Volume 2
Capítulo 82: ÀS MARGENS DE UMA LOUCURA
Kai desceu a todo vapor, irradiando uma aura que nem ele mesmo sentiu antes.
Algo dentro dele parecia ter se quebrado. Talvez o peso de tanta coisa finalmente tenha se excedido.
Tanta coisa acumulada, que precisava ser posta para fora, e ele só empurrando pro fundo do baú, dizendo a si mesmo que era forte, que iria superar. E superou. Quer dizer, achou que superou.
Mas ninguém aguentaria tanta pressão por tanto tempo. O peso de decisões e consequências. A contrição, o esmagador desejo de mudar e nada ser realmente realizado.
Sua cabeça era uma panela de pressão prestes a explodir, com pensamentos e emoções se acumulando em um caos incontável.
E quando algo se partiu dentro dele, tudo ficou claro, como se Kai pudesse agora enxergar os fios que o controlavam.
Ele viu o cerne daquilo tudo, enxergou seu erro, sua inocência. Logo ele.
Com esse partir, o quebrar fragmentado de uma mente conturbada, essa energia pareceu ser diretamente perturbada.
E, com isso, Kai notou que sua habilidade que despertava com sua falta de visão, foi ativada agora. Ele tinha uma grande percepção do seu redor. Mas era algo... errado.
Sem contar que sua energia era revolta e causava inquietação até mesmo nele, o núcleo daquela questão. Havia agora apenas um fino espelho d'água que separava a mente de Kai entre a lucidez e a loucura. O que seria iria ruir esse divisor? O que seria capaz de tirar Kai Stone do seu eu, sério, concentrado, focado e inabalável?
Não havia uma resposta.
Meio a esse mar de turbulência, Kai pareceu se teletransportar para alguns metros acima de um sujeito usando uma túnica longa, de mangas largas e um corte retangular. Era amarrado na cintura com uma longa faixa cinza.
Kai observou bem seu rosto, ciente de que nunca mais esqueceria. Era um sujeito careca, de pele cinza, quase feito porcelana, exceto por algumas comichões ao redor da cabeça e do rosto e da bolsa flácida abaixo dos olhos e das rugas. Um atoniano velho.
"Então ele é o tal sacerdote?" Pensou Kai.
Ele se moveu feito facho de luz. O suposto sacerdote sequer reagiu ao ataque. Permaneceu parado com as mãos enfiadas uma na manga da outra.
Muito relaxado para o gosto de Kai. Quase como se soubesse que...
Um sujeito conhecido se colocou entre Kai e o outro. Não era conhecido por sua aparência, mas pela sua aura.
O sujeito era grande de ombros largos e peitoral largo. Usava uma grande armadura de aço negro e esguio que cobria todo seu corpo sem deixar brechas. Parecia leve, pela rapidez com que ele se moveu.
Sobre sua cabeça havia um capacete redondo com frestas verticais escuras. Havia ainda um capuz negro sobre o capacete.
Dos seus ombros pendia uma enorme capa negra com as pontas em trapos.
Era Gh’varok. Ele levou a mão às costas e retirou uma arma semelhante à uma lança, com uma lâmina curva de um fio, semelhante à uma cimitarra, era grossa e truncada, sem protetor de mão.
Kai ergueu a sobrancelha.
— Um bisentō! E a maça?
Gh'varok ignorou, se perguntando como o rapaz parecia saber sobre a mudança de armas. De repente lhe ocorreu que aquele pequeno embate foi o suficiente para Kai saber o bastante. Um arrepio lhe percorreu a espinha.
— Pare! — Gritou o Guardião.
Kai franziu a testa. Da primeira vez que se enfrentaram, foi um bom embate. Ele sentia que desta vez seria diferente. E foi.
O punho dele foi envolto por uma fina camada de chi e ele se preparou para o impacto.
Kai desceu o punho sobre o Guardião. Este girou o cabo do bisentō e uma fina camada de gás envolveu a lâmina.
Um sorriso cresceu no rosto de Kai.
Se não falhava sua memória – e ela não falhava, o maldito tinha uma outra habilidade. Então quer dizer que esse desgraçado tinha duas? E não eram pouca coisa...
— E aí rei do lixão! Quer dizer que tem um bom truque aí... teria vindo a calhar contra Kesel. Pensou nisso? — O tom de Kai foi bem insidioso. — Seria interessante saber que você podia fazer algo além de controlar... lixo.
Gh’varok bradou.
— Não que seja de sua conta, mas há uma razão básica: não recebi ordem para usufruir de meu verdadeiro sortilégio, principalmente contra um Ministro. Agora, no entanto, a situação é outra... peço que se afaste e se acalme.
"Receber ordem? Que é que esse bastardo está querendo dizer? Existe algo como cartas mágicas aqui?" Pensou Kai, um pouco irritado.
De fato, alguém que possuía uma bela habilidade como essa, teria sido bastante útil. Se Kai estivesse certo, se tratava de uma manipulação física... plasma. Ele conseguia sentir a baixa densidade e a quantidade de íons positivos e elétrons.
Ele não conseguia explicar em palavras... ele só sentia, quase como se estivesse atraído por isso. Como se uma parte inconsciente de sua mente estivesse sendo... magnetizada.
Sua intuição não falhou.
O impacto veio e finos galhos de um fogo azul elétrico fluiu para um lado, e uma aura densamente roxa e visível pro outro.
Os pés do guardião afundaram no chão, enviando rachaduras enormes ao redor do pátio. Seus braços tremeram sob o punho de Kai. Ele ergueu o rosto, atordoado.
Estava se perguntando de onde vinha tanta força. Kai tinha a gravidade contra ele. Mas ainda assim, algo fortaleceu seu punho, e uma densa aura vazou, levantando poeira de zunido alto.
Isso durou 15 segundos.
Kai e Gh’varok afastaram a lâmina e punho um do outro, e trouxeram para si, pegando impulso de novo.
O novo golpe durou menos ainda. Gh’varok sequer foi capaz de aguentar o segundo impacto. Seus joelhos cederam e ele foi afundado no chão criando uma enorme cratera.
Seu grito se tornou alto e sangue escapou por entre as frestas do capacete.
Kai pousou. Seu chi mal foi gasto. O que mudou? Ele não sentia que tinha obtido algum tipo de nova compreensão, nem ganhado um novo poder...
Ou teria? Um sentimento ruim lhe envolveu. Mesmo que estivesse prestes a sucumbir mentalmente, Kai sabia reconhecer o perigo. E nada que vem fácil é de graça.
Esse poder todo... Kai se arrepiava só de pensar no que teria que ceder. No que já estava sendo cedido.
Ele avançou.
— Protejam o Patriarca! — Despontou uma voz.
"Patriarca...? Não é o tal sacerdote?"
Antes de Kai finalmente se aproximar, outro sujeito se interpôs.
"Maldição! Quantos mais vão surgir?" Ele gritou mentalmente.
Kai esticou a mão para a cratera e sorriu. Havia um truque muito bom que ele aprendera em Tir'tegeirian.
Lá, quase todas as armas e objetos eram projetados com runas intrincadas. Quase tudo no mundo era, na verdade. Como ele aprendeu sobre as runas e aprendeu a lê-las, descobriu que bastava dar um comando mental utilizando a runa de núcleo, e elas eram atraídas para ele feito imã.
Mas Kai foi além e criou outra forma.
O bisentō voou até sua mão espalmada, a poucos segundos dele se chocar com o outro sujeito.
Ler uma runa era difícil e demandava tempo, por isso ler somente a runa de núcleo era mais eficaz, mas também exigia grande habilidade de leitura rúnica, conhecer seus traços e tudo o mais.
Fazer isso, isto é, ler uma runa durante uma batalha era quase suicida. Porque era necessário concentração e o inimigo nunca esperaria pelo outro. Qualquer brecha significava vitória. Morte.
Mas Kai era insano, tão insano que era capaz de criar novos estilos durante uma batalha; manejar venenos dentro de si no calor do momento; ler runas no calor do momento enquanto lutava para não perder a cabeça...
Kai não era um sujeito comum, e muitos confundem isso com bravata. Mas o que muitos consideram impossível, Kai só via como um pequeno obstáculo a ser superado.
Pela primeira vez neste último dia ele se sentiu feliz consigo mesmo. Pelo menos isso era seu. Nenhum Murphy era tão descuidado assim. Ninguém no mundo era.
Durante os 25 segundos que durou o seu embate com Gh’varok, ele conseguiu ler a lâmina, procurar por runas, descobrir que elas não existiam e... praticar sua nova descoberta. E ela se mostrou frutífera.
Kai inseriu seu chi na arma, moldando suas estruturas. Esta não era uma arma fácil... provavelmente uma Arma geniosa. Mas ele conseguiu.
Ele rapidamente envolveu o bisentō com sua energia e observou enquanto chocava com um longo odachi na mão de um sujeito alto de ombros largos e corpo esguio.
Desta vez os dois foram jogados para trás e uma enorme aura envolveu o pátio largo, criando sulcos nas paredes. Lâminas de ar serrilhadas no teto acima fazendo densos cones de rocha sedimentar cair e estilhaçar e criar crateras abaixo.