Volume 1
Capítulo 7: INQUILINA RUDE
A nova colega de Kai era tão esquisita quanto seu antigo, Hivchatt.
Mas não em sua aparência; apesar de ainda o ser. Sua pele conferia uma tonalidade roxo-claro. Suas írises eram cor de âmbar, e suas orelhas eram pontudas e achatadas. Fora isso, tinha a aparência de uma humana qualquer.
Exceto pela pouca roupa que usava: uma tanga e uma espécie de pano sobre os peitos. Seus cabelos eram marrons e ondulados, anuviando o ar de selvageria. Surpreendentemente, ela não fedia, tinha um certo cheiro de... cacau e lavanda. Kai ficou surpreso por conseguir distinguir tão bem.
Ela lançava, de vez em quando, um olhar de rápido desagrado para o rapaz. Ficava andando de lá para cá, balbuciando vez ou outra aquilo que Kai tanto ouviu horas atrás.
Quando as cabeças de rato caiam – óbvio que era para sua colega –, ela guinchava em direção ao “alimento” depois dava um chute, fazendo a cabeça cair para fora.
Na primeira vez, Kai soltou uma risada, lembrando que fez exatamente isso há alguns dias. Depois, no entanto, que ela guinchou para ele e ameaçou ataca-lo, ficou decidido a nunca mais falar com ela. Nem conversar tentou: ela era muito selvagem. Ficava atrepada nas grades, observando qualquer que fosse o movimento do lugar de onde as criaturas vinham.
Kai já estava cansado de esperar por respostas, se continuasse daquele jeito, morreria. Tinha que dar um jeito de sair dali. Não tendo qualquer opção senão essa, se virou para sua colega de quarto.
– Que são essas criaturas? – ele franziu a testa quando sua voz saiu. Foi um rouco indefinido; muito tempo sem falar poderia causar isso.
A mulher podia entender, como Kai bem percebeu; mas permaneceu calada. Continuou com o que estava fazendo: observando por entre as grades.
– Preciso ter ideia do que são essas... coisas... tenho que sair daqui... lutar, mesmo que...
Isso chamou a atenção dela, que se virou e franziu o cenho, muito irritada. Ao falar, Kai observou com atenção seus dentes brancos e os caninos afiados.
– Lutar? – seu sotaque era puxado no R. Um som parecido com risada saiu de sua boca. – Acha que pode lutar contra essas coisas, curoh’nekedoh?
A testa de Kai franziu quando ouviu do que foi chamado.
– Isso – apontou para ela. – Que é isso de cura taleya e cura nacado? É isso que eles são?
Ela riu ao som desengonçado da voz de Kai; ele pareceu uma criança aprendendo a andar.
– Os Curoh’tuleya não são uma espécie normal, saru’mono. Não se luta e sai vivo, não quando não se usa manti.
Essa palavra ele compreendeu. Era mana, pensou. Captou pelo olhar de desprezo que ela lhe jogou. Ela se afastou um pouco mais, a cabeça entre as grades.
– Esses Curoh’tuleya são uma raça enigmática, maldosa. Eles fazem prisioneiros e nos dão duas escolhas: coma tudo que eles lhes mandarem ou não coma nada. Se comer, morre de um modo... – ela parou, como se escolhesse a palavra certa. – horrível. Esse método é mal visto aos olhos dessa raça.
Kai baixou a cabeça, um pesar escancarado. No fim, Hivchatt morreu. Ficou pensando como teriam sido seus últimos minutos? Nunca iria conseguir voltar ao normal.
– E o que acontece aos que não comem? – indagou.
– São levados à uma arena. Esse mito que eles cultuam de que uma morte honrosa se deve durante uma luta. E aqueles que não aceitam seus tributos significa que são fortes, corajosos. Ao ser levado para a arena, tem que morrer de forma digna, senão, volta para a gaiola e tenta até morrer.
Kai fitou algum ponto fora da gaiola. Estava em êxtase. Como raios enfrentaria uma raça de brutamontes que queria sua morte? Nem mana conseguia usar. O primeiro embate já foi o suficiente para que ele pudesse reconhecer a força de seu algoz.
Não estava nem um pouco compelido a ceder esse cárcere seguido de tortura. Ia dar um jeito de sair dali, custe o que custasse.
Então, em resposta aos seus pensamentos, a gaiola começou a balançar, ambos segurando firme entre as grades, se encarando.
Quando a jaula pousou, ouve o baque surdo e a zoada que fazia ao abrir a portinhola. Uma mão negra e peluda adentrou a gaiola e foi direto em Kai, que captou um olhar penoso de sua colega. Ele soltou as grades sem nem pestanejar, uma feição séria e decidida.
Uma venda foi colocada em seu rosto. Concluiu que aquelas criaturas podiam ser tudo, menos burras. Um Curoh’tuleya de cada lado o ergueu, seus pezinhos arrastando pelo chão. O mesmo fedor entrava nas narinas dele à medida que foram avançando. Parecia que um mendigo tinha mijado, cagado e vomitado, depois repetido o processo duas vezes e dormido em cima.
Logo, chegaram num local onde uma balburdia generalizava. Ouvia gritos, muxoxos, grunhidos e guinchados. Era como uma selvageria. Riu consigo mesmo. Quando tiraram a fenda, ele abriu a boca, impressionado.
Uma enorme arena circundava o local. Haviam arquibancadas do lado direito de Kai, como num anfiteatro feitas de madeira e repletas de criaturas grandes, peludas e estranhamente... normais. Eram gorilas de quase três metros de altura.
A arena em si se abria num enorme círculo abaixo das arquibancadas e, no extremo, do lado esquerdo, o vento uivava pela beirada da arena; Kai estremeceu só de imaginar o que tinha ali.
De frente para ele, no outro lado, havia a copa de uma árvore torta para a direita e, um pouco a frente, três tronos.
Antes que ele pudesse erguer o rosto para os gorilas, foi jogado no meio da arena, rolando até ficar a poucos centímetros da borda.
A multidão foi à loucura. Olhando dali, parecia haver mais de 500 gorilas. Todos enormes, de olhos negros e rostos achatados. Haviam até filhotes que eram do tamanho de humanos normais. Todos de cores diferentes, desde o vermelho fogo até um amarelo encardido.
Então, para surpresa de Kai, uma das criaturas ergueu a mão. Ele era diferente de todos: estava sentado numa das cadeiras/tronos perto da copa da árvore. Seu pelo era branco e sujo e seus dentes afiados e amarelados. Seu olho esquerdo era riscado por uma cicatriz vertical e o olho totalmente branco. Seu peito tinha várias cicatrizes feias e distintas. Devia ser o líder.
Mas não foi o erguer do braço ou a multidão ficar irremediavelmente quieta que assustou Kai. Não. Foi o que veio a seguir.
– Mais um macaco peludo, meus filhos – a voz bradou, rouca e uníssona. – Mais um daqueles que juraram nunca mais pôr os pés em nosso território. É claro que, vez ou outra, filhotes burros daqueles mentirosos abutres caem em tentação e vêm até nosso santuário. Até mesmo aquela tribo da pele roxa sente repulsa pelo seu sangue de origem. E nada melhor do que colocar dois representantes de duas raças nojentas lado a lado, não é mesmo?
A multidão se ergueu em gritos e aplausos.
– Pé-de-cana foi rápido... – continuou. – Ah, ele foi. E tornou mais uma vez com o filho daqueles abutres pelados. À semelhança de Dedos-de-mel que pegou aquela imunda de pele roxa há alguns dias...
Ele eriçou os lábios e mostrou os dentes mais podres ainda. A multidão guinchou e uivou. Depois de três minutos, ele olhou para Kai.
– Mas ele se mostrou digno, filhos. Apesar do erro que cometeu, tem a chance de se redimir. Não comeu nossos tributos, não cedeu à tentação. Preferiu morrer a comer carniça. Ah, mas não foi diferente do amigo, foi?
De repente, uma série de tochas em varas altas se acendeu, iluminando totalmente o lugar. Kai olhou para o chão e viu que o que ele pisava não era madeira ou o que quer que tenha pensado... era feito de crânios simetricamente encaixados um no outro, cada um mais diferente do que o anterior.
Ergueu o olhar e viu que o enorme trono do macaco branco era feito de um enorme crânio cujo chifres saíam de suas têmporas. E mais: era revestido com pele de alguma coisa que já estivera viva... como se tivessem feito uma malha da pele de várias espécies que eles sequestraram e mataram.
Da ponta de um dos chifres, jazia a cabeça de Hivchatt, os olhos cinzas – antes azuis – e a língua vermelha para fora.
– Esse foi o fim daquele que se chamava Hivchatt. Um humano peculiar, devo dizer. – Ele ficou longos minutos encarando Kai. – Agora, te damos a seguinte opção...
– Kai – disse o rapaz, o olhar vago encarando o céu.
– Ah! – exclamou. – Continuam dando nomes estranhos para criaturas estranhas. A opção é a seguinte, Kai, filho dos pelados; enfrente meu filho numa batalha e morra com dignidade. Deve lutar com todas as suas forças, caso contrário, meu filho cairá em desgraça.
Ele guinchou e um sorriso amarelo apareceu. Entrementes, um gorila de pelo cinza saiu da cadeira a direita da feita de crânio. Ele era musculoso e não tinha nada muito diferente nele. Exceto que duas enormes cicatrizes perpendiculares demarcavam seu peito pelado.
Andando sobre as duas patas, bateu no peito e guinchou, a multidão indo a loucura. Finalmente desceu até a arena e assobiou. Todos se calaram; o gorila branco voltou ao seu trono.
Não tinha o que fazer; iria finalmente morrer.
Se ergueu sobre as pernas, já tinham ganhado mais força. Respirou fundo e olhou sobre o ombro para trás. Um lindo pôr do sol acompanhava as nuvens que iam se formando. Em breve as estrelas tornariam a caminhar pelo céu.
Cada fibra de seu corpo gritava, mandava-o fugir. Correr o máximo que podia. Ele fez menção de andar, mas o gorila foi mais rápido.
Deu um soco lateral alto e Kai desviou para baixo; ficou surpreso com a agilidade. Em seguida levou um tapa forte e foi arremessado pela arena, os ossos que já estavam se curando sozinhos, trincaram outra vez.
Ele rolou alguns centímetros perto da borda outra vez. Ficou de joelhos e olhou através dela. Estavam no topo de uma enorme sequoia e tudo que viu foi o breu. Uma névoa macilenta se formando. Ficou vertiginoso.
– Use manti – gritou o gorila à esquerda do branco. Devia ser Dedos-de-mel.
– Calado, essa luta é minha. – Respondeu o cinza.
Ele diminuiu o espaço e colocou Kai em pé pela gola da roupa desgastada e fedorenta. Tacou a mão em seu rosto e ele voou longe, para perto das arquibancadas. A única mana que conseguia tirar de si o manteve vivo. O rosto inchou de novo e sangue escorreu pelo nariz.
Ele arquejou e cuspiu um pouco de sangue, dentes caíram.
A multidão estarrecida gritou e xingou quando Kai se pôs de pé, com muita dificuldade. Quando ele se virou, recebeu outra pancada no rosto e apagou.
***
– Parabéns, você terá a chance de enfrentar Dedos-de-caju outra vez.
Isso foi a primeira coisa que ouviu quando abriu o olho bom. Estava deitado, cada osso do seu corpo doendo, sua cabeça latejando tanto que talvez seu crânio se abrisse e um ovo saísse e caísse fora.
Seu outro olho ardeu, inchado demais para conseguir abrir. Os ouvidos mantinham um zumbido quase imperturbável, só não mais do que a voz de sua doce colega. Ergueu o único olho para ela. Estava escorada nas grades de braços cruzados. Tinha uma feição lúgubre.
Ele se sentou, o mínimo esforço rompendo as barreiras de dor que ele sentira em toda sua vida. Cuspiu sangue e sua cabeça rodou.
– Quanto tempo? – perguntou.
– Um dia inteiro. – Ela respondeu, virando a cara. – Já vi pessoas idiotas, mesmo entre meu povo eles são muito comuns. Mas você ultrapassa esse simples rótulo. O que é engraçado, porque não consigo distinguir se isso tudo é bravata ou tolice... enfrentar um Curoh’tuleya...
– Que escolha eu tinha?
– Não sei. Poderia fugir. É maluquice os enfrentar... não consigo nem olhar seu rosto de tão feio que está.
– Sua gentileza me motiva – Kai disse, estridente. – Mas seria melhor se calasse a porra da sua boca.
Ela tremeu sob a densa aura que emanou e se esvaiu rapidamente. Olhou para Kai e se ajoelhou.
Esticou um braço para ele e desviou o olhar. Na palma da mão, havia uma planta com um cheiro forte e de detalhes achatados, igual às orelhas dela.
– Pegue, é agrião. Curará seus ossos mais rápido do que imagina. Vai ajudar a aguentar as dores também. Mastigue e verá o resultado.
Entredentes, Kai pegou a planta da mão da moça, estranhando a mudança súbita de tratamento. Botou na boca e uma ardência a inundou, como se tivesse comendo algo picante. Logo a planta fez efeito.
Ele escorou nas grades, fechando o olho. Todo seu corpo doía, sem exceção.
– Por que não usou manti? – ela indagou.
Kai abriu o olho e viu uma dúvida genuína no rosto daquela moça. De repente, ela aparentou ser mais nova do que era. Como será que foi parar ali?
Ele respirou fundo, fazendo força para falar.
– Devo supor que manti seja mana...?
Ela nem concordou nem negou.
– Mais ou menos. Esqueço que os c... – lançou um olhar cauteloso a Kai. – humanos usam a manti para meios secundários... como chamam mesmo?
– Magia.
– Sim. Manti é energia, entende? Bem como sua mana – ela ficou calada então abriu a boca: – Então... por quê?
– Não tenho núcleo – foi o que disse.
Aguardou um minuto para ver sua reação. Ela rapidamente olhou para suas costelas e soltou um Ah! entristecido.
Ele fechou os olhos outra vez e, desejando que tudo isso acabasse logo, adormeceu.