Volume 1 – Arco 1
Capítulo 9: Crepúsculo – Confronto entre Marcados ④
Os olhos do garoto abriram com lentidão. À medida que os sentidos eram recobrados, a visão logo captou a luz branca dominar o local fechado onde uma forte camada de poeira o envolvia por inteiro. Tossiu bastante até entender a situação.
Assemelhava-se muito com o ocorrido traumático da última semana, mas ao invés do céu estrelado, Norman enxergou uma placa de metal amassada prestes a esmagá-lo. Conforme recuperava a consciência de forma gradativa, passou a evocar os acontecimentos que o levaram até tal posição desconfortável.
Só então pôde notar a própria mão direita erguida contra a cobertura acinzentada. Se ainda estava vivo, deveria agradecer ao Áster recém-dominado após dois dias inteiros de treinamento intensivo junto a sua companheira. No mínimo poderia afirmar que aquela foi uma condição de vida ou morte semelhante às primeiras utilizações.
De qualquer forma, o rapaz sobreviveu à queda do elevador que despencou do penúltimo andar mais alto no prédio principal. Não sabia quanto tempo tinha perdido desmaiado ali, todavia, se impressionou com o poder da Telecinesia ativado.
Permitiu a energia que percorria o corpo a partir da marca na testa se esvair com cuidado. Naquela altura o teto não seria derrubado, então foi capaz de voltar todos os esforços a fim de escapar das ferragens. Após arrastar o torso machucado até o lado de fora, as sobrancelhas se ergueram ao contemplar o cenário.
“O que... é isso?”, o garoto não compreendia o motivo de tantos corpos estarem espalhados sob poças de sangue pelo campus. Entretanto, a imagem responsável por prender sua total atenção foi a da pessoa desfigurada logo à frente.
Quando fitou o celular carregado pelo falecido recheado de sangue e miolos envolta da cabeça estourada, os joelhos estremeceram e sucumbiram ao solo. O celular também estava ao lado, a chamada entre os aparelhos persistia até que alguém pudesse atender.
Mesmo que atendesse, de nada adiantaria.
— Willian? – murmurou sem acreditar na cena tenebrosa que a trêmula íris contemplava.
Seu novo retorno após vencer a morte não poderia ser mais traumático...
☆☆☆
Quando a cortina de fumaça perdeu densidade, a destruição por todo o auditório pôde ser identificada. Sentada no palanque de madeira, Helen encarava o corpo parcialmente queimado de Hudson. Ele não respirava mais, todos os sinais vitais desapareceram e o que restou de sua pele tomou uma coloração fria.
Ferido na testa, braços e pernas, Norman também fitava o finado companheiro através de um olhar pesaroso. A garota em estado de choque também possuía alguns ferimentos pelo torso, mas não passava por situação preocupante.
O pior estado era o de sua mente congelada. Após dois amigos serem mortos no alcance dos olhos, ela não conseguia nem mesmo piscá-los. O único sobrevivente também tinha visto o corpo de Willian durante o caminho até a sala, porém não era o momento de tocar nesse assunto.
Ao invés disso, ele murmurou:
— Me perdoe, Helen... eu não pude fazer nada...
Cerrou o punho machucado com força. A promessa feita no passado remoto mais uma vez não seria concretizada. Norman caiu numa armadilha graças a ausência de capacidade em lidar com a ansiedade e, logo na sequência, presenciou um desastre imprescindível.
A tragédia que vitimou sua família se repetia em proporções ainda maiores naquela universidade. Independentemente de serem amigos, colegas, ou meras pessoas desconhecidas... não passavam de inocentes que nada tinham a ver com o evento irreal.
Sentia-se incapaz de esconder a frustração no semblante ensanguentado. De novo, a impotência subiu até esmagar o peito tomado por uma sensação que jamais desejava sentir em vida.
— Fique aqui com o Hudson. – Norman passou pela garota em direção a descida do palanque. – Eu vou...
No entanto, foi seguro pelo braço direito antes de conseguir avançar. Virou o rosto por cima do ombro e observou a desesperada adolescente. Ela se agarrou como pôde em seu membro esticado conforme derramava lágrimas em profusão.
— Por... favor... não me deixe... sozinha... – Em meio a soluços doloridos, ela implorou. – Onde você estava? Onde quer... ir agora? Por favor... por favor, não me... não me deixe!...
O jovem não encontrou palavras para responder os apelos de Helen num primeiro momento. Ela encostou a testa no antebraço que possuía leves cortes, o choro desceu por ali até pingar no solo com resquícios da vermelhidão ao contatar os fios de sangue.
Apesar da leve ardência, foi o calor do copioso pranto que predominou na pele do garoto. Se virou até ela, agachou o corpo até equiparar-se a sua altura atual e levou a mão esquerda acima de seu ombro.
Os olhos pesados dela cruzaram com os soturnos do amigo. Por um momento, também pôde sentir toda a angústia carregada por aquela íris verde que, pela primeira vez, estava tão obscurecida quanto o natural.
— Me desculpe... eu irei acabar com esse conflito.
Aquelas palavras de despedida não podiam ser retrucadas.
No instante que Norman voltou a se erguer, Helen tentou repetir o gesto anterior, porém foi incapaz de alcançá-lo. Sem forças para continuar, coube a ela permanecer de joelhos no palco destruído junta ao corpo de Hudson. Nada mais passava por sua mente estática, nem mesmo o desejo de permanecer viva restava.
Não pôde erguer o rosto para acompanhar o avanço de Norman rumo a luz. Apenas fechou as vistas e escolheu ser tomada pela escuridão das próprias lamúrias...
★★★
O confronto pela universidade prosseguia com os marcados enfrentando os soldados armados. Desgastados pela longa duração da batalha, Isabella e Isaac tentavam evitar que mais alunos e professores fossem assassinados.
— Quantos deles vieram, afinal!? – A garota bestial vociferou escondida atrás de um pilar de concreto.
Quando a munição dos três inimigos acabou após uma salva de disparos, ela pôde reativar o Áster de Betelgeuse no intuito de avançar em alta velocidade e lacerar a garganta deles com um só golpe.
Seu irmão também trabalhava na medida do possível com a habilidade da Levitação. Enquanto no ar, podia desviar das balas sem muitos problemas contando com a queda de eficiência nos ataques dos soldados. A exemplo da irmã, esperava o momento de reposição no pente de balas a fim de os matar com suas duas facas encharcadas de sangue.
“São muitos, de fato. Qual marcado teria um poderio tão vasto de comandados como esse?”, o garoto, após concluir seus abates, retornou a uma das salas vazias para se proteger durante a retomada do fôlego. “Já estou alcançando o limite de utilização do Áster. Desse jeito vai ficar complicado”, encarou o dorso da mão onde o símbolo da Constelação de Órion estava apagado.
Imaginou o mesmo cenário a favor de Isabella, porém ela poderia usufruir de mais tempo no embate por ter começado a utilizar os poderes após o irmão.
“Não podemos nos dar ao luxo de perder aqui... precisamos seguir em frente rumo ao trono”, Isaac olhou pelo vidro na parte superior da porta.
Sem encontrar qualquer indivíduo trajado de preto com capacete e metralhadora, resolveu avançar pelo corredor solitário. Muitos universitários já deviam ter conseguido fugir do local e, em breve, esperava-se que autoridades maiores fossem chamadas.
“Se conseguirmos aguentar até esse momento... nós ganhamos!”, Isaac avistou novos homens próximos da escadaria, então concentrou a mente pesada para ativar a habilidade. Sua marca voltou a irradiar o cintilar branco-azulado.
Em condições semelhantes, Isabella mantinha o ímpeto agressivo contra os oponentes.
— Aquela desgraçada desapareceu também! Devia ter a matado antes!!
Com a chegada da noite, o brilho do símbolo avermelhado na palma de sua mão estava ainda mais intenso do que o normal. A Marcada de Betelgeuse não encontrava tantas pessoas comparado há alguns minutos, fossem inimigos ou inocentes da instituição, dois ótimos sinais no fim das contas.
Se continuasse assim, a batalha estaria próxima do desfecho. Apesar das incontáveis mortes dentro do local, a jovem poderia seguir viva na Seleção Estelar junta de seu irmão.
“Mas... isso é realmente importante agora?”, estreitou os olhos ao pensar em tais consequências dolorosas.
Um mar de sangue banhava todos os caminhos para onde os olhos buscavam enxergar. A chacina desenfreada não poderia ser desfeita. Todo o plano baseado em emboscar os dois principais marcados naquela área com o objetivo de evitar o envolvimento de pessoas inocentes foi por água abaixo.
Agora ela deveria viver com o fardo de vidas inofensivas perdidas numa batalha que sequer parecia pertencer a realidade.
Sem enfrentar novos inimigos, a garota ganhou segundos a mais de descanso. Varreu o pátio nas proximidades do prédio principal com os olhos castanhos, não havia sinal algum de pessoas perambulando por aquela área. Contudo, algo diferente chamou a atenção dela.
Logo adiante estava a área devastada pela queda do elevador de onde jogou o marcado no princípio de tudo. Por pura curiosidade, caminhou em direção ao transporte danificado após a queda brusca do penúltimo andar.
Precisou pular três corpos mortos no caminho, um deles possuía a face irreconhecível graças aos tiros de metralhadora à queima-roupa. Mesmo assim, nenhuma imagem nos arredores foi tão impactante quanto a contemplada nas proximidades do transporte destruído.
Não estava lá.
O cadáver que deveria encontrar não estava lá.
Ela tinha plena certeza sobre ter chutado o garoto contra o elevador que teve o cabo de tração rompido segundos depois, o levando abaixo sem lhe oferecer oportunidade de sobrevivência.
E apesar do impacto estrondoso, ele não estava morto. A marcada percebeu tarde demais a aura enraivecida irradiar do flanco direito, onde o brilho branco na testa do garoto iluminava a área escurecida.
Tudo pareceu ser meticulosamente planejado pelo destino a favor de Norman. Ele ergueu a mão destra e forçou a mente para ativar o Áster de Altair, a Telecinesia.
Antes de Isabella conseguir reagir, uma viga de ferro partida do elevador foi lançada em sua direção. Com seu Transformismo Animal desativado, não foi capaz de desviar do ataque, sendo afligida no braço com violência. Os olhos da garota arregalaram, sentiu ossos partirem tanto no membro atingido quanto na costela prensada ao ser lançada bruscamente numa das pilastras de concreto ao lado.
— Sua maldita... – Norman grunhiu do fundo da alma como uma fera. – Farei pagar por ter matado Willian e Hudson.
O rapaz puxou a mesma viga de volta a fim de executar a segunda investida contra a inimiga desabada, mas uma dor de cabeça latente o afligiu. O momento repentino o fez perder o domínio sobre a habilidade mental.
“Merda... ainda não tenho total controle”, levou a mão até a marca da Constelação da Águia e cambaleou alguns passos com esforço para se manter erguido. Do outro lado, Isabella também buscava forças ocultas em prol de levantar-se do chão.
Todo o lado esquerdo do tronco doía, boa parte do braço provavelmente estava fraturado e as costelas, no mínimo, trincadas. Estalou a língua irritada ao sentir aquele nível de dor excruciante responsável por limitar seus movimentos.
“Não sei quem são esses, mas...”, ela tentou ignorar as dificuldades e trouxe o brilho da marca na palma de volta.
— Me certificarei de matá-lo agora! – vociferou conforme os dentes caninos cresciam junto às garras nos membros de extremidade.
“O que diabos é isso? Uma besta?”, Norman não percebeu a boca levemente aberta perante a transformação animalesca da adversária. Também montou um paralelo quanto a forma de agir antes de enganá-lo. Pensar no quão idiota foi por ser manipulado daquela forma o fez ranger os dentes.
Venceu a dor de cabeça e reativou a Telecinesia para enfrentar a marcada inimiga. Deveria descarregar toda a ira que sentia por meio da vingança...
— Parem imediatamente. – A voz de Layla ecoou em direção aos dois. – Essa batalha está encerrada. Os soldados restantes acabaram de se retirar e a polícia está a caminho.
A dupla inimiga encarou a Marcada de Vega repleta de cortes leves pelo corpo, fruto dos ataques de Isabella durante o conflito inicial. Sua faca continha vestígios de fluídos dos inimigos que abateu durante o anoitecer, enfim confirmando a partida dos que restaram.
— Aí está você... agora posso matar os dois! – Isabella, porém, rugiu eufórica em resposta às palavras da adversária.
Norman encarou a companheira sem dizer uma palavra, pois também não pretendia abrir mão da retaliação sobre a inimiga em comum. Ele não fazia ideia sobre o que tinha acontecido após sua queda no elevador, então deveria cumprir com o acordo feito após a batalha no hospital e seguir em frente no objetivo de superar os adversários em prol da sobrevivência.
Só que, diferente de outras ocasiões previstas, essa acabou envolvendo seus únicos amigos naquela instituição. A perda deles seria irreparável assim como a mente despedaçada de Helen, a única remanescente do trio.
— Ela está certa. – Uma outra voz se proliferou pelo pátio, dessa vez de tom masculino. – Não temos mais nada a ganhar com esse evento.
Isaac pousou ao lado da irmã gêmea demonstrando a mesma linha de pensamento de Layla.
— Outro marcado?...
Norman engoliu em seco.
— Eles não foram os responsáveis por tudo isso. – Layla puxou a atenção do companheiro de novo. – É verdade, eles também são adversários, pois são marcados como nós dois. No entanto, se não fosse por suas ações, a tragédia seria ainda maior.
— Mas, eles...
— Não se preocupe. – O interrompeu antes de completar a retruca e voltou a encarar os irmãos. – Teremos outra oportunidade, não concordam?
— Está certa. – Isaac assentiu com a cabeça. – Nesse momento, o melhor para todos será uma trégua temporária. Mas, após resolvermos esse problema em comum, iremos lidar com vocês da forma devida.
— Irmão?...
Isabella deixou o poder de seu Áster se esvair ao escutar as palavras cordiais de Isaac. Assim como Norman, ela era o extremo explosivo que desejava encerrar todos os assuntos naquele instante.
Os olhares idênticos dos dois se cruzaram sem que novas explicações fossem necessárias. A garota de óculos apenas relaxou o corpo machucado e deixou o brilho da marca se esvair junto ao Transformismo Animal.
Ao escutarem o som das sirenes se aproximando da instituição, os quatro marcados souberam que era hora de debandar.
— Não seguiu à forma que desejávamos, mas nos encontraremos de novo. – Isaac pegou a irmã nos braços sem que ela esperasse e usou o próprio Áster para levitar com ela.
Norman ficou impressionado ao contemplar a cena enquanto era encarado pela inimiga mortal. Sem poder fazer nada a respeito, acompanhou os dois desaparecerem do local em questão de segundos.
Layla se aproximou do companheiro ferido enquanto limpava o releixo da faca com um pano branco. Encarou o olhar sombrio dele sem dizer nada a respeito, apenas parou bem ao lado na expectativa de ser contatada em seguida.
Ele não tinha culpa em nada, pois foi mais vítima do que cúmplice na cadeia trágica de acontecimentos.
— Layla... você vai me explicar tudo, não vai? – ele perguntou com a voz embargada pelo ódio.
— É claro. Mas primeiro precisamos sair. – Ela olhou até o caminho que levava ao auditório destruído. – Traga sua amiga conosco.
Sem responder a demanda da aliada, o rapaz deu meia volta e avançou até o local onde Helen foi deixada para trás. Ela acompanhou a ida solitária do jovem emocionalmente devastado em silêncio. Passado algum tempo, tornou a observar o cenário sangrento espalhado pelo campus.
Logo acima, as primeiras estrelas daquela noite já podiam ser observadas. Diferente das ocasiões anteriores, a garota soltou um suspiro pesado em direção aos pontos cintilantes envolvidos pela imensidão azul-escuro do firmamento inalcançável...