Volume 1
Capítulo 5: A FLORESTA DE BULOGG
Kai nunca teve muito com quem contar em Neve Sempiterna. Foi criado desde o nascimento por Siobhan Murphy, o antigo lorde da cidade.
Em seu crescimento, os únicos amigos que fez foram Gunter Dito e Ardara Murphy – a contragosto da mãe –; terceira filha de Enoryt Murphy, que frequentava a mesma escola monástica que ele.
Lá, aprendiam sobre os mitos e deuses dos homens, uma educação obrigatória para todo o território humano que, segundo os próprios estudos, era dividido em dez reinos, sendo quatro deles um império regido por um único homem. Algüros era apenas um dentre os cinco que não se curvaram. Os chamados povos livres.
Estudou na escola monástica até seus 12 anos, que era a idade em que as crianças normalmente tinham de escolher seus futuros, o que queriam ser ao crescer. Surpreendendo um total de zero pessoas, todas as crianças queriam ser magas, mas nem todas realmente tinham capacidade para tal.
Então alguns seguiam rumos diferentes: política e economia. O poder do homem, no fim, se resumia a isso. Desde um barzinho até o transporte de cargas entre cidades. Tudo era movido por politicagem, tudo. Até mesmo um papelzinho que permitia o uso de magia era necessário muita política.
Não, Kai não queria esse ramo. Queria mesmo – em parte porque seu tutor sempre o encaminhou para isso – era ser um mago. Alcançar o topo, Regente Arcano. Afinal, este título era mais do que um papel de aprovação. Ele era responsável por dizer o nível de poder de todos. Desde vagabundos que entravam para o livro de medidas do Instituto até reis velhos que já não atuavam mais.
Ele imaginava-se entre os grandes; isso pareceu real quando descobriu que era capaz de manipular mana, uma magia tão forte e ainda assim misteriosa.
Logo viu olhares invejosos e desgostosos se voltarem para ele: como podia um garoto sem linhagem conhecida, um bastardo até onde sabiam e criado sob a asa de um velho lorde que nunca teve filhos, deter tanto poder?
Mais do que nunca, esteve sozinho quando se deu conta de que o velho Shiv se aposentou e se mandou para a Capital Azul, deixando apenas uma carta de despedida. E ficou zangado; amargurado. Tinha apenas Ardara e Gunter. Viu que Enoryt se aproximou dele, mas nunca teve muito contato com o homem, sempre o achou arrogante. E essa ideia se intensificou quando ele virou o Lorde da cidade.
Foi desprezado, com certeza. Mas mostrou, durante os quatro anos que esteve na academia preparatória de magia que era capaz. Então teria de ficar um ano parado, terminara a academia de magia aos 16, era mais novo que todos os outros.
Os magos prestavam exame para licença de mago aos 18; viu que a distância entre ele e os amigos poderia aumentar. Em poucos meses Gunter completaria sua maioridade; Ardara teria um ano ainda. E ele teria de esperar mais um pouco. Mas não ficaria parado não.
Colocou em prática o que aprendeu com Siobhan: teve tanto êxito quanto poderia. Se aperfeiçoou, fez trabalhos para seu lorde. Cavou uma vaga no seu futuro. Viu sua melhor amiga ir embora, treinar mais, se aperfeiçoar mais. Gunter também se foi, e ele estava sozinho outra vez.
A distância ficou ainda maior quando perdeu seu núcleo. Quando notou que não conseguia nem juntar mana na palma da mão. Seu futuro lhe foi tirado, e não culpava ninguém que não ele mesmo. Mas tudo se iluminou e, como antes, iria superar isso também.
Nem que pra isso tivesse que fazer na marra. Viu como aquele mercenário era forte mesmo sem uso de magia. Iria atrás de algo assim para si, nem que tivesse de ir até o Grande Amarelo. Nem que tivesse de andar sobre o fogo e nadar num mar de gelo. Ou que tivesse de ser engolido e vomitado. Teria poder de novo, voltaria a sentir aquilo que sempre gostou de sentir. Aquilo que nunca lhe fora tão bem vindo quanto qualquer outra coisa.
***
Gunter estava sentado em seu cavalo, inquieto. Olhava a floresta de Bulogg com cautela.
– Tem certeza de que não quer ir pela estrada convencional? – indagou, descendo de seu alazão. – Tenho certeza de que há muitas rotas a se seguir, Kai.
Kai desceu as escadas calmamente. Usava um sobretudo de couro de urso-escama-de-dragão, que lhe cobria o corpo. Sua mana tinha perdido densidade nos últimos dias, inibindo suas chances de usar uma bolsa espacial. Portanto, teve de deixar algumas coisas na cabana que chamara de lar.
Colocou nas costas uma bolsa não muito cheia; continha roupas, comida e alguns objetos. Na cintura, pendurada estava sua enorme espada de açoferro. Ele a fitou por um tempo; lembrou do dia em que ganhou de presente do velho Shiv.
– Não se preocupe, Gun – abriu um sorriso maldoso. – Não há muitas criaturas selvagens do lado de cá da barreira mágica.
– E mesmo assim não impede que raposas, coelhos e veados corram por estes quintais, não é mesmo? – respondeu ele, lançando um olhar advertido ao amigo.
– Já te expliquei um milhão de vezes: a barreira evita que inimigos e criaturas acima da escala de ferocidade adentrem em nosso território. Não vejo como coelhos e veados poderiam ferir um mago.
Gunter pigarreou.
– Nunca entendi muito bem essa burocracia toda... parece até um contrato político cheio de furos. – Ele esticou uma mão. – Acho que é isso, então?
Kai sorriu e ergueu uma mão enluvada negra.
– Sim. Se cuida, tá? Não faz mal mandar cartas de vez em quando.
Gunter franziu a testa. Kai, por sua vez, revirou os olhos.
– Eu já te expliquei isso também. Águias gravam nossas assinaturas de mana; basta mandar Pikswart, ela é confiável.
– Mas pensei que...
– É, Gunter. Mas, mesmo que eu não possa usar magia e minha mana vaze como um balão d’água furado, ainda tenho um pouquinho. Nossas assinaturas de mana são como DNA, lembra? Por isso nos ensinaram a conter nossa mana, impedir que outros nos localizem. Aparentemente as águias não se esquecem, seu olfato é tão apurado para isso quanto é para sentir o cheiro das presas.
– É, mas e se...
– Eu terei que citar todas as aulas de concentração e equilíbrio de mana mesmo? – Kai sorriu. – Ninguém vai tentar me achar, não sou um fugitivo. E antes que fale alguma coisa, não tem como eles obrigarem Pikswart a me entregar, ela é minha fiel. Águias tendem a pertencer a uma pessoa. Foi por isso que trocaram os corvos por elas. Devo supor que você saiba usá-la, não é?
– Se não soubesse não poderia ter minha licença mágica – sussurrou ele, pressuroso e irritado.
Kai sorriu e puxou o amigo para um abraço. Quando se afastaram e Gunter notou que o amigo ia caminhando, falou:
– Então é assim? – Kai se virou. – Você vai embora sem dizer nada? E vai andando? Baita amigo, hein.
O amigo sorriu e ergueu as sobrancelhas.
– Não seja sentimental, seu grande bobalhão. Irei a pé pois minha jornada é longa, não quero ter de submeter um cavalo a qualquer adversidade que eu vá encontrar.
– Então não morra, seu estúpido. Quando eu me tornar o capitão do exército do frio, te enviarei uma carta, seu pé de pano sujo.
– Estarei esperando, cérebro de noz.
Então Kai se virou e foi embora, seu sorriso desaparecendo pouco a pouco.
***
Sua viagem foi carregada de silêncio e nada mais. Estava acostumado a ficar horas e horas andando de um lado para o outro, atrás de presa para o jantar dos Murphy, como fizera uma quantidade de vezes anteriormente.
Se lembrava vagamente da primeira vez que esteve aqui, com o velho Shiv lhe dando dicas de como prosseguir. Na ocasião, conseguiu pegar um coelho depois de duas horas; o velho gargalhou dele, disse que era o coelho mais feio que viu na vida inteira. Depois foram para a cabana e o velho passou a noite inteira contando histórias para ele, Gunter e Ardara, que chegaram depois.
Agora isso tudo parecia muito distante. Foi antes do velho Shiv ir embora, antes de Ardara ir treinar. Antes de tudo dar errado.
Mas, como da primeira vez em que estivera aqui, um frio se alojou em sua barriga, como se congelasse todo seu intestino. Era nervosismo. Não medo ou angústia; estava ansioso pela jornada, ansioso pelo novo. Afinal, amava um desafio.
Entrementes, uma garoa começou a cair, uma névoa baixa se alojou e ele começou a ouvir o som de grilos e gafanhotos; o coaxar de sapos e piar de pássaros. Ouviu um macaco guinchar ao longe. O ar uivou por entre a copa das árvores e folhas, quase falando. Faltou isso.
Então, em quase oito horas que pareceram minutos, ele chegou na extremidade do território Murphy. Dentro da barreira, era onde ficavam os animais herbívoros, aqueles que se alimentavam somente do que a floresta dava, sem pretensão ou anseio pelo crime da matança.
Depois da barreira é que ficava realmente o perigo. Fitou uma árvore que delimitava esse fim e começo. Era uma árvore criada por magia, ela era o portal que passava para o outro lado. Ela que permita as pessoas saírem, mas nunca entrarem. Ele olhou para trás, o estômago roncou; não por fome, era a mesma ansiedade escancarada.
Se quisesse entrar de novo na cidade, seria pela porta da frente. Mas nunca voltaria ali, tinha certeza disso.
Quando passou pela barreira, o ar mudou. Não foi necessário ter mana para sentir. Suas pernas cederam e ele xingou. O clima mudou drasticamente. Uma chuva torrencial atingia o lugar, o ar ondulava. A tonalidade foi de azul suave para um laranja perigoso. Foi a única forma que ele conseguiu descrever. Pareceu ter entrado em outro território, nem parecia que a única coisa que separava os dois lugares era somente uma árvore.
Seus sentidos que tanto treinou apitaram de todos os lados. Mas tudo estava calmo, apesar da sensação de que a qualquer hora uma bomba poderia explodir.
Ele respirou fundo, cada cubículo de ar lhe escapando. Teve dificuldade durante dez minutos, as pernas tremiam. Que sensação era essa?
Lembrou de um livro que dizia que a floresta de Bulogg era a mais perigosa de todo o território do homem. Ela serpenteava por três reinos e cada parte que tocava estes reinos, tinha uma proteção mágica. Além desta barreira, um ser humano comum não sobreviveria à magia imposta ali. Era como se ela estivesse viva, impondo sua aura assassina.
Ademais, ninguém em sã consciência entrava na floresta de Bulogg, nem sozinho nem acompanhado. Era amaldiçoada. Mas era um mito. Tinha que ser.
Então quando todos os seus sentidos foram normalizando, ele correu. Poderia estar em qualquer lugar agora, nunca parou pra prestar atenção onde essa floresta dava. Tinha certeza que ainda estava em Algüros, mas em pouco tempo poderia estar próximo das barreiras de Cardos ou Zikros. Quem poderia saber?
Afinal, aquela era somente uma pequena quantidade da imensa floresta em forma de serpente. Diziam que os rios e as árvores eram como um ser vivo, e que os monstros ali existentes eram o sistema imunológico, lutando para destruir o vírus. De algum modo, o homem conseguiu criar um feitiço tão poderoso que pegava parte da floresta para si. Foi o único jeito, ou então o homem não teria onde viver. Pelo menos aquela parcela que decidiu fazer morada próximo dela.
Ele correu sem direção, por horas a fio; sem mana era muito pior. Com ela poderia caminhar por aqui sem se preocupar, só esperando alguma criatura aparecer. Não seria idiota ao ponto de achar que aguentaria contra aquelas criaturas, mas pelo menos serviria de treinamento. Agora não restara nem isso.
De chofre, ouviu-se um tremor ao redor, como passos pesados. Ele virou a cabeça repentinamente, buscando a origem do som: nada.
Antes que pudesse reagir, no entanto, algo grande e forte o atingiu no tronco e o arremessou quase quatro metros. Grandes folhas parecendo lençóis amorteceram sua queda, bem como alguns arbustos logo abaixo. Mas isso não significou que doeu menos.
Uma dor lancinante envolveu todo seu corpo; lutou para recuperar o ar, mas tinha de levantar, não poderia morrer ali, no início da jornada. Ainda queria poder ter a chance de usar magia.
Com respiração ofegante, ele se ergueu, uma perna doendo mais do que o normal. Começou a mancar, a luxação se tornou cada vez mais aparente. Com o tronco amassado e a perna inchada, a chance era muito pouca. Mas não desistiu.
Vagarosamente começou a levantar e a correr – mancando – sem norte algum. Ouviu mais uma vez o som dos passos e quando fez menção de olhar para aquilo que o seguia, levou outra pancada, dessa vez no rosto.
O maxilar trincou e a visão escureceu, estrelinhas se formando por detrás de seus olhos. Antes que pudesse atingir o solo, apagou.