Volume 1

Capítulo 29: Brincando entre Leões & Lobos — Parte 2

À medida que avançávamos pelos corredores do orfanato, os sussurros e olhares inquisidores das outras irmãs nos seguiam como uma sombra. Apesar de não estar mais vestida com os velhos trapos, minhas características demoníacas, como chifres, um rabo sinuoso e garras afiadas, ainda eram fontes de curiosidade e desconforto. Algumas cochichavam entre si, enquanto outras me encaravam abertamente, seus olhos refletindo uma mistura de fascínio e receio.


Sheyla, com uma gentileza que contrastava com a atmosfera tensa, ofereceu sua mão, que eu aceitei prontamente. Era uma forma de tentar suavizar a pressão daquelas miradas penetrantes.


— Não se preocupe com elas, Yami — sussurrou Pretty, sua voz um bálsamo em meio à tensão. — Elas estão com inveja da sua beleza.


— Ou dos meus chifres — brinquei, tentando aliviar o clima com um toque de humor.


— Errr... bem, talvez? — Pretty respondeu, entrando na brincadeira.


Nossa jornada nos levou até a cozinha, um lugar que, ao contrário da quietude da noite anterior, agora pulsava com vida e movimento. A curiosidade borbulhava dentro de mim, não só pelo que Pretty prepararia para o café da manhã, mas também por como seria esta refeição neste mundo novo e estranho. A [Tradução Mágica] facilitava a comunicação, mas os conceitos culturais ainda eram um terreno desconhecido para mim.


Enquanto pensava nisso, meu estômago roncou, um lembrete embaraçoso da minha fome. A perspectiva de comer algo preparado por Pretty trazia um conforto inesperado, especialmente depois das tensas conversas anteriores.


Ao entrar na cozinha pela segunda vez, percebi que, apesar de não ter explorado outros cantos do orfanato, esse lugar já se destacava como meu favorito. Até então, de acordo com o Sistema, eu não precisaria de alimentos ou bebidas. Mas a transformação em meio-demônio e o aroma da sopa da noite passada despertaram em mim um desejo voraz, como se uma pedra tivesse acertado o botão de dopamina. Comparei com minha vida passada, restrita a dietas médicas, e percebi que havia esquecido o prazer de saborear delícias gastronômicas.


Mesmo na cozinha, os olhares das irmãs ainda me seguiam, embora agora eu estivesse preparado para enfrentá-los. Mas, de repente, uma presença muito mais intimidadora tomou o ambiente. Uma mulher sinistra e perturbadora emergiu, sua voz estridente cortando o ar.


— PRETTY! O que você pensa que está fazendo? Vai fugir dos seus serviços novamente, se escondendo na cozinha? — gritou irmã Meríacles, sua voz ressoando pelo corredor como um trovão.


Pretty recuou um passo, virando-se rapidamente para enfrentar a ira de irmã Meríacles. Com gestos suaves das mãos, ela tentava acalmar a situação, como quem tenta pacificar um animal selvagem. Irmã Meríacles avançava, agitada, enquanto Pretty a acompanhava, movendo-se em um balé tenso e cauteloso ao seu redor.


Quando irmã Meríacles finalmente parou, seu olhar severo fixo em Pretty, esta última viu uma oportunidade.


— Não, irmã Meríacles, não é isso. Eu só estava...


A tensão na cozinha se agravou quando a velha Meríacles interrompeu Pretty abruptamente, sua voz carregada de autoridade.


— Nada disso! — exclamou, erguendo um dedo em reprovação. — Volte para seu trabalho agora!


Pretty, engolindo a apreensão, respondeu com uma voz mais firme do que sua postura defensiva sugeria.


— Eu já terminei de trazer as caixas para dentro — declarou, tentando manter a compostura.


Meríacles, com um olhar de desconfiança, vasculhou a cozinha com os olhos, como se buscasse alguma prova das palavras de Pretty. Ela então questionou, com um tom quase acusatório.


— Dentro? Dentro de onde, sua pirralha sem futuro? — Sua voz era cortante enquanto ela se movia para fora da cozinha, olhando em volta como uma vigilante em busca das mencionadas caixas. — Está vendo alguma caixa na dispensa? — perguntou, apontando dramaticamente para outra porta.


Pretty, visivelmente desconcertada, olhou em volta antes de abaixar o olhar, desanimada.


— Não...


— Claro que não! — Meríacles elevou a voz novamente, sua frustração evidente em cada gesto.


Sheyla e eu, espectadores surpresos dessa cena, assistíamos em silêncio. No entanto, buscando intervir, Sheyla pigarreou discretamente. Meríacles, deixando de nos ignorar, se aproximou com passos pesados e decididos.


— Veja se não é “A” Bilterfon — disse ela, sua voz embebida em arrogância ao dirigir-se a Sheyla, quase apontando o dedo para seu rosto. — Espero que você não esteja aqui para ajudar novamente sua “irmãzinha”.


Meríacles passou por nós, sua presença imponente e dominadora. Antes de deixar a cozinha, ela se virou para Pretty.


— E você, é melhor trazer aquelas malditas caixas para dentro antes que eu lhe entregue um serviço ainda pior! — ameaçou.


— Sim, irmã Meríacles — Pretty respondeu, a cabeça baixa, sua voz um sussurro quase inaudível.


A mulher finalmente saiu da sala, deixando um rastro de arrogância e autoritarismo. Sua presença foi tão avassaladora que eu mal conseguia acreditar no que tinha visto.


Perdido em meus pensamentos, não percebi que apertava meus punhos com raiva. Foi Sheyla quem me trouxe de volta à realidade, suas mãos sobre meus ombros me acalmando.


— Espere, Yami. Aquela é a irmã Meríacles, e como você pode ver... ela é um pouco...


— Rude? Babaca? Gorda? Ignorante? — Eu disparei, deixando a raiva fluir com cada palavra.


— Yami... por favor — Sheyla pediu, tentando mais uma vez me acalmar. — Pode ser que algumas dessas palavras... tenham alguma verdade, mas ela não é uma pessoa má.


— Isso não é ser uma pessoa má? — questionei, com um olhar crítico para Sheyla, que desviou o olhar, talvez desconfortável com a verdade nas minhas palavras. — Tá, de qualquer forma, o que foi isso tudo?


— Eu... — Pretty começou, lutando para conter as lágrimas e o choro, mantendo um sorriso forçado. — Eu sinto muito que vocês tenham visto isso.


Sheyla se aproximou de Pretty, oferecendo um abraço reconfortante.


— Não se preocupe, Pretty. A irmã Meríacles pode ser rude às vezes... — disse ela, lançando-me um olhar significativo. — Mas, o que ela pediu, você sabe do que se trata?


— As caixas, eu tenho que levá-las para a dispensa.


— Você, sozinha? — perguntei, cruzando os braços.


— Bem, sim.


— Podemos ajudar — Sheyla interveio, se afastando de Pretty com um sorriso encorajador. Ela então se voltou para mim. — Certo, Yami?


Permaneci parado por um momento, absorvendo o que acabara de acontecer. Observando Pretty recuperando sua compostura, percebi que não poderia recusar o pedido de Sheyla. No entanto, a dúvida persistia: por que eu deveria assumir o trabalho de Pretty?


— Eu só queria preparar algo para vocês — ela disse, sua voz trazendo de volta a razão de estarmos ali.


Nesse instante, meu estômago roncou novamente, arrancando risadas das duas. Esse som constrangedor me fez lembrar nosso propósito original.


— Sim, e se não terminarmos logo, não vamos ter café da manhã — concordei.


Retornamos ao hall de entrada onde as caixas requisitadas pela velha Meríacles nos aguardavam. Um suspiro me escapou ao ver a quantidade. Era impressionante pensar que Pretty tinha carregado tudo aquilo sozinha, sem ajuda, tão cedo na manhã. A visão das duas pilhas de quatro caixas cada, além de outras três maiores, intensificava a frustração.


Pretty se aproximou das caixas, preparando-se para o trabalho. Mesmo tendo chegado ao final do esforço dela, era fácil perceber o quanto ela tinha se desgastado. Seu corpo tenso, os calos nas mãos, e as lembranças da conversa da noite passada, tudo indicava o quão árduo tinha sido seu trabalho.


Refletindo sobre isso, era triste pensar que Pretty enfrentava essa realidade sozinha, trabalhando como se fosse uma escrava. Ela é forte, sem dúvida, mas ainda uma criança. Como os adultos podiam permitir que ela, aos dezesseis anos, carregasse essas caixas sozinha, sem proteção adequada?


Sheyla se aproximou de uma caixa e a ergueu sem dificuldade, embora surpresa com o peso.


— Você estava carregando isso sozinha? — perguntou, avaliando a caixa.


— Sim, eu estava — respondeu Pretty, tentando parecer indiferente. — Não é tão pesado quanto parece.


— Mesmo assim, você não deveria estar fazendo isso sozinha — disse Sheyla, preocupada.


Enquanto elas conversavam, me aproximei de outra caixa e a levantei sem esforço, consciente de que minha força, mesmo no corpo de uma garota, era extraordinária devido ao Sistema. Eu poderia facilmente carregar todas as caixas de uma vez, se não fosse pelo meu tamanho reduzido.


— Você pode até ter razão... — Pretty começou a falar, mas parou ao me ver. — Pelas Deusas, Yami... você pode levar as... menores?


Eu estava segurando duas caixas em cada ombro, sem perceber o quanto aquilo parecia fora do comum.


— Merda. Me desculpe — disse, percebendo meu erro.


— Minha anjinho é realmente forte, né? — comentou Pretty.


— Ah... esquece que viu isso... — tentei disfarçar.


— Errr. Bem, a Yami é um pouco “diferente” — tentou explicar Sheyla.


— Vocês duas não precisam falar assim. Além disso, Yami já me explicou que é “diferente” — disse Pretty.


— Já? — Sheyla me olhou surpresa. — Quando? — perguntou a Pretty.


— Durante o banho, é claro.


— Vocês duas... — Sheyla pareceu confusa. Mas, ao notar a presença de outras irmãs, rapidamente tentou agir normalmente.


Esse momento revelou não apenas a força inesperada que eu possuía, mas também a cumplicidade que estava se formando entre nós.


As irmãs do orfanato nos lançaram olhares cheios de cochichos e suspeitas, agora não apenas direcionados a mim, mas também a Sheyla e Pretty. A curiosidade sobre o motivo desses olhares me atingiu, mas decidi não me aprofundar nisso. Não era o momento para me envolver ainda mais nas complexidades da vida delas.


— Então, resumindo... Eu até poderia carregar todas as caixas, e quem dera pudesse fazer de uma única vez — sugeri, pensando em formas de otimizar o processo.


— Você não precisa fazer isso... — começou Pretty.


— Deixa eu terminar — interrompi. — Se vocês conseguirem carregar uma grande e uma pequena, eu posso levar as outras.


Sheyla refletiu por um instante e então questionou sobre o método que eu usaria para carregar as caixas. Expliquei que, com a ajuda de um lençol ou coberta resistente, poderia criar um tipo de trenó para deslizar as caixas pelo chão liso. Pretty se mostrou entusiasmada com a ideia e se prontificou a conseguir o material necessário.


Enquanto Pretty saía para buscar o que precisávamos, Sheyla aproximou-se. Ela parecia ter algo a dizer, mas hesitava, talvez esperando que eu perguntasse diretamente.


— Olhe, Sheyla. Eu não me importo em saber o que aconteceu contigo nesse orfanato ou com a Pretty. E pode dizer que nem quero. Mas, se você achar que essa informação é de extrema importância, então eu te ouvirei — disse, oferecendo-lhe a oportunidade de compartilhar o que achasse necessário.


— Obrigada, Yami... agradeço que você pense assim, e como forma de respeito, assim que tudo estiver mais calmo e tranquilo, eu irei explicar tudo, eu prometo — respondeu Sheyla, mantendo um certo mistério.


Essa atitude me deixou um pouco frustrado. Parecia que todo esse mundo conspirava contra meu jeito direto de pensar. No entanto, apenas acenei com a cabeça, aceitando sua decisão, e aguardei o retorno de Pretty.


Não demorou muito para Pretty voltar com uma lona de couro de animal. Era rústica, mas suficientemente resistente para o que precisávamos. Colocamos todas as caixas sobre a lona, como eu havia sugerido, e assim concluímos o trabalho em uma única viagem. Embora fosse uma tarefa árdua, minha força elevada transformou o que poderia ser um trabalho pesado em algo comparável a mover brinquedos de um quarto para outro.


Assim que finalizamos a tarefa de acomodar as caixas na dispensa, Pretty deixou escapar um suspiro de alívio, seguido por um riso leve, claramente rememorando o episódio hilário do ronco estrondoso do meu estômago.


— Bem, agora é a minha vez de cumprir o trato, não é? O que gostariam que eu preparasse para vocês? — ela indagou, com um brilho de entusiasmo nos olhos.


— Você não vai comer? — perguntei, preocupado.


— Já comi mais cedo, não se preocupe — respondeu Pretty, já se movimentando para pegar os utensílios de cozinha e vasculhando as caixas que acabáramos de arrumar. — E quanto a rabanetes, vocês gostam?


— Rabanetes? — repeti, surpreso. Em minha mente, questionava como algo tão familiar do meu mundo poderia existir aqui. Mas então lembrei da [Tradução Mágica] e deixei a dúvida de lado. — Por mim, tudo bem. O que você planeja fazer?


Pretty contemplou o conteúdo das caixas e mencionou algo sobre pães duros que restaram, ponderando se as crianças os rejeitariam. Não pude deixar de me questionar se aquilo era uma indireta para mim, mas rapidamente afastei a ideia. Afinal, o pão de ontem estava delicioso.


— Seria ótimo — concordei, entusiasmado com a ideia.


— Ótimo, então! Vou preparar uma sopa de rabanete com pão duro, e... — Pretty esticou-se sobre a pia, abrindo um armário com certa dificuldade, e retirou de lá algo que chamou a minha atenção. — Vai ser com gordura de Gideon.


— Gordura de quê? — questionei, confuso.


— Nunca viu um Gideon? — Pretty parecia pensativa por um momento, antes de se recordar da minha origem. — Ah, desculpe, Yami. Claro que não tem Gideons na Floresta Negra.


— Mas o que é isso afinal? — sussurrei para Sheyla, mas ela apenas sorriu, sem responder diretamente.


— Quando eu mostrar a cidade para você, Yami, entenderá. É um animal que criamos aqui, que nos fornece carne, leite e couro — explicou Pretty.


— Tipo uma vaca? — arrisquei.


— Sim, algo assim — ela confirmou, e eu suspirei, me perguntando se realmente havia mencionado "vaca" ou se era uma tradução da [Tradução Mágica].


Enquanto Pretty preparava a sopa, ela se cortou com um rabanete. Mas aquele vegetal não se parecia em nada com os rabanetes do meu mundo. Era mais como um abacaxi espinhoso e vermelho. Preferi não questionar mais e simplesmente aceitei a situação.


No meio do preparo, irmã Meríacles entrou na cozinha, claramente pronta para desferir suas críticas e insultos costumeiros. Mas, antes que pudesse avançar, Pretty a interrompeu com alegria:


— Todas as caixas estão na dispensa, irmã Meríacles.


A mulher, visivelmente indignada, dirigiu-se à dispensa para verificar. Ao constatar a veracidade das palavras de Pretty, soltou um comentário ríspido:


— Estou vendo, sua pirralha. Ou por acaso achas que sou cega?


Em seguida, Meríacles farejou o ar, como se buscasse algum motivo para mais críticas, e aproximou-se do fogão para inspecionar a panela que Pretty preparava. Sua expressão deixava transparecer uma busca incessante por falhas, uma característica que parecia dominar seu comportamento.


— O que é isso? Quem lhe deu permissão para... Isso é... gordura de Gideon? — inquiriu irmã Meríacles com uma expressão de surpresa misturada com desaprovação.


— Sim, o pouco que restou de antes — respondeu Pretty, mantendo uma calma impressionante.


— E a água, quanto você colocou?


— Três copos e meio, como a senhora sugeriu.


— Não se esqueça do Capim de Hiun, sua inútil — ordenou Meríacles com um tom de voz severo.


— Sim, irmã Meríacles — disse Pretty, indo até uma estante cheia de potes, pegou um deles e adicionou o tempero à panela.


Observava a cena, perplexo. A velha gritava e xingava, mas Pretty parecia obedecer cada comando com uma seriedade que quase beirava a tristeza. Eu não conseguia entender como ela conseguia manter a compostura.


Enquanto me perdia em pensamentos, irmã Meríacles voltou sua atenção para mim. Sua figura corpulenta e imponente era quase intimidadora, com um pescoço quase inexistente que lhe conferia um ar ainda mais imponente. Questionava-me internamente como alguém em um orfanato poderia ter alcançado tal “status” físico.


— Quem é esta criança? Não me lembro dela entre os outros — perguntou com uma expressão de curiosidade.


Antes que Pretty pudesse responder, Sheyla interveio, colocando-se ao meu lado.


— Esta é Yami, irmã Meríacles. Conversei com a grande-madre Sonya, e ela concordou em acolhê-la aqui — explicou Sheyla, assumindo uma postura protetora ao meu lado.


— Um meio-demônio? — Meríacles me olhou de cima a baixo, mas, para minha surpresa, sem mostrar repulsa ou medo, apenas uma curiosidade desarmada.


Antes que pudesse reagir, ela se aproximou rapidamente e agarrou meus chifres, me deixando sem espaço para respirar.


— Me solte! — gritei, tentando me libertar de seu aperto.


— Ah, Yami! — Sheyla tentou intervir, mas Meríacles a ignorou, continuando a me examinar.


— Um meio-demônio, hein? Parece um Bode Montanhês — comentou ela, ainda segurando meus chifres.


Pretty observava a cena, sem saber se sorria ou se mantinha focada na cozinha.


— Eu disse para me soltar! — gritei novamente, minha paciência se esgotando rapidamente.


Meríacles cambaleou para trás, quase caindo, mas conseguiu se reequilibrar. Sheyla parecia aterrorizada, temendo que minha raiva pudesse levar a consequências desastrosas.


— Você... — começou Meríacles, mas, para minha total surpresa, ela começou a rir. — Isso mesmo, garota! Gosto de gente com fibra.


Fiquei sem palavras diante dessa reação inesperada. Apesar de quase ter caído, Meríacles apenas se recompôs, arrumando seu hábito e tossindo um pouco antes de se aproximar novamente de mim, como se nada tivesse acontecido.


Fiquei imediatamente na defensiva após o inesperado encontro com irmã Meríacles. Embora não quisesse arruinar meu disfarce de “órfã miserável” ou causar estragos na cidade por perder o controle, a surpresa estampada nos rostos de Sheyla e Pretty me fez permanecer em silêncio.


— Vamos lá, garota. O gato comeu sua língua? — provocou irmã Meríacles, com um sorriso zombeteiro.


— Eu só... peço que você não faça isso novamente — falei, tentando redirecionar a situação a nosso favor, dentro dos planos já estabelecidos. — Isso machuca.


Era claro que não me machucava, mas não podia me dar ao luxo de desencadear uma cena de violência ou arruinar todos os nossos esforços até então. Irmã Meríacles, apesar de seu comportamento intimidador, parecia ter uma autoridade na cozinha e um papel importante no ensinamento de Pretty.


Sistema: [Você deseja realizar Teste Intimidação?] [Sim][Não].


Absolutamente não! Ignorei a sugestão do sistema.


— Wow. E pensar que eu veria uma criança com “sangue nos olhos” — comentou Meríacles, claramente impressionada.


Confuso com a expressão "sangue nos olhos", virei meu rosto, tentando suavizar a tensão. Parecia que o sistema havia intervindo na hora errada, e eu não queria dar a impressão de estar intimidando alguém.


— Me desculpe — murmurei.


— Não tem por que se desculpar, pirralha — respondeu ela, despreocupada.


Sheyla, visivelmente abalada e à beira de um colapso, rapidamente se colocou entre mim e irmã Meríacles.


— Irmã Meríacles! Por favor, não faça isso novamente — pediu ela.


Meríacles, indiferente ao medo de Sheyla, apenas sinalizou para que ela se afastasse e se inclinou para ficar mais próxima de mim.


— Gostei de você, pirralha! Se está aqui, é bom não ser como os outros bebês chorões — disse, com uma sinceridade rústica.


— Isso é um pouco cruel, irmã — contestei.


— Cruel? Cruel é fingir que o mundo não é injusto e perigoso. Na minha época até mesmo as crianças sabiam de algo ou mostravam força de vontade — ela me encarou firmemente. — Pretty está preparando um verdadeiro ensopado de rabanete. É bom você comer tudo, entendeu, pirralha?


— Sim, esse era o plano desde o início — respondi secamente.


Ela sorriu e gargalhou com minha resposta direta. Em seguida, voltou sua atenção para o cesto de pães.


— Pretty, você pode levar isso para fora — ordenou.


— Eu vou dar para a Yami, irmã Meríacles — interveio Pretty.


— Hmmm? Eu sei que ela é um meio-demônio... — murmurou Meríacles, levantando uma sobrancelha.


— A Yami adorou esse pão. Certo, Yami? — insistiu Pretty.


Sim, eu gostei do sabor e da textura — concordei.


— Então estará bem servida. Ouvi dizer que a padaria vai nos enviar mais pão esta tarde. As crianças vão "amar" essa notícia — disse Meríacles, com uma pitada de sarcasmo.


Apesar de sua aparência ainda severa, irmã Meríacles parecia ter suavizado um pouco, mantendo seu jeito brusco, mas sem a mesma intensidade ameaçadora de antes.


— Bem, quando terminar aqui, venha me procurar, pirralha — instruiu irmã Meríacles a Pretty, com uma expressão severa.


— Sim, irmã — respondeu Pretty, com um aceno respeitoso.


Intrigado, não pude evitar perguntar:


— O que você quer com ela?


— Oh, vocês já são grandes amigas? De qualquer forma, preciso da força dela para ajudar a carregar algumas coisas para a cidade.


Observando a situação, era difícil não perceber que Pretty parecia estar sendo explorada novamente. Mas considerando a condição física de Meríacles, parecia razoável que ela repassasse as tarefas mais pesadas.


— Eu posso ajudar também? — ofereci.


— Yami? — Sheyla expressou surpresa.


— Você também é forte? — questionou Meríacles, avaliando-me. — Bem, não que isso vá me impressionar ou dar pontos extras comigo.


Concordei com um aceno, observando Meríacles sair da cozinha.


— O que foi isso tudo? — perguntei, ainda incrédulo com a atitude de Meríacles.


— Meríacles é... única — explicou Sheyla, parecendo desconfortável. — Ela tem um jeito muito próprio de lidar com as coisas e as pessoas.


— Isso é um jeito de dizer que ela é louca? — questionei.


Pretty riu, aliviada.


— Não, Yami. Ela é apenas... Meríacles — disse, dando de ombros. — Ela pode ser dura, mas no fundo se importa conosco.


— Se importa? Ela quase arrancou meus chifres!


— Ela só estava curiosa — garantiu Pretty. — E, de qualquer forma, você se defendeu bem. Acho que ela respeita isso.


— Isso é respeito?


Sheyla riu.


— De um jeito estranho, sim — disse ela. — Meríacles valoriza a força e a coragem. Acho que ela viu um pouco disso em você.


Suspirei, ainda tentando compreender essa mulher enigmática. Quando voltei a me sentar, Pretty já anunciava que o ensopado estava quase pronto. Ela e Sheyla prepararam os pratos e talheres, e o aroma da comida enchia o ambiente, despertando meu apetite.


— Como alguém que “não precisa se alimentar” pode estar assim? — comentei.


De repente, Sys surgiu de baixo da mesa, rolando como uma bola.


— Simples, Yami, você agora é um meio-demônio! (^▽^) — disse Sys, parecendo animado.


— Mas que diabos, Sys! Não me assuste assim — repreendi.


— Me desculpe, Yami. (。◕‿◕。)


— Por que apareceu de repente e sem avisar?


— É que você fez uma pergunta... . (。•́︿•̀。)


— Era só um comentário, ou melhor, um pensamento — esclareci.


Sys se levantou e se posicionou à nossa altura visual.


— Ah, o animal de estimação da Yami — comentou Pretty, surpresa.


— Animal? — Sheyla olhou confusa e, ao perceber Sys, exclamou: — Oh, Sys.


Sys respondeu às duas com suas expressões características.


— Sys, você estava aqui o tempo todo? — perguntou Sheyla, ainda confusa.


— Sim, mas invisível para vocês. Yami me pediu para ser visível (。◕‿◕。)


— Quando foi que pedi isso? — questionei, surpreso com a situação inusitada.


— Entendi — assentiu Sheyla, mesmo que a aparição súbita de Sys deixasse algumas dúvidas no ar.


Respirei fundo e virei minha atenção para a pequena esfera metálica.


— Ignorando o fato de que ninguém te chamou, o que queria, Sys? — murmurei, tentando manter o tom baixo.


— Desculpe, Yami. Não pretendia causar incômodo . (。•́︿•̀。) — Sys respondeu, com uma expressão que parecia de arrependimento.


— Apesar de ser um pouco inusitado, ele é adorável — comentou Pretty, sorrindo enquanto terminava de preparar a refeição para mim e Sheyla.


— Certamente um familiar bem único — acrescentou Sheyla, parecendo menos surpresa do que eu esperava.


Fiquei intrigado com a calma das duas, que pareciam encantadas pela "fofura" de Sys, apesar de sua aparição abrupta. Eu, por outro lado, ainda estava tentando compreender como Sys, a personificação do Sistema, podia surgir assim, do nada.


Assim que recebi meu prato de comida, mergulhei nele vorazmente, esquecendo-me de tudo ao meu redor, entregando-me completamente ao prazer de comer.


— Como isso pode ser tão delicioso? — perguntava a mim mesmo, saboreando cada mordida do pão e cada gole da sopa.


O "rabanete" não parecia uma escolha errada agora que eu sentia o seu sabor autêntico, mas ainda estava perplexo sobre como o Sistema conseguia fazer traduções tão precisas.


— Fico tão feliz em te ver comer com tanto apetite, Yami — disse Pretty, visivelmente satisfeita com minha reação.


Sheyla tentou mastigar o pão duro, mas logo desistiu e empurrou o prato na minha direção, com um sorriso resignado.


— Acho que esse é o meu limite — disse ela.


— Se não quer, pode me passar — respondi, continuando a devorar a comida. — E o que vocês costumam comer no café da manhã?


— Termine de comer primeiro, Yami — sugeriu Sheyla, gentilmente.


Engoli o que estava mastigando e tomei um grande gole da sopa, como se estivesse bebendo de uma caneca.


— Desculpa. O que eu queria perguntar é, o que vocês normalmente comem no café da manhã?


— No orfanato, a comida é bem básica — começou Pretty. — Geralmente temos pão, sopa e às vezes algum tipo de carne ou peixe. Frutas e legumes também são comuns, mas não tanto quanto gostaríamos.


— E na minha casa — continuou Sheyla, parecendo pensativa. — A comida é mais variada. Temos acesso a mais ingredientes, então a dieta é mais diversificada. Mas, no geral, não é muito diferente do que comemos aqui no orfanato.


— Entendo — murmurei, refletindo sobre as diferenças alimentares entre este mundo e o meu anterior. — E vocês gostam da comida daqui?


— É... comestível — respondeu Pretty, com um encolher de ombros. — Não é a melhor do mundo, mas nos mantém saudáveis.


— Então é comum comer pão, certo?


— Sim, mas muitas vezes não temos o luxo de assar pães frescos diariamente. Então, acabamos consumindo o mesmo pão ao longo de vários dias, mesmo quando endurece — explicou Pretty. — E apesar de nos alimentar, como pode ver, nem sempre é muito saboroso.


— Ao menos para nós — brincou Sheyla, piscando para mim enquanto pegava outro pão duro.


— E sobre isso... quer dizer, esses “rabanetes”? — questionei, apontando para o legume em questão.


— São conhecidos como Rabanetes do Sigilo — explicou Sheyla. — São um pouco raros e difíceis de cultivar, mas trazem muitos nutrientes e possuem propriedades únicas.


— Propriedades interessantes? — indaguei, intrigado.


— Exato — assentiu Sheyla. — Quando preparados de uma maneira específica, podem suprimir habilidades mágicas ou até mesmo neutralizá-las completamente. São também usados em rituais e poções para proteção contra possessões e entidades sobrenaturais.


— Uau, isso é realmente fascinante — murmurei, impressionado. Nunca imaginei que um simples vegetal pudesse ter tantas aplicações e propriedades místicas.


— É por isso que são tão valorizados — interveio Pretty. — Mas são complicados de cultivar e exigem cuidados especiais, então não os temos sempre à disposição.


— Mas por que vocês receberiam algo assim? — perguntei, ainda confuso. — Não parece algo comum para um orfanato ter...


— Na verdade... — começou Pretty, parecendo desconfortável. — Não sabemos ao certo a origem. A madre Graça apenas mencionou que era uma doação.


— Uma doação? — repeti, surpreso. — Isso é, de fato, estranho.


— Um pouco, sim — concordou Sheyla. — Mas, no final das contas, é algo que ajuda a alimentar as crianças aqui.


Acenei com a cabeça, compreendendo a situação. Ainda que estranho, o importante era que a doação beneficiava o orfanato.


Enquanto terminava o último pedaço de pão e a sopa, minha mente vagava pelas peculiaridades da situação. Primeiramente, as madres. Elas possuíam uma força notável e títulos que normalmente estariam associados a guerreiros ou aventureiros de alto escalão. Por que estariam em um orfanato? E por que aparentavam ser tão jovens, considerando que seus títulos sugeriam uma idade mais avançada?


Além disso, havia a questão da doação dos Rabanetes do Sigilo, algo inusitado e valioso para um orfanato. Quem faria uma doação tão peculiar e por que?


Por fim, a relação entre Sheyla e Pretty me deixava pensativo. A confiança mútua entre uma cavaleira comandante e uma freira de orfanato era incomum, especialmente diante do olhar desaprovador das outras irmãs. Qual era o motivo por trás disso?


Não tinha respostas para essas perguntas, mas sentia que algo significativo estava acontecendo, algo no qual eu estava envolvido, de alguma forma.


Terminei minha refeição e observei Sheyla e Pretty conversando animadamente, rindo juntas. Apesar das estranhezas ao meu redor, eu estava contente.



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