Volume 1
Capítulo 29: A CONQUISTA
Kai acordou com uma enxaqueca rigorosa.
Seus punhos doíam, como se tivesse mergulhado em lava.
Seu nariz latejava, como se tivesse levado socos em sequência.
O chi fluía lentamente em suas veias, impossibilitados pelas correntes mágicas.
Três semanas haviam se passado desde que ele acordara naquela cela sem qualquer presença, a não ser a de ratos e camundongos.
É, ele vinha contando.
Estava algemado em correntes que prendiam seus punhos e tornozelos à uma parede de frente para uma porta de ferro laqueado.
Não teve contato com ninguém desde então.
Nem sabia se Ysgarlad e os outros tinham saído a salvo.
Seu chi era inútil contra aquelas algemas, que haviam sido projetadas para bloquear qualquer tipo de manti, ou seja, de energia.
O chi envolvia levemente seu corpo, mas fraco demais para um ataque.
Ao que parece, tinham pensado em tudo.
Mas ninguém tinha vindo conversar com ele. Nem lhe dado sequer uma resposta do que estava acontecendo.
Somente uma vez por dia alguém vinha, abria uma brecha pela porta, e jogava um pedaço de alguma coisa.
Isso o deixou nostálgico.
Lembrou do quase um mês que passou nas gaiolas dos Gorilas.
Na ocasião, teve alguém para conversar. Agora estava irremediavelmente sozinho.
Seu cabelo fedia, sua boca tinha um gosto ruim, e seu cheiro não era dos mais agradáveis.
Mas, veja só, eles se preocupavam em deixar comida.
Nem luz do sol era viável ali.
Depois de comer uma banana em segundos, houve um toque na porta.
Ele ergueu a cabeça.
Dois sujeitos vestidos de preto entraram, com passos robotizados. Kai tinha certa opinião acerca deles e dos outros. Só faltava confirmar sua teoria.
Eles ficaram um de frente para o outro, do lado do vão de entrada.
Um terceiro sujeito entrou.
Ele não usava capuz e estava sorridente. Tinha um rosto quadrado e olhos verdes; seu cabelo era castanho aveia e penteado para trás.
Ele fechou a porta e uma cadeira se materializou na sua frente. Ah, doce magia.
– Não tive muito tempo para conversar, mas aqueles disparos de fótons – ele piscou para Kai, fingindo animação. – Você é demais, cara.
Ele encarou Kai por alguns segundos, até desviar o olhar. Deu uma boa vistoria no lugar antes de cruzar as pernas e as mãos sobre o joelho.
– Pode entrar – Kai disse, irônico.
O homem olhou para ele e tocou na ponta do próprio nariz.
– O humor nortenho. Adoro. É fantástico como vocês das terras geladas tem um jeitão frio, grosso, e ainda assim, engraçado.
Kai estranhou; mas era de se esperar que ele soubesse uma coisa ou outra.
– De onde você é? Por que não é igual a eles?
O homem olhou para trás e encarou os soldados. Soltou um estalo de língua.
– E ainda assim um bom observador. É realmente inteligente, Kai Stone. Observador, sucinto, homem de poucas palavras. E, quando as diz, é sempre carregado de ironia. Qualidades essencialmente bem polidas pelo ‘Lobo Ruivo do Norte’.
Kai não esboçou nenhuma reação. Mas foi incapaz de controlar sua surpresa ao escutar aquele nome. Não o ouvia há muito tempo.
– Como sabe tanto sobre mim?
– Ah, vamos lá. Ingenuidade não é uma de suas qualidades. Aposto que Siobhan o treinou bastante nisso, mas não conseguiu evoluir tão bem quanto deveria. Aposto que fez cada trabalhinho sujo para os Murphy por anos e, quando necessitou, foi jogado fora. Eu sei, pois é meu dever saber, Kai Stone. Saber cada passo que deu até o presente momento. Saber que você faria de tudo para encontrar um povo perdido e cumprir sua missão, pois é isso que faz. Mas, acima de tudo, se preocupa com os outros. Gosto disso em você, o fato de que tem opinião própria, que faz algo porque acredita e não porque mandam.
Ele se levantou e pôs as mãos para trás, cruzadas.
– Eu sei tudo, Kai Stone. Você já deve saber que nosso encontro foi uma grande armação.
– Ah, sim. Você aprecia um bom ato, não é?
– Sim! Tudo pelo drama. Adoro criar momentos e cenas como essa. Isto é uma cena, Kai Stone. Agora, neste momento, foi tudo detalhadamente elaborado. Esta conversa. Tudo. E não poderia ter dado mais certo. Esqueça Algüros, aqueles inúteis de Neve Sempiterna, esqueça tudo isso. Te contarei agora meus planos.
Ele estalou os dedos e tudo mudou.
Kai já não estava mais acorrentado. Não fedia e sua boca não tinha um gosto horrendo.
Seus cabelos estavam bem penteados. Agora estavam sentados em torno de uma mesa de pedra numa varanda de frente para um jardim cheio de árvores perfeitamente podadas e lotes perfeitamente capinados.
Kai olhou ao redor e teve uma sensação esquisita. Tinha certa estranheza no lugar que o deixou nostálgico. Mas permaneceu calado.
O homem estava agora comendo um bife e tomando um vinho tinto.
– Você é inteligente, Kai Stone. Observador.
– É... você já disse isso. – Kai o observou bem. – Mas não confunda inteligência com conhecimento.
– Oh, não. Longe de mim. O conhecimento é algo que todos podemos ter, mas a inteligência é algo que deve ser medida pela capacidade de um sujeito de aprender algo novo. E você o é, Kai Stone.
Ele mastigou um pedaço de carne e beijou os dedos, apreciando o gosto.
– Respondendo a sua pergunta: eu não sou como eles, pois acredito nos motivos do mestre.
– Resumindo, você não é controlado por que é insano.
– Se quiser colocar desta forma – ele deu de ombros. – Eu sou um apreciador da causa.
– Tem ideia de que está seguindo um feiticeiro maluco? Tem noção disso, não é? Que ele controla magos por aí... imagine o que esse cara pode fazer. Imagine que ele pode destruir seu lar... – de repente, a sensação de que conhecia o homem de algum lugar, fez sentido. – que pode destruir Condado Dourado.
Ele ergueu o rosto, surpreso.
– Aí está, a inteligência, genialidade. Você é magnífico, Kai Stone. O mestre tem razão. – Ele se escorou na cadeira. – Como descobriu?
Kai respirou fundo. Infelizmente lembrava bem daquele rosto.
– Joguei verde...
– E colheu maduro. – O sujeito sorriu.
– Ademais – Kai prosseguiu. – O vi num dos torneios estatais para magos. Lembro da sua luta com Lucio Fal. Você é Jimothy Vinice, primeiro filho do dono das Indústrias Vinice de vinho e cevada. Sumiu após seu irmão morrer num incêndio nos vinhedos sul.
Ele começou a bater palmas, frenético.
– Bravo, bravo. Olha, não sabia que os Murphy tinham uma joia bruta como essa e perderam.
É apenas conhecimento, Kai quis gritar.
– Agora – prosseguiu ele. – tão bem lapidada. Inteligência, Kai Stone. Eu lembro de você também, sabe? Um moleque que só andava na cola do velho Lobo Ruivo. É, eu lembro.
– Você o matou? – Kai indagou.
– Fiquei surpreso quando o mestre falou sobre você – ele ignorou a pergunta. – Realmente, muito, muito, muito surpreso. Fiquei feliz até. Apesar do tamanho deste lugar, o mundo é realmente pequeno...
– Jim?
– Quem poderia imaginar, não é?
– Jim!
– Hein? – Ele ergueu o rosto do prato.
– Você o matou, não é? Seu irmão.
– Que isso tem a ver com nossa conversa, hã? Quer que eu confesse? Eu confesso. Pronto, matei. Mas foi um acidente e acidentes acontecem.
Kai se entristeceu. Lembrava bem de quando tocaram fogo nos vinhedos sul que era gerido pelo segundo filho da casa Vinice, Tomen. Seu irmão mais velho fora visto horas antes no lugar e eles tiveram o que pareceu ser uma discussão acalorada.
Depois da morte de Tomen, que fez de tudo para suprimir o fogo e salvar os civis que lá trabalhavam, morreu por falta de oxigênio.
Era um não mago, veja bem. E estava sendo cotado para ser o próximo presidente das Indústrias Vinice e líder da casa. Jimothy era o principal suspeito.
Sem suspeitos aparentes.
É, Kai lembrava bem.
– Seu pai faleceu após seu sumiço. Isso foi há cinco anos.
– Tudo bem – ele ignorou outra vez. – Acontece.
– Sua irmã assumiu as indústrias.
Jimothy socou a mesa.
– Eu já disse que acontece, tá legal? Essas coisas, acontecem. Não viemos falar sobre mim, Kai Stone, falaremos sobre você.
– Então pra que isso? – Kai olhou ao redor. – Por que não dizer logo? Sincero e rápido. Sem preâmbulos. Pra que me mostrar sua casa? Sente saudades?
– Calado! – Jimothy gritou.
Aos poucos, foi tudo sumindo. As árvores, os vinhedos. As construções. Até mesmo as roupas e o bom cheiro de Kai. Não passava de uma ilusão.
Kai estava de volta na cela, algemado, sem forças.
– Quando o mestre me disse que tinha planos para você, eu fiquei surpreso. Me perguntei a razão. Mas aí ele me mostrou... ah, você derrotou um bulgu. Matou batedores, fez a festa com caranguejos. Assassinou um mercenário a sangue frio. É um detentor claro de tudo aquilo que esperamos.
– Esperam pra quê?
– Pro maravilhoso futuro, Kai Stone. Tomaremos a Floresta de Bulogg; primeiro arrancaremos as milhares e milhares de pessoas de dentro daquela árvore. Depois iremos até Algüros, Zikros, Cardos, Eskol, Bermon... iremos tomar o império do Sul das mãos dos Sperb. Governaremos sob a encosta e acima dela, seremos os imperadores de Reiqin. E tudo começará aqui, quando destruirmos o feitiço da grande entrada e entregarmos a cabeça de Abwn Eblomdrude àquele macaco velho e fedorento. E você será o responsável.
– Eu? Como?
– É como eu disse, Kai Stone, tudo é uma bela cena. Você servirá o propósito melhor que esperávamos.
No mesmo instante, um sujeito alto de ombros largos e cabelos negros entrou. Tinha um nariz longo e torto, e seus olhos eram incrivelmente cinzentos.
Kai não pôde acreditar no que viu, era realmente surreal. Tudo fez um pouco de sentido, no fim.
Ele olhou para Jimothy e sentiu certa pena do homem. Parecia totalmente enlouquecido. Não tinha tido sua mente controlada pelo Xamã, mas outra coisa a havia controlado: a loucura.
– Que é que você fez, Jimothy? – Indagou o rapaz. – Isso... ele deveria estar morto... isso não é natural...
–Natural? E algo nesse mundo é? Você perguntou se eu o matei, não é? E aqui está a resposta. Ele está vivo...
– Não do modo certo, Jim. A alma dele deve estar sofrendo, ninguém deveria ser capaz de driblar a morte. Isso é necromancia, magia proibida...
– E deixará de ser quando nós mudarmos tudo. As leis serão reescritas.
Tomen piscou, inflexível.
– E pra que? Só para ter seu irmão de volta? A morte é permanente, Jim...
– E ele voltará quando o mestre obter o poder total... – Disse Jimothy, totalmente alheio ao que Kai dizia.
– Poder total? Que é que...
– Isso é apenas uma casca, Kai Stone. – Disse Tomen pela primeira vez. – O mestre irá devolver minha felicidade, minha alegria... minha...
De repente, a cor de seus olhos sumiu e um tom castanho assumiu antes de começar a esbranquiçar.
Uma feição de lamúria tomou o rosto de Tom, seus cabelos perderam a cor e a avidez. Ele perdeu a compostura.
Olhou para as próprias mãos, assustado e tremendo.
– O-o quê? Irmão... por que está tão frio? Tão triste? Por que...
Logo ele tomou a compostura outra vez, o tom cinzento voltando aos olhos e a cor retornando à sua pele. Ele ajeitou os cabelos para trás e ficou rígido outra vez.
Kai sabia muito bem do que aquilo se tratava. Era um contrato espiritual, onde a alma não tinha retornado por inteiro. E ela sofria. Estava se fragmentando.
Em todos os cantos que Kai havia lido, somente um Xamã na história tinha conseguido reviver pessoas, e foi por tempo indeterminado. Ou seja, a qualquer momento a pessoa enlouqueceria.
Até mesmo necromantes só conseguiam capturar almas do Hell, e coloca-las em corpos vazios e sem vida. Na grande maioria das vezes, estes corpos só se tornavam máquinas mortíferas de guerra, sem emoção alguma.
Mas a ficha de Kai caiu.
– Sua alma está sofrendo... e se seu mestre precisa do poder total, então... ele é um espectro, não é? Seu mestre.
Mael precisa saber dessa ameaça, pensou Kai.
– Bravo, bravo, magnânimo. Que criança realmente inteligente.
Jimothy bateu palmas de modo a parecer que a única criança ali era ele.
– É uma pena que o mestre vá substituir sua mente, porque olha... gostei de você. Mas eu sei o que você está pensando... acontece que Mael já tem ciência de nós, Kai Stone. Você é que ficou no escuro.
Ele não pôde deixar de se entristecer.
Contudo, não havia tempo para lamentar. Se Mael já sabia, então ele devia ter um plano de contingência.
– Então ele vai me possuir? – Kai indagou.
– Ah, não somente isso, Kai Stone...
Uma voz áspera e grossa soou do vão além da porta. Entrementes, um sorriso doentio cresceu no rosto de Jimothy.
– Eu irei rasgar sua vontade em mil pedaços, matar cada um daqueles seres selvagens que você tem tanto apreço e, aí sim, ter um corpo.
Kai observou o dono da voz com um medo tão profundo que sua única feição era de espanto enlouquecedor.
As coisas ficariam ruins.