A Voz das Estrelas Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: Noite do Começo – A Seleção ②

Norman não fazia ideia de quanto tempo havia perdido, inerte naquela posição. Enquanto as pontas do bagunçado cabelo castanho-escuro dançavam com a fria brisa noturna, as vistas não desgrudavam da garota, repousada sobre o banco de madeira alabastrino no pátio hospitalar.

Era a primeira vez em três dias que encontrava alguém durante as caminhadas que fazia no objetivo de vencer a insônia. De alguma forma sentia-se atraído por aquela presença, como se amarras invisíveis trouxessem sua absoluta atenção.

Ironicamente, o corpo executou uma reação tardia. Experimentou uma estranha pontada de dor no lado esquerdo da testa, o obrigando a prender para não grunhir alto e chamar a atenção da jovem. A sensação irritante o livrou do estado de transe.

Quando respirou fundo no objetivo de dar meia volta e retornar ao quarto...

— Esta é uma bela noite, não acha?

A voz suave ecoou pelo ar fazendo o rapaz descontinuar a própria ação.

Ele virou o rosto a observar por cima do ombro. No mesmo instante, a garota repetiu o gesto. Os olhos de ambos se cruzaram no pleno silêncio, desafiado exclusivamente pelo fraco assobio do vento gelado.

Na face pálida da jovem, não pôde identificar nenhuma expressão chamativa. Ela não sorria e tampouco curvava os lábios em desprezo. O semblante peculiar mostrava-se tão calmo quanto aquela noite.

— Veja só. Daqui podemos observar bastantes estrelas.

Com acenos repetitivos utilizando os dedos da mão direita, chamou pelo paciente.

Tudo o que ele menos desejava era encontrar com outra pessoa no intuito de evitar qualquer interação. Não era nada bom nisso, portanto preferia ficar solitário. No fim, falhou em sua missão. Para piorar, aqueles olhos azul-escuros o enfeitiçavam sem oferecer chances de escapatória.

Perdido em meio a pensamentos desconexos, atendeu ao chamado dela e avançou os primeiros passos.

Parou ao lado do banco e assim permaneceu durante um tempo. Os dois observavam o mesmo céu estrelado sem dizerem uma palavra. Ainda de pé, pôde conferir o aparente motivo da garota estar num hospital como aquele.

— Ah, isso? Pois é, acabei me acidentando em casa. – Mostrou o braço direito todo enfaixado. – Amanhã já recebo alta. Você, pelo visto, deve ter passado por situações mais complicadas...

A jovem analisou o estado do acompanhante. Diferente dela, ele carregava faixas e curativos por praticamente todo o corpo, com destaque à tala que suportava o braço canhoto.

Ele só desejava voltar para o quarto. Não tinha vontade de falar, ainda sofria com as dores causadas pelos ferimentos do acidente e, acima de tudo, se encontrava em processo de luto pela morte dos pais e do irmão mais novo. Fora o fato de sequer relembrar como tudo aconteceu.

Seu cansaço era visível pelas olheiras fundas, a respiração levemente arfante e até as dificuldades em manter o foco direcionado ao firmamento.

— Sabe, eu adoro ver as estrelas. – Ela tentou puxar assunto. – É incrível pensar em como somos nada comparados a imensidão do universo. Todo o destino, toda a história... tudo o que concebe os seres vivos. Absolutamente tudo passa por esses pontinhos brilhantes que pulsam sem parar por conta da atmosfera.

Norman a escutava sem proferir uma palavra, mas diferente do que esperava não considerou uma conversa desinteressante. Ofereceu um ponto a garota pelo sucesso em conseguir prender sua difícil atenção. De todas as escolhas possíveis, essa carregava o assunto que mais apreciava.

Ao menos isso era capaz de romper a amnésia parcial que o assolava desde o incidente.  Contudo aquela imagem acima da cabeça jamais poderia ser contemplada da mesma forma. Observar os pontos luminosos responsáveis por preencherem a abóbada obscura lhe trazia calafrios a espinha.

Com a ausência de respostas por parte do jovem lesionado, ela exalou um profundo suspiro. Levou a mão direita aos fios do próprio cabelo que caíam em frente ao rosto. Os conduziu até acima da orelha na mesma medida das piscadas pausadas, os olhos ainda vidrados no topo inalcançável.

— É incrível como, até hoje esses pontinhos brilhantes guiaram nosso destino – divagou em voz alta ao alargar o sorriso tênue.

Norman, mais uma vez. deixou o céu de lado e virou a concentração a face da menina. Foi tomado por surpresa ao encontrar as esferas escurecidas, em meio ao branco da esclera, apontadas até seu rosto.

Pareciam adentrar sua alma com facilidade de tão intensos...

O ar místico ao redor cresceu sem permiti-lo compreender sua natureza. Por fim, trazendo toda a aura fria consigo, a alva empurrou o assento com as mãos em busca de se levantar. Quando se postou de pé, mostrou ser alguns centímetros mais baixa do que ele.

Frente a frente com ela, o rapaz não pôde evitar de engolir em seco, mas empenhou-se a fim de causar o mínimo de ruídos possível.

— Nossa vida está interligada a elas. Portanto, como sua igual, permita-me lhe dar uma dica. – Andou a passos curtos até chegar ao lado dele. – Tome cuidado nesta noite. Uma pessoa virá a sua procura... para lhe roubar o destino.

Por um instante, o tempo pareceu congelar. Deixou de ser afligido pelas dores corporais, nem mesmo a respiração foi capaz de recuperar. Os batimentos cardíacos silenciaram, como se todas as funções vitais esvanecessem.

Após passar o breve recado, ela seguiu em frente. O encontro terminou assim que todo o clima pesado se esvaiu de súbito. O garoto experimentou todos os sentidos retomarem as atividades. Respirou como se buscasse sugar todo o oxigênio disponível no pátio, o coração palpitava tão rápido que parecia prestes a rasgar o peito.

Ao dar meia volta a procura da desconhecida, não enxergou nada além da porta de entrada do prédio. Nenhum rastro que indicasse a presença dela naquele lugar pôde ser encontrado. Trouxe a mão até o rosto com cansaço. Lhe restou considerar uma possível alucinação causada pela insônia.

Embora seguisse tal pensamento, tudo tinha sido tão real quanto o evento da floresta. As memórias ainda retornavam borradas, podia escutar um estranho som de estática corroer os ouvidos a cada tentativa frustrada do passado em ser revivido.

Carecia-lhe coragem em prol de recuperar esses momentos, contudo achava melhor não se esforçar a fim de alcançá-los. No fim das contas, o próprio era o encarregado de criar a amnésia parcial dentro do consciente.

E, de alguma forma, aquela conversa teve a serventia de estimular um ínfimo gatilho no caminho para despertá-las contra sua vontade.

Por conta disso, resolveu esquecer o encontro daquela noite enquanto caminhava de volta ao quarto. Permaneceria lá até o amanhecer, a hora que a jovem misteriosa receberia sua alta.

Não interessava se ficaria acordado até o raiar do Sol.

Apenas desejava apagar tudo de uma só vez...

 

★★★

 

Após retornar ao leito, Norman se deitou na cama e buscou o sono. A caminhada para vencer a insônia costumava cobrir metade do hospital – contando ida e volta. Entretanto mal havia ultrapassado um terço do caminho naquela noite.

O motivo pertencia a pessoa que ele mais desejava esquecer.

Independente das tentativas, a imagem da jovem misteriosa retornava a sua cabeça com frequência. Dispunha de alguns livros e revistas encontrados em certas alas do hospital, portanto as utilizava em prol de se distrair e, por consequência, apagar todas as memórias recentes adquiridas no pátio.

Estava inquieto. As palavras escritas pareciam se desencaixar à medida que as páginas eram avançadas. Chegou a um momento onde se tornou incapaz de ler as frases impressas nos pedaços de papel.

Os olhos bastante pesados passavam a impressão de estarem prestes a caírem em cima da cama. O sono começava a se esgueirar, mas a vontade de deitar e fechá-los inexistia. Seria mais uma longa noite naquele cômodo silencioso iluminado pelo luar.

Esse estava localizado numa região perfeita do prédio que, para azar do jovem, permitia a plena observação do céu que buscava ignorar.  Quanto mais o encarasse, mais as memórias trancafiadas passariam a ressurgir. Com o objetivo de evitar isso, dirigiu-se às janelas e puxou as cortinas azuis nas laterais.

Tal ação tomava o cômodo em completa escuridão. O carregado silêncio era interrompido pelos contínuos tiques do relógio na parede. O paciente aparentava vivenciar uma prova de resistência mental, onde deveria preservar a sanidade perante o som repetitivo.

No mínimo considerava um bom passatempo até conseguir cair no sono. Poderia continuar ali por bastante tempo, em breve estaria deitado na cama coberto até a cabeça, uma declaração de vitória ao incômodo distúrbio pós-trauma.

Enfim adormeceria.

Enfim esqueceria toda a conversa com aquela garota no pátio.

Faltava pouco...

Tome cuidado nessa noite. Uma pessoa virá a sua procura... para lhe roubar o destino.

Quando se encontrava próximo de apagar a consciência, a frase de despedida dela pareceu gritar em sua cabeça. Quase saltou da cama, só não o fez por conta dos ferimentos que ainda doíam. Dito isso, ergueu o corpo deitado de forma abrupta, a exemplo de quem despertava de um pesadelo horrendo.

Estalou a língua irritado. Esteve tão perto, mas de repente foi dominado pelas mesmas palavras desconexas. O retorno repentino da dor no lado esquerdo da testa o fez levar a mão dominante até a área.

“Que merda é essa...?”, resmungou em silêncio conforme fazia força com os dedos sobre o local dolorido. “Quem era essa garota? Que merda foi aquilo? Ela queria brincar comigo, foi isso?”, as perguntas irritadas não paravam de surgir.

Ao retirar a palma do ponto latejante, enxergou algo estranho. No quarto tomado pelo breu silencioso, uma fraca luz branca reluziu sobre o lençol. Não havia nenhuma fonte de luz naquele lugar. As cortinas estavam fechadas e impediam a passagem do luar, todas as lâmpadas encontravam-se desligadas, nem mesmo o corredor emitia alguma claridade.

Então... o que estaria enxergando? A indagação final permeou sua cabeça por alguns segundos ao encarar o esquisito cintilar. A título de curiosidade, novamente direcionou o membro de extremidade até o ponto de incômodo.

No instante que a palma tocou a testa, a iluminação nívea desapareceu. Ao retirá-la, retornou. Foi o suficiente para constatar que o clarão vinha, de fato, daquele local.

— Mas... o que...?

Após murmurar incrédulo diante o brilho incompreensível, um som estranho se alastrou pela passagem de fora.

Norman devia ser o único paciente acordado naquela hora, mas preferiu esperar no quarto por alguns segundos. Foi um ruído considerável, alguém certamente iria escutar.

O som do relógio continuou avançando, não seria interrompido por nada. A espera durou até a singela repetição passar de terapia a ansiedade. Prosseguiu até a porta do quarto e hesitou por um instante, contudo levou a mão até a maçaneta.

Após abrir a estrutura de metal, foi recebido por um barulho de passos curtos vindos da esquerda. Cada eco causado pelo lento caminhar fazia o nervosismo subir até a cabeça. Isso durou até a pessoa em questão alcançar metade da passagem escura

De olho na vertente correta, o brilho branco de sua testa foi o responsável por revelar a forma do indivíduo. Parecia ser um homem, trajava um casaco de lã e calça jeans escuros, além de uma máscara branca com detalhes avermelhados. Ela possuía um bigode peculiar, com laterais curvadas para o alto, sobre o sorriso macabro.

Imaginou ter visto algo parecido num filme ou quadrinho, porém qualquer pensamento foi varrido de sua cabeça...

— Achei.

A voz do homem soou abafada pela máscara ao pronunciar a conclusão de seu objetivo. Ainda assim, o jovem pôde decifrar um tom deleitoso na fala do homem, que logo na sequência retirou um facão do bolso.

Diante da estranha ameaça, sentiu as palpitações dispararem. A adrenalina cresceu de forma exponencial, gotas de suor passaram a escorrer sobre o rosto. Estimulado pelo turbilhão interior, não desafiou a sorte ou o azar.

Girou o corpo e disparou pelo restante do corredor. Sequer conferiu se o armado também tinha começado a correr, apenas seguiu em frente na busca por ajuda.

“Que porra tá acontecendo!? Como esse cara entrou!?”, perguntas incapazes de serem respondidas naquele instante preenchiam a mente alucinada do garoto.

Tudo parecia ir de mal a pior em sua vida. Perdeu pais e irmão mais novo, não conseguia mais dormir direito, estava há três dias internado naquele hospital, teve uma conversa estranhíssima nessa noite e agora era perseguido. No local onde deveria estar protegido, tinha a vida posta em risco mais uma vez.

Rangia os dentes com a agonia a se proliferar graças aos movimentos bruscos executados a fim de correr o mais rápido possível.

Quando averiguou a retaguarda e percebeu a ausência do perseguidor, imaginou ter sido capaz de despistá-lo. Se escondeu em uma bancada próxima do elevador na tentativa de recuperar o fôlego perdido.

Todavia algo o incomodava demais naquele momento.

“Cadê... todo mundo?”, até então não tinha encontrado nenhuma pessoa pelo caminho, nem mesmo algum médico de plantão.

A sucessão de eventos estranhos somente piorou ao passo que experimentou uma leve vibração se espalhar pelo espaço. Arregalou os olhos temeroso por ser um possível terremoto, mas logo descartou a possibilidade ao se lembrar da escassez de tamanhos fenômenos naturais onde morava.

De qualquer maneira, ainda precisava garantir a própria segurança.

Mas...

— Onde acha que vai!?

O homem mascarado surgiu logo ao lado, a faca pronta para acertá-lo. Antecipando sua reação, o perseguidor tentou o empalar na altura do rosto, mas o alvo conseguiu desviar no reflexo. Sofreu nada mais que um leve corte na altura da bochecha, de onde um fio de sangue escorreu.

“Merda! Eu...!”, se debateu em busca de retornar a fuga desesperada, mas dessa vez encontrava-se em desvantagem. Com o braço esquerdo imobilizado, perdeu na disputa de força para o homem mascarado e voltou a cair no chão.

— Isso foi irritantemente fácil – murmurou o agressor ao chutar a barriga do jovem, de quebra atingindo o membro fraturado. – Se todos forem como você, eu vencerei isso sem problema!

“O que... esse cara tá falando? Eu não...”, Norman via-se prestes a sucumbir no instante que a lâmina voltou a ser apontada em sua direção.

Mirando o olho direito do escopo, o perseguidor estava pronto para concluir o que desejava fazer desde o início.

“Eu não quero...”, caído no solo frio, ele se lembrou.

Algumas das imagens borradas voltaram conforme a luz em seus olhos se esvaía. O teto escuro do prédio o remeteu ao céu cheio de estrelas encarado durante o despertar após o acidente.

Em seguida... a face de seus pais e irmão mais novo falecidos, todas manchadas na altura dos olhos. Apenas o sorriso deles estava amostra, mas era o suficiente...

— Eu não... quero morrer! – gritou do fundo da alma e chutou a barriga do assassino.

Conseguiu pegá-lo de surpresa, então pôde retomar o equilíbrio até correr o máximo possível, no esforço de se livrar da ameaça. O homem, irritado, virou o corpo na velocidade do pensamento e puxou a luva escura da mão direita com os dentes.

Ao retirá-la por completo, levou os dedos a tocarem o chão. O dorso do membro emitiu um brilho branco-amarelado intenso e, de repente, o tremor se alastrou com maior intensidade pela área. Norman quase caiu graças ao abalo poderoso, entretanto se esforçou o possível a fim de manter-se adiante.

Foi capaz de se livrar da anomalia ao alcançar as escadas, onde desceu alguns andares na busca por fugir pelo térreo. Ele não se importava se tivesse que sair do hospital desde que encontrasse alguém.

No entanto esse alguém apareceu logo na sequência, conforme alcançou o primeiro piso. Na mesma saída utilizada mais cedo durante o passeio, enxergou a figura que desejava esquecer na madrugada.

Com as mãos entrelaçadas atrás do corpo, a garota de cabelo branco virou o corpo em direção ao rapaz como se estivesse a sua espera.

— Olá. Nos encontramos de novo.

Boquiaberto perante a jovem misteriosa, não encontrou palavras para responder a saudação.

Quem prosseguiu foi a própria ao estender a mão, toda enfaixada até a altura do antebraço, em sua direção.

— Venha comigo. Irei lhe ajudar a superar este destino.

Suas palavras ecoaram pelo vazio, como pequenos sinos de esperança em meio ao desespero.



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