A Voz das Estrelas Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 13: A Decisão de Cada Um – Confronto entre Marcados ⑧

O pranto dos irmãos abraçados era mascarado pelas fortes gotas d’água que caíam do céu. Pouco se importavam sobre as vestimentas escuras encharcadas por conta da chuva incessante. Um possível resfriado não seria nada comparado a dor da perda que precisariam superar.

O jovem de pé encontrava-se de cabeça levantada na direção do firmamento tomado por nuvens escurecidas que, de maneira esporádica, era predominado por tons azulados de relâmpagos distantes. O cabelo pesado cobria os olhos de onde as lágrimas escorriam, misturadas às partículas em queda.

O questionamento dele era o mesmo da menina que segurava seu braço esquerdo com força conforme soluçava, de joelhos sobre o solo despejava todas as lamúrias em frente a lápide.

 “Por que isso aconteceu?”

A resposta estava marcada em seu corpo.

O brilho cerúleo no dorso da mão canhota o fez lembrar do dia que a grande tragédia ocorreu. Tal era o símbolo responsável por estampar o fardo que deveriam carregar a partir desse momento. Cerrar o punho irritado passava a ser a única ação possível em prol de ultrapassar a barreira do sofrimento.

— Eu... vou lutar... – O murmúrio do garoto fez a irmã erguer o rosto avermelhado de tanto chorar. – Irei alcançar o trono desse tal Rei Celestial, seja lá o que for. Então trarei nossa mãe de volta. Com certeza deve haver um jeito...

A menina manteve o silêncio durante alguns segundos. Frente as palavras firmes do irmão, encontrou forças para se levantar do chão molhado e mostrou a palma da mão direita a ele.

O cintilar avermelhado iluminou seu rosto soturno. A idêntica marca estava estampada no membro dela, porém havia uma diferença sútil em comparação a do parceiro. O maior indicativo entre ambas se situava em lados opostos, assim como a coloração da luz a irradiar delas.

— Não me importo com isso de trono, mas... irei ajudar. – Cortada pelo pranto, ela prosseguiu: – Eu também fui escolhida!...

Mesmo se desejasse renegar a ajuda da garota a fim de não a colocar em risco, o rapaz sentiu ser incapaz de colocar em palavras uma resposta negativa. A única que pôde oferecer foi levar a mão dominante a entrelaçar-se nos dedos dela.

Sua palma experimentou a ternura do brilho escarlate. Ali residia a determinação calorosa que ela carregava, mesmo dominada pelo sofrimento. Para a respeitar acima de tudo, o jovem assentiu sem dizer uma palavra.

Um sorriso fraco surgiu em seu rosto.

 

☆☆☆

 

“Você é forte... por isso tenho certeza de que conseguirá seguir em frente sem medo”, o mesmo sorriso daquele dia foi projetado no rosto de Isaac.

A faca que antes tinha sido empalada em seu abdômen foi retirada sem que ninguém pudesse notar, até uma quantidade considerável de sangue jorrar da ferida vazia. O braço do inimigo envolveu-se em seu pescoço enquanto a outra mão portava a arma suja.

“Me perdoe, irmãzinha... não poderei chegar até o fim contigo”, fechou os olhos já ciente do fim iminente que o aguardava.

Sem pestanejar, o homem de olho brilhante perfurou o peito do adversário com força. Todos os presentes reagiram chocados ao ocorrido, afinal, nenhum deles foi capaz de impedi-lo. O corpo do Marcado de Rígel perdeu as forças no mesmo instante, entretanto não caiu graças ao enforcamento provocado por Levi.

O instante de silêncio perdurou até a ficha de Isabella cair. Tendo uma das lâminas presa à sua barriga, além das lesões adquiridas no dia anterior, não conseguiu se mover para ajudá-lo.

A única reação possível foi arregalar os olhos sob os óculos trincados e gritar:

— IRMÃAAAO!!!

Bianca desejava chorar ao presenciar o estado puro da crueldade. Norman foi assolado por um arrepio indescritível sobre a espinha, mas seu foco não era o garoto que acabava de ter o coração apunhalado.

Ele pediria as devidas desculpas depois, no entanto precisava aproveitar a brecha causada pela comoção geral no intuito de alcançar a garotinha paralisada logo à frente. Antes de conseguir ativar a Telecinesia, foi interrompido de novo pela companheira escondida até então.

— Layla!? – Virou o rosto assustado ao ser agarrado pelo braço.

— Não se mova, Norman.

Ao perceber o nervosismo entranhado no pedido dela, prontamente interrompeu as ações. O som da colisão entre o corpo inerte de Isaac e o solo chamou sua atenção de volta ao Marcado de Regulus. Um grunhido excruciante soou dos dentes prensados dele, seu corpo parecia estremecer conforme cambaleava para trás.

Sangue escorreu da vista esquerda, a especial. Desesperado pela dor que se alastrava daquele órgão, levou a mão agitada sobre o incontrolável cintilar irradiado do símbolo cerúleo.  

— Ele possui um Áster extremamente perigoso. Além de ter capacidade em reduzir o tempo sobre qualquer foco ao redor, também pode acelerá-lo como desejar. E isso serve para utilizar em si próprio...

Com a explicação resumida da aliada, Norman pôde compreender o motivo de sua ação ter sido tão rápida a ponto de desferir o golpe fatal contra Isaac. Ainda assim nem mesmo a Marcada de Vega esperava uma reação abrupta como efeito colateral.

Para quem demonstrava possuir amplo domínio sobre o poder cedido pelas estrelas, aquela era uma surpresa formidável.

“Ainda temos chance”, concluiu em pensamento diante da cena.

Os resmungos do comandante intensificaram à medida que o brilho emitido pela marca da Constelação do Leão desapareceu. Ele próprio percebeu o excesso de esforço utilizado com o intuito de se livrar do perigo originado por um descuido inaceitável. No fim teve sucesso ao derrotar o adversário, embora com uma pitada de sorte envolvida.

Apesar do primeiro desfecho favorável, se enxergava em desvantagem perante os demais marcados. Não seria problema caso fosse apenas a irmã do garoto semimorto no solo, porém a aparição da outra dupla elevou o perigo a níveis onde o risco não valeria a pena.

— Vamos nos retirar, por ora – murmurou ao segurar o braço de Bianca com rusticidade. – Deixo o resto com vocês...

Quando percebeu a mensagem do baqueado adversário, Layla se virou até o companheiro e gritou por seu nome. Ele agiu mais rápido que o pensamento e reuniu a concentração necessária para liberar o próprio Áster.

Os soldados que tinham restado se posicionaram à frente do comandante em prol de protegê-lo. Vencendo o temor adquirido durante o conflito anterior, apontaram as armas na direção dos três marcados restantes, prontos para dispararem.

Contudo Norman já tinha antecipado sua ação. Por meio de um esforço gritante, foi capaz de puxar dois veículos estacionados nos arredores utilizando o poder mental, até cruzar os braços e os tornar um escudo protetor através da colisão.

Se agachou junto de Layla enquanto os disparos destroçavam os vidros e perfuravam a carcaça metálica dos automóveis. Isabella ainda se encontrava em choque após presenciar o trauma sofrido pelo irmão, portanto não poderia raciocinar mesmo protegida pelos inimigos do dia anterior.

Norman cogitou forçar um pouco mais da Telecinesia no objetivo de derrotar os combatentes inimigos, entretanto seu braço dominante foi impedido pela palma da companheira.

— Não se preocupe... eles irão recuar.

Seguindo a recomendação dela, o jovem relaxou a tensão no aguardo da concretização de tal assertiva. Dito e feito, após a primeira salva de tiros, os homens decidiram encerrar os ataques ao confirmarem o retorno seguro do comandante. Após o comando de um deles, todos deram a volta e desistiram de prosseguirem com a ofensiva.

O silêncio se espalhou de acordo com a debandada dos soldados remanescentes. O Marcado de Altair olhou por cima de uma das janelas estilhaçadas a fim de confirmar a retirada repentina de todos. Pôde respirar aliviado pelo findar da ameaça, mas sentiu grande remorso por ter perdido a chance de resgatar a garotinha.

“Ele está a usando contra sua vontade”, cerrou os punhos com força e rangeu os dentes irritado. Mais um motivo de frustração fez sua moral decrescer, entretanto não era hora de se abater com isso. Na próxima oportunidade não iria falhar. Essa foi sua decisão final antes de trazer a atenção à direção da garota caída em paralelo.

Isabella buscou se levantar apesar das dores. Recusando a ajuda oferecida pela Marcada de Vega, caminhou a passos curtos na direção do irmão. Os olhos dele ainda estavam abertos, a luz na íris parecia prestes a se apagar para sempre.

A garota caiu de joelhos à sua frente. Nada que pudesse acontecer ao redor conquistaria a interrupção do momento doloroso entre os dois. Incapaz de controlar as emoções, deixou as lágrimas acumuladas tomarem caminho até o rosto pálido de Isaac.

O sorriso seguia estampado na face dele. A menina remeteu ao dia chuvoso quando sua mãe foi enterrada. A promessa feita pelo irmão detinha aquela mesma expressão imóvel. A Marcada de Beteugelse não podia dizer nada, pois estava ciente de que não seria mais escutada.

Em meio a soluços, segurou a mão onde o símbolo da Constelação de Órion mantinha-se estampado. A conexão entre as marcas idênticas ocorreu pelo toque de sua palma acima do membro frio do rapaz. Nenhum brilho irradiou dali. Apenas o vazio irrestrito de uma dor inapagável perdurou.

Para Layla e Norman, tratava-se de um cenário relativamente favorável. Mais um adversário natural foi retirado da Seleção, restando somente a irmã gêmea enfraquecida. Apesar disso nenhum dos dois sequer tinha em mente o desejo de tirar proveito do momento.

Inclusive o Marcado de Altair, o qual já tinha vivenciado um episódio semelhante ao perder seus familiares durante a própria Provação. De qualquer forma, aquela jovem ia além, já que passava pela segunda grande perda. Ele conseguia imaginar os sentimentos que a dominavam agora...

— O que faremos? – perguntou a companheira ao lado.

Ela não o respondeu por meio de palavras. Restringiu-se a soltar um fraco suspiro e caminhou até os dois irmãos, selecionados pela Constelação de Órion. Ao ser encarada pela chorosa Isabella, assentiu com lentidão antes de se agachar ao seu lado.

Os olhares das duas se cruzaram durante alguns segundos. Sem para de soluçar por conta do pranto, a jovem de óculos voltou a fitar o irmão gêmeo. Sem largar a mão gelada dele, murmurou com dificuldades:

— O que... está fazendo? Me mate de uma vez...

— Não farei isso. – Layla franziu as sobrancelhas ao responder. – Não poderia me sentir merecedora caso me aproveitasse disso. Não pretendo lutar com você.

Isabella reagiu surpresa ao escutar a declaração comedida da inimiga mortal, deste modo não resistiu a soltar uma fraca risada.

— A verdade é que... eu pouco me importo com essa Seleção Estelar... nós ganhamos nossos poderes... quando perdemos nossa mãe num assalto perto de nossa casa. – Executou uma breve pausa ao evocar o acontecimento enunciado. – Desde então recebemos essas recordações... até hoje não consigo dormir sem lembrar disso...

O sorriso de escárnio na face da jovem cresceu conforme prosseguia com o próprio mártir:

— Mas eu não me importava... mesmo sem a mãe... se estivesse com meu irmão, não desejava que ela voltasse como ele! Eu não queria que voltasse... eu não passo de uma egoísta vazia...

Sem ter o que dizer sobre as lamúrias reveladas pela abalada adolescente, Layla exalou uma rápida lamentação e a questionou:

— Então, o que fará a partir de agora?

Isabella fechou os olhos inertes do irmão falecido e proclamou em voz alta:

— Não posso permitir... que alguém tão cruel alcance o que meu irmão desejava alcançar. Por isso irei usar tudo que tenho para derrotá-lo... em nome de Isaac Morgan.

O olhar determinado era capaz de superar todas as dores físicas e emocionais que a preenchiam naquele instante. Por respeito à decisão da Marcada de Betelgeuse, Layla levou a mão direita até o dorso do rapaz, onde o símbolo de Órion mantinha-se gravado.

O brilho azulado se acendeu pela última vez, permitindo à Marca se desfazer aos poucos. Com o tempo, o corpo dele também começou a desaparecer em flocos luminosos que subiam pelo ar até alcançarem o céu alaranjado do amanhecer.

Para Norman, era a repetição da bonita cena experienciada antes de desmaiar depois do confronto no hospital.

— Obrigada, irmão... darei meu melhor para seguir em frente por você.

Isabella não soltou a mão de Isaac até essa se tornar energia ao toque da Marcada de Vega. O pranto da garota voltou a crescer quando seu corpo rumou na direção das demais estrelas, ofuscadas pelo brilho daquela que se encontrava mais próxima da Terra.

— Descanse em paz, junto das estrelas – a alva murmurou ao fechar os olhos.

Voltou a se levantar, porém permitiu a marcada adversária permanecer ali até despejar todas as lamúrias. Sua atenção se voltou ao companheiro imóvel paralelo aos carros repletos de buracos causados pelo tiroteio recente.

Apenas semicerrou os olhos azuis defronte a ele. Palavras não eram necessárias para transmitir o mesmo questionamento feito a Isabella agora pouco.

Compreendendo isso, o Marcado de Altair não pestanejou em responder:

— Eu ainda não sei se possuo algum desejo específico com essa batalha além de sobreviver. Porém, quando estava prestes a perder tudo no hospital... eu decidi que não iria me arrepender de novo.

Flashes de memórias velozes se desprenderam das trancas criadas por si próprio na cabeça, lhe trazendo alguns ápices de recordações anteriores ao acidente responsável por torná-lo um escolhido.

— Aquela garota... a Bianca estava sofrendo. – Encarou a palma de sua mão antes de cerrá-la com ímpeto. – Sinto que se eu fechar meus olhos e não agir... irei acabar me arrependendo mais uma vez. Por isso quero salvá-la.

— Ela não deixa de ser uma marcada – a aliada retrucou. – Ainda aceitaria o risco futuro que ela poderia nos proporcionar?

— Não me importo com isso. Marcada ou não, ela é apenas uma criança sendo usada por um lunático sem poder se defender. Afinal... – Remeteu ao encontro na noite anterior antes de completar. – Aquele pedido de ajuda teve um peso que parecia estar guardado há muito tempo.

Às palavras finais do companheiro, Layla não revelou novas objeções quanto a decisão. Apesar de ainda demonstrar certo receio no semblante soturno, assentiu com a cabeça em aceitação ao primeiro grande desejo pessoal demonstrado por ele. De qualquer forma, ela conseguia enxergar tal atitude como uma boa evolução.

— Nosso principal objetivo é derrotar o Marcado de Regulus e resgatar a marcada sob seu controle. Dito isso, iremos nos unir temporariamente até alcançarmos nossos respectivos objetivos. Após tudo terminar...

— Vocês não precisarão se preocupar. – Isabella interrompeu o pronunciamento ao se levantar do chão. – Sem meu irmão, não vejo mais sentido em lutar nisso. Quando eu conseguir a cabeça daquele desgraçado, minha batalha se encerrará.

A jovem alva não disse nada em resposta, somente aproveitou a declaração da aliada provisória para encerrar a sua:

— Então, estamos resolvidos. Vamos dar nosso melhor para trabalharmos juntos acima de quaisquer desavenças passadas.

Após fitar o leve sorriso projetado pela parceira, Norman encarou a antiga desafeta que quase o matou no dia anterior. Sentia que ainda não seria capaz de perdoá-la por aquilo, mas pôde compreender todo o contexto da situação a ponto de não usar tal fator como um imbróglio.

Além disso também não poderia amaldiçoá-la após suportar uma nova perda significativa. Ao menos ele podia a entender como poucos. Por conta disso, se restringiu a dar meia volta e caminhar a passos apressados conforme focava no objetivo principal.

“Eu vou salvá-la... custe o que custar”, impulsionado por um sentimento caloroso nunca experimentado, o rapaz cacheado avançou resoluto no primeiro grande desejo particular após determinar a vontade de permanecer vivo.



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