Volume Único
Capitulo 2: Jogo de memória
Aiko e Shirou se encaravam com uma concentração quase excessiva, como se a situação fosse de importância vital, embora a razão fosse tão trivial que beirava o ridículo. No melhor de três no jogo de pedra, papel e tesoura, estavam empatados. A última jogada decidiria quem ficaria com o último bolinho.
Os dois estavam tão concentrados que seus corpos quase tocavam a mesa, seus olhos semicerrados e as mãos levemente tremendo. O bolinho, com seu glacê branco e confetes de estrela brilhando sob a luz da lâmpada, estava ali, imponente e silencioso. A cereja vermelha no topo parecia mais uma coroa, majestosa.A cereja vermelha no topo parecia uma coroa, majestosa, observando a cena com a calma de um rei em seu trono. O clima estava carregado, quase dramático, mas no fundo era apenas uma disputa boba por um pedaço de sobremesa.
Ambos, com gestos quase coreografados, se prepararam para o grande momento. As mãos se ergueram, os corpos se inclinaram para frente e, com uma respiração compartilhada, disseram em uníssono:
— Agora, a decisão final...
— Pedra...
— ... papel...
— ... tesoura!
Aiko, com um sorriso vitorioso, exibiu sua pedra, derrotando a tesoura de Shirou, que, frustrado, suspirou e jogou a cabeça para trás, derrotado.
Ela comemorou, pulando da cadeira com uma euforia contagiante. Mas, enquanto estava distraída, Shirou, mais esperto, agarrou o bolinho e o devorou com rapidez. Aiko se levantou, percebendo o roubo, o semblante já irritado, mas Shirou já corria escada acima.
— Não é justo, maninho! — sua voz embargada de frustração ecoava pelo corredor.
Shirou se trancou no quarto. O estômago de Aiko se apertou. Olhou para a porta. Por um momento, a raiva quase a fez perder o equilíbrio.
— Quem come o bolinho não precisa lavar a louça — a voz dele veio abafada pela porta.
Aiko parou diante da porta trancada, o olhar fixo na madeira. Deu um tapa na superfície, exasperada.
— Mas você não o ganhou!
— Mas fui eu que comi...
Aiko se aproximou da porta e deu mais alguns golpes nela. Cada um sendo o reflexo impiedoso de sua indignação.
— Injusto!
Com um resmungo, ela desceu as escadas, seus passos pesados, quase ecoando sua frustração. Arrastou o banquinho até a pia. Ligou a torneira, o som da água preenchendo o ambiente com um ritmo monótono. Sua mão esfregava a louça com mais força do que o necessário para o cumprimento daquela tarefa. Por fim, ela parou, os olhos fixos em um prato quebrado.
Enquanto isso, Shirou estava deitado em sua cama, absorvido pela leitura de uma revista sobre a série que agora lhe despertava tanto interesse. O ambiente silencioso noturno ao seu redor contrastava com o burburinho que se ouvia no andar de baixo.
O som de algo caindo, seguido de passos apressados subindo as escadas, quebrou a calma estabelecida na casa. Shirou parou, o instinto o alertando, como se o ritmo apressado de Aiko fosse a última nota de uma melodia de tensão. O barulho, agora vindo do andar superior, tinha um tom de urgência. Ele sabia, antes mesmo de compreender o que estava acontecendo, que Aiko estava em fuga. Algo, ou alguém, a havia seguido até seu quarto.
— MANINHO! MANINHO SHIROU!!!
O grito desesperado de sua irmã fez Shirou saltar da cama. Ele escorregou no tapete ao tentar parar em frente à porta do quarto dela, agarrando-se à guarnição para evitar a queda. Com o corpo inclinado e as pernas abertas, tentou recuperar o equilíbrio, respirando fundo, mas ainda segurando a revista com a mesma firmeza que um pescador segura sua rede no meio de uma tempestade.
— O que aconteceu?!
Dentro do quarto de Aiko, um mar de pelúcias formava um castelo seguro ao redor dela. Ela estava encostada no canto, com o rosto pálido, refletindo a luz suave que entrava pela janela. Tremia, abraçada a um grande coelho de pelúcia com orelhas exageradamente grandes, como se ele pudesse protegê-la de qualquer ameaça.
— E-ela... e-e-e-e-está a-aqui...!
Shirou, com uma expressão séria e determinada, enrolou a revista e a segurou com firmeza, como pescador antes de puxar a vara após notar que fisgou um peixe. Seus olhos percorriam o quarto, atentos a qualquer movimento, em busca do inimigo que atormentava sua irmã.
Então, algo se moveu atrás da cortina. Aiko, com o rosto escondido na pelúcia, chutou o ar em um gesto apavorado.
— Lá está ela!
Shirou pediu que sua irmã se acalmasse, mantendo os olhos fixos na cortina.
Com coragem sustentada por uma mistura de nervosismo e determinação, avançou lentamente até a cortina, a revista enrolada como uma arma em posição de defesa. Hesitou por um momento, o suor escorrendo de seu rosto. Seus olhos estavam fixos, rígidos de tensão, enquanto sua expressão se mesclava entre ansiedade e valentia.
Ele levantou a cortina rapidamente e lá estava ela... a barata. A criatura traiçoeira, com suas asas estendidas como um escudo ameaçador. Shirou, com um movimento rápido, estufou o peito e apontou a revista para a oponente, pronto para o confronto final.
— Não me escapará!
Aiko, com a voz trêmula, implorou ao irmão que removesse o inseto do seu território.
— P-pegue ela, maninho!
Aiko tinha medos muito específicos. Não temia o escuro ou a solidão, mas ficava aterrorizada com pequenos insetos. Animais grandes e répteis não a incomodavam, mas barulhos desconhecidos a perturbavam. Verduras no prato não eram um problema, mas uma dor de dente podia deixá-la desesperada. Por isso, seu irmão sempre estava alerta, pronto para ajudá-la em qualquer situação. Ele faria qualquer coisa para mantê-la segura.
Shirou usou toda a sua força e empenho para desferir um golpe na barata. Acreditou ter acertado, mas não encontrou o corpo da criatura. Desesperado, começou a procurar por todo o cômodo, mas a barata parecia ter desaparecido. Aiko, ainda abraçada ao coelho de pelúcia, observava enquanto Shirou, quase convencido de que a barata havia fugido, continuava sua busca.
Quando estava prestes a desistir, a barata rastejou por seu rosto, pegando-o de surpresa. O toque das antenas e patas dela sobre sua pele o deixou atordoado. Tentando se livrar do inseto, Shirou recuou, enquanto as antenas e patas da barata se moviam em sua pele, deixando-o paralisado de pavor. Aiko, gritando e pulando na ponta dos pés sem largar sua pelúcia, observava aterrorizada. Com os olhos fechados, Shirou tropeçou e caiu no chão, completamente imobilizado.
Vitoriosa, a barata avançou para a próxima vítima: Aiko. Em um movimento rápido e preciso, carregada pela energia do medo e da adrenalina, ela pulou da cama, pegou a revista do irmão depois de pisoteá-lo e a lançou com precisão, acertando o inseto em cheio.
Após a árdua batalha, Aiko se jogou no chão do quarto, ofegante, com o peito subindo e descendo no ritmo frenético da adrenalina. Shirou parecia ter perdido a alma na luta — era quase possível ver seu espírito pairando acima de sua cabeça. A batalha contra a oponente os havia deixado exaustos, mas aliviados. O silêncio da noite agora era quebrado apenas pelo som suave das respirações, uma paz que finalmente se instaurava no quarto.
* * *
Shirou empilhava com cuidado três pares de cartas à sua frente. Era um progresso modesto, mas o máximo que conseguira até aquele momento. Aiko, por outro lado, parecia imbatível. No centro da mesa, uma pilha de cartas viradas aguardava para ser descoberta, uma a uma, pelas mãos rápidas dela. Cada movimento resultava em um novo par, com uma precisão impressionante. Ele observava incrédulo, sentindo uma crescente sensação de que algo estava errado. Aiko não parecia apenas focada, mas... impossível. Seus olhos não piscavam; suas mãos se moviam com uma precisão inumana. Shirou sentiu uma mistura de desconforto e um crescente entorpecimento. Estava perdendo para sua irmã, e algo nessa ideia o incomodava mais do que deveria.
Ergueu a mão, um gesto lento e pesado, pedindo para que Aiko parasse. A mão dela congelou no ar, pairando sobre as cartas como se aguardasse permissão para seguir. Shirou olhou para a mesa. As cartas viradas pareciam flutuar em sua visão, e a sensação de que algo estava fundamentalmente errado tomou conta dele.
— Pesadelo...? — murmurou, com a voz arrastada, como se mal tivesse força para pronunciar as palavras.
(Sim, isso mesmo)
Shirou olhou para a irmã, os lábios tensos.
Sim, isso mesmo...
A visão de Aiko desapareceu, e Shirou ficou ali, imóvel, como se o tempo tivesse simplesmente parado. Foi um daqueles momentos estranhos, em que o cérebro parece dar um desligamento, um curto-circuito no que é real. Ele piscou com força, tentando se recompor, mas não conseguia voltar a si.
Onde quer que ele olhasse, parecia que seus próprios olhos o encaravam.
Está perdendo o ritmo, coelho?
— Olha o desenho que fiz de nós, maninho... — A voz dela soou distante, abafada, como se estivesse vindo de dentro de uma caverna. — Maninho?
A última palavra foi o que o despertou do transe.
Quando finalmente conseguiu focar, ela estava ali novamente, com um desenho de giz de cera nas mãos. A folha rabiscada surgiu do nada, cobrindo quase toda sua visão. Os pequenos dedos de Aiko seguravam o desenho diante de seus olhos, mais nítidos do que qualquer outra coisa ao seu redor. Seus pensamentos estavam turvos, como se tentasse entender um sonho logo após acordar.
Ele não respondeu de imediato. Com um movimento quase involuntário, Shirou afastou a folha e começou a virar as cartas sobre a mesa. Alguns pares se repetiam, enquanto outros apresentavam números ímpares. A estranheza disso o incomodava, mas ele não conseguia entender o porquê. A cada novo par, a sensação de desconforto aumentava, como se as cartas zombassem de sua incapacidade de organizar o caos mental que o consumia.
— Estava divagando de novo.
O rosto de Aiko apareceu por trás da folha, como se o que acontecera momentos antes fosse apenas uma breve ilusão. Ele piscou, tentando organizar os pensamentos que ainda estavam em desordem.
— Ah, hum... Não, não... Eu estou bem — disse ele, pegando a folha das mãos da irmã e passando os olhos sobre o desenho. — Q-que desenho bonito...
— Está com sono?
Shirou deixou a folha de lado, uma dor repentina se espalhou por suas têmporas.
— Hurrum. Não, dormi bem essa noite. — A resposta saiu monótona, quase sem vida.
— Foi por conta daquele dia? Eu não queria ter te pisoteado. Des...
— Não foi por causa daquilo. Fique tranquila.
Os ombros de Aiko caíram, e o silêncio tomou conta da sala por um momento.
— Tudo bem então... Vamos continuar o jogo?
— Melhor não, Aiko.
Ele se levantou da mesa, recolhendo o baralho. Não disse mais nada à irmã, e no restante do dia, não trocou mais nenhuma palavra com a irmã. Aiko o ouvia de relance, passando pelo corredor, murmurando coisas sozinho. Estava em um daqueles momentos sérios, que ela não conseguia compreender, mas sentia claramente o peso que recaía sobre o irmão. O que poderia ser?
Mais tarde, Aiko subiu as escadas e espiou pela fresta da porta. Seu irmão estava sentado no chão do quarto, encarando as cartas do jogo em silêncio. Algo nele não parecia certo. Aiko observou o irmão por um momento, tentando entender o que o incomodava.
Uma coisa era clara: não havia respostas ou pistas naquele amontoado de cartas. Só havia figuras sorridentes de animais amigáveis.
Aiko abriu a porta, relutante. Tinha o desenho que fizera mais cedo em mãos. O irmão ergueu a cabeça para olhá-la, um sorriso feio distorcendo seus lábios.
— Aconteceu algo, pequena? — perguntou ele, com uma voz seca.
Aiko negou com a cabeça e, com um passo hesitante, se aproximou do irmão. Estendeu a folha, que ele pegou sem pressa.
— Ah, sim, o desenho... Não havia olhado ele com calma. — Ele aproximou o papel do rosto. — Ah, sim, realmente é um desenho muito bonito, Aiko.
Aiko se agachou, embaralhando as cartas organizadas no chão. Pegou uma, olhou para ela e depois virou para o irmão.
— Um porquinho.
Shirou manteve os braços cruzados, observando sem pressa de intervir. Colocou o desenho ao lado, focado no que ela fazia.
Aiko, ignorando sua reação, pegou outra carta e continuou.
— Uma giralfa.
— Uma girafa... — Shirou corrigiu, o tom de sua voz quase imperceptível.
Ela não pareceu notar. Pegou mais uma carta.
— Um cavalo.
Shirou piscou, a mente trabalhando, mas sua expressão não entregava nada, como se estivesse tentando discernir se aquilo era parte da brincadeira ou algo mais significativo. Ele se manteve em silêncio, apenas observando.
Aiko, já com um toque de confiança, pegou a próxima carta e a virou para o irmão.
— Um hipopopopo...tamu.
Shirou soltou uma risada rápida antes de corrigir.
— Hipopótamo.
Aiko fez um biquinho, mas não se abalou e continuou.
— Raposa.
Ele a olhou de maneira distante, um sorriso fino no rosto, mas sem dizer nada.
— Leopo.
— Hum? Leopo?
Aiko aproximou a carta do rosto do irmão esperando que Shirou soubesse a resposta. Ele a observou em silêncio, um toque de surpresa em seu rosto por ela não perceber a confusão.
— É um leão, Aiko.
— Ah...! Eu confundo com ele com o Leopardo.
Ele balançou a cabeça devagar, como se tivesse que explicar o óbvio, mas com um tom suave que não soava ríspido.
— Eles não são muito parecidos.
Ela deu uma olhada na carta, pensativa por um instante, mas logo a devolveu ao chão, como se a resposta estivesse clara o suficiente.
— São felinos. São iguais.
Ela prosseguiu com as cartas, acertando e errando sem grande preocupação. Aos poucos, começou a se corrigir mais rápido, como se tivesse entendido o ritmo da brincadeira. Finalmente, chegou à última carta.
— E agora, a última carta...
Aiko hesitou. Segurava a carta como se estivesse mais pesada. Então, sem dizer nada, apontou para a janela. Seu gesto era calmo, desconcertante, e a carta permanecia virada para baixo em sua mão.
Shirou sentiu o ar ao redor ficar diferente. Havia algo nele — um peso estranho, quase sufocante. Ele se levantou devagar, cruzou o cômodo e olhou pela janela. Nada. Apenas as sombras das árvores se alongando sob a luz fraca da rua. Talvez fosse o vento. Talvez não fosse nada.
— Você viu alguma coisa? ele perguntou, sua voz soando mais baixa do que gostaria.
Aiko não respondeu. Continuava apontando, imóvel. Um arrepio subiu pela espinha de Shirou, mas ele tentou ignorar. O estalo de uma tábua no chão e o som da sua própria respiração eram altos demais naquele silêncio.
— Coelho... — completou Aiko.
Shirou se virou, mudou sua expressão, o pensamento se tornando mais claro e insuportável.
(Está perdendo o ritmo, coelho?)
Seus olhos caíram sobre a figura do coelho, mas o que realmente pesava sobre ele era a voz que ressoava em sua mente. Não era sua, não podia ser. Era como se Aquilo estivesse se divertindo à custa dele. Maldito, pensou, o desconforto crescendo à medida que a sensação de estar parado, como se tivesse perdido a capacidade de agir, aumentava.
E então, um movimento. Pequeno, mas suficiente para chamar sua atenção. Algo na periferia do olhar. Shirou piscou, tentando se convencer de que era apenas o cansaço ou o jogo da luz do corredor entrando no quarto, mas quando olhou de novo pela janela, não havia nada. A rua estava vazia, como sempre.
Ele olhou para Aiko. Ela estava imóvel. Seus olhos, fixos na janela, não davam pistas. Ela não se movia, não fazia nada. Apenas a mão, ainda apontando, e o dedo, firme como um prego em uma tábua.
— O que foi? — perguntou, tentando parecer firme.
Ela apontou novamente, sem dizer uma palavra, como se ele já soubesse a resposta. Shirou virou a cabeça para a rua. A luz do poste parecia projetar sombras demais, criando cantos escuros onde não deveriam existir.
Ele se afastou da janela, um calafrio correndo por seu corpo. Quando olhou de volta para Aiko, ela estava sorrindo. Não sorrindo realmente, mas com um leve, leve sorriso.
Aquele sorriso foi o suficiente para fazer sua pele se arrepiar ainda mais.
— Sim... claro. Mas, por que apontou para fora? Você viu algo? — Shirou tentou desviar, tentava encontrar algum conforto na familiaridade de sua voz, mas nada parecia certo.
Aiko inclinou a cabeça para o lado. Ela olhava para a janela, os olhos fixos em algo invisível, como se estivesse vendo mais do que ele.
— Pensei ter visto neve na janela. Logo mais deve nevar.
Shirou olhou para fora, tentando encontrar qualquer vestígio do que ela mencionava, e então voltou o olhar para a irmã, sentindo os pensamentos se fragmentarem, como se algo estivesse prestes a desabar.
— Bem lembrado.
Aiko sorriu, satisfeita com sua própria observação, mas a tensão em Shirou apenas aumentava.
Talvez fosse o cansaço. Talvez.