se erguido.
— Merda!! — amaldiçoou entre os dentes.
Ainda sem ter resistência para um controle duradouro, visto que tinha passado vários minutos a utilizando enquanto inconsciente, Norman sentiu sangue escorrer do nariz.
Do outro lado, Isabella também buscava encontrar alguma força em prol de se reerguer.
Todo o lado esquerdo do tronco doía. Parte do braço, que tinha sido atingido junto da costela, também pulsavam de agonia.
De certo tinha fraturado algum osso, no mínimo trincado a maioria.
Aquela sensação incômoda fez seu pesar acerca da paisagem adiante desaparecer. Veio a fúria e, com ela, o brilho da marca de Órion na palma destra renasceu.
— Seu maldito!! — rebateu ao abrir um sorriso de escárnio. — Vou me certificar de acabar com sua raça agora!!
O vociferar ecoou pela quietude mórbida, enquanto os dentes se tornavam presas na mesma velocidade em que suas unhas se tornavam garras.
Atordoado por ter batido no teto, Norman reviveu a influência sanguinolenta irradiada por aquela que por pouco o matou.
Pensou no quão idiota tinha sido por se deixar enganar daquela maneira, mas logo varreu esse pensamento.
Precisava dar um jeito de derrotá-la. Portanto, após os segundos de baque, ele ergueu a mão contorcida na direção da viga metálica de novo.
Fez um esforço colossal em prol de reativar a Telecinesia, sem se importar com o que seria de sua cabeça após o ato.
Deveria se ater única e exclusivamente à vingança...
— Parem imediatamente. — A voz soturna atravessou os dois. Layla chegou, a passadas curtas. — Essa batalha está encerrada. Os invasores restantes se retiraram e as autoridades já foram acionadas. Permanecer aqui é infrutífero a todos nós.
Ela se postou entre um e outro, encarando cada um durante o pequeno discurso.
A Marcada de Vega tinha apenas os cortes na bochecha e nas costas, criados pelo Áster animalesco de Isabella.
A própria que alargou o sorriso ao reencontrá-la...
— Agora posso acabar com vocês dois! — rugiu, eufórica, ao mirá-la com as pupilas afiadas.
Norman, por outro lado, encarou a parceira sem dizer uma palavra.
De certo modo, a voz da razão dela serviu para fazê-lo recobrar um pouco da consciência mergulhada em caos.
O cintilar alvo da testa desapareceu, assim como parte das forças que o levavam a agir de forma tão efusiva.
Porém, ele ainda ansiava por respostas. Aquilo tudo tinha ido longe demais...
— Ela está certa. — A segunda voz, masculina e serena, reforçou a ideia da alva. Todos encararam a chegada de Isaac, pelo outro lado. — Não temos mais nada a ganhar aqui.
Ele parou, frente a frente com a nívea, fazendo com que uma cruz fosse formada a partir do posicionamento de cada um dos quatro.
Isso durou pouco, contudo. Pois o Marcado de Rígel se adiantou ao dar a volta em prol de se aproximar da irmã.
Norman, vendo mais um marcado naquele recinto, engoliu em seco.
— Eles não são os responsáveis por essa desordem. — A de Vega puxou a atenção do companheiro, também indo até onde estava. — De fato, eles são nossos adversários naturais. No entanto, se não fosse por suas ações, a tragédia seria ainda maior.
— Mas...
— Não se preocupe. — Interrompeu-o, ficando ao seu lado. Então, voltou a fitar a dupla... — Certamente nos encontraremos em outra oportunidade. Pois, a partir de então...
— Claro. — Isaac fez que sim com a cabeça. — Permaneceremos nessa trégua temporária por um tempo.
— Irmão?...
Enquanto deixava o poder de seu Áster esvanecer, Isabella arriou as sobrancelhas pesadas.
Ver de novo aquela expressão fez Norman também se desfazer da impulsividade odiosa. Ele desviou o rosto, ainda inconformado, porém.
O Marcado de Rígel devolveu os óculos à irmã e, depois de escutar o som das sirenes se aproximar no lado de fora da instituição, determinou:
— Até lidarmos com esse outro marcado, vamos adiar nosso conflito.
Ele abraçou a cintura de Isabella, que piscou uma das vistas com dor, e usou o Áster para saltar com ela pelos andares acima, até desaparecerem.
Embasbacado ao contemplar aquele ato, Norman reagiu boquiaberto ao subir o rosto.
Contrária àquele espanto, Layla exalou um suspiro tímido. Os dois ficaram quietos durante alguns segundos, período em que o som das sirenas se tornou mais forte.
— Layla — chamou por ela, ainda de olho no alto. — ‘Cê vai me explicar tudo, não vai?
Sentindo o teor de profundo ódio na voz dele, a alva assentiu:
— Claro. Mas primeiro devemos sair. — Virou-se para a direção do auditório. — Traga
— É claro. Mas primeiro precisamos sair. — Ela olhou até o caminho que levava ao auditório destruído. — Caso deseje, pode verificar o estado de sua amiga. Mas seja rápido.
Sem responder verbalmente, o rapaz deu meia-volta e avançou até o dito local.
Ela o acompanhou, solitária, apenas absorvendo a devastação emocional do companheiro em silêncio.
Cercada pela catástrofe construída por aquele evento irreal, levantou os olhos melancólicos de volta ao céu, que recebia o brilho das primeiras estrelas da noite.
Opa, tudo bem? Muito obrigado por dar uma chance À Voz das Estrelas, espero que curta a leitura e a história!
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