Volume 1

Capítulo 21: CONHECEDORES DA VERDADE

Kai caminhava pelas ruas em que encontrara Mael pela primeira vez. Não sabia ao certo o que esperava encontrar, mas tinha de ser uma arma.

A arma que estava acostumado a usar em combates eram seus próprios punhos e técnicas de mana; mas vez ou outra tinha que usar uma arma real, e não se saia de todo mal quando portava lanças e espadas.

Tinha certa dificuldade em saber o que encontrar nas ruas do Reino da Orquídea. Em parte, porque onde quer que fosse, era alvejado por olhares irritados de vitanti que impediam sua entrada nas lojas.

Já estava acostumado; inclusive o tratamento que tivera ali lembrou bastante do bairro nobre de Neve Sempiterna.

Somente na baixada Ibiã, considerada a região mais humilde da cidade, e suas redondezas, é que ele era mais acolhido. Certamente as pessoas não ligavam para valor sanguíneo, o que importava era a prata.

Já estava ficando irritado quando uma voz lhe chamou de trás. Se virou e viu uma pequena vitanti de pele ameixa e cabelos ocre se aproximar, apressada.

– Sr. Kai... – Plumrose ofegou e se apoiou nos joelhos, arfando. Seus cabelos estavam trançados para frente e ela usava um vestido azul com finas linhas douradas. – Sr. Kai, que bom encontra-lo.

– Ah! Oi, Plumrose. Como vai?

– Vou bem... o senhor sabe... trabalhando bastante.

– Entendo. – Kai tornou a caminhar e ela se juntou a ele.

– Eu soube de seu julgamento – disse ela, sem rodeios. – Que bom que ficará mais tempo em Orquídea.

Kai olhou para ela depois ao redor.

– Não é o que muitos pensam...

Ela passou o olhar pela rua, notando só agora alguns dos olhares irritados. Certamente a notícia de que Kai duelara e quase morrera contra um vitanti percorreu todo o território roxo. Inclusive, não muito tempo atrás, certos indivíduos proferiram palavras desagradáveis a ele.

– Não desanime sr. Kai, tenho certeza que se o conhecessem, saberiam que é um bom homem.

Ele olhou para a menina e a viu corar levemente. Sorriu, descontraído.

– Fico feliz que pense assim, Plum.

Caminharam mais algum tempo, Kai olhando vez ou outra de relance para a garota, notando um rubor tomar seu rosto ameixa. Então ela cortou o silêncio.

– Então... que faz por aqui?

– Ah! Bem, estou atrás de um lugar que venda armas. Sabe onde posso encontrar?

– Claro, mas o senhor não vai encontrar nada aqui.

– Por que diz isso?

– Hum... Por causa da região. Esta vila está mais próxima da Grande Sequoia, então é natural que tenha um comércio voltado para os civis. Mesmo que tenha visto um ou outro lugar, não é muito adequado que compre... sabe, uma arma em território vitanti.

– Mael ordenou que eu comprasse, então não será um problema. Portanto, pode me dizer onde tem um bom lugar que venda o que procuro?

– Sim, claro. O senhor sabe que não usamos dinheiro convencional aqui, não sabe?

Kai coçou a cabeça. Só tinha pensado nisso nesse exato momento. Nem se ligou que saíra pra comprar algo sem ter dinheiro.

– Pelo visto não sabe – Plumrose sorriu, constrangida. – Bem, aqui nós não usamos muito dinheiro, ao invés disso, temos pequenas pedrinhas coloridas chamadas ‘passes’, que são uma espécie de escambo.

– Entendo. E como funciona?

– Bem, caso você esteja precisando de alguma coisa que está faltando, pode pagar com um passe que equivale ao que o vendedor esteja precisando. Por exemplo, se eu quiser comprar comida e a loja for um lugar que aceita principalmente passes que deem para repor alimentos, então vou lá e troco meus passes pela comida. Mas dinheiro também é aceito, que são xelins.

– Hum. Mas não seria muito mais fácil você só pegar com esse passe os ingredientes e fazer a comida?

– Sim, por isso digo que nem todo mundo aceita os passes. Eles são mais usados em trocas do tipo: arma por comida, ou roupa por objetos de fácil uso. Essas coisas. E os passes só são usados quando alguém não tem dinheiro nenhum.

– Entendo... então, onde fica essa tal Vila Lilás? Mael disse que eu encontraria lá. 

– Ah, a Vila Lilás fica logo no fim desta região.

Kai balançou a cabeça. No outro dia, Abwn mencionou algo sobre os senhores das regiões, isso fez crescer certa curiosidade nele.

– Como funciona isso de regiões? – indagou.

– Bom, o Reino da Orquídea é dividido em seis regiões, que são comandados por seis senhores. A região em que estamos agora é a de Pylpunt, cujas vilas são de comerciantes e pescadores. O senhor dessa região é Cineáltas do clã Echanti. Existem, ao todo, dez vilas em Pylpunt; e cada região tem dez vilas.

– Entendo. Quer dizer que o pai de Fioled é o chefe disso tudo...

– Mais ou menos. Ele não é o chefe, apenas governa em comum acordo com os outros clãs. Os senhores são porta-vozes do povo de cada região.

– Hm. Pensei que Abwn é que fosse o senhor dessa região.

– Abwn? – Plumrose pareceu confusa por um instante; depois se sobressaltou. – Fala de Neru’dian? Não acho que deveria chama-lo por seu nome, sr. Kai, é muita falta de respeito...

– Eu não sou vitanti, Plumrose – Kai sorriu. – Sem contar que foi ele que ordenou que o chamasse assim.

– Ah... – ela corou. – Entendo... bem, Neru’dian não é o senhor de Pylpunt, uma vez que ele lidera todo o Reino da Orquídea. Acho que seria puxado demais...

Kai não disse nada. Caminharam por uma longa estrada de terra pelo que pareceram horas. Finalmente chegaram nas extremidades de uma imensa construção de pedra, com paredes indo até o céu.

– Pronto, aqui é o Mercado Soldador, a vila Lilás.

Ela correu até uma enorme porta e bateu. Logo elas se abriram e a garota adentrou-as. Kai foi em seguida.

O Mercado Soldador era enorme, isto é, se for considerar o território dos vitanti.

Guardando os portões por dentro, haviam soldados nas ameias de duas torres em cada lado. De uma praça central com um chafariz, seis ruas se dividiam para cada lado, com vários prédios feitos de modo normal. Pessoas iam e vinham, risada e conversas ecoando pelo lugar.

– Que vieram fazer aqui? – Perguntou um vitanti vestindo robe azul e uma armadura de placa por cima.

– Ele veio comprar algumas armas... – disse Plumrose, inocente.

– Comprar? – o vitanti olhou para Kai e sua expressão mudou. Ele engoliu em seco e recuou um passo. – Q-quem te deu permissão, curoh’nekedoh?

Kai franziu o nariz e a testa, raivoso.

– Mael da linhagem Eblomdrude.

– Um instante.

Ele correu para o arco de entrada da torre a direita e demorou longos dez minutos. Voltou em seguida, mais pálido do que de costume.

– C-certo. Pode passar, mas só tem permissão para comprar uma arma.

Kai assentiu e saiu logo atrás de Plumrose, que estava muito calada.

Entraram pela rua da extrema direita, onde muitas famílias caminhavam, felizes. Alguns viravam o rosto, outros encaravam até que Kai estivesse longe o suficiente. Ele não ligou.

– Peço perdão pela hostilidade, sr. Kai. Isso... isso me envergonha por demais.

– Não se sinta assim, Plum. As pessoas temem o desconhecido; imagine que essa é uma reação até aceitável se comparada à dos humanos.

Ela levantou a cabeça, curiosa.

– Sério?

– Sim. Lá eles costumam desprezar os pobres, os fracos. São poucos os que não são assim. Lá apenas quem tem força é que vale de algo. Se você não tiver força, mas for rico, tudo bem. Mas se for pobre e fraco... você é comido vivo. Humanos se matam constantemente, e não somente por disputa de força; mas por poder, fama, riquezas. Imagino que se um vitanti aparecesse hoje em territórios do homem ele não duraria nem um segundo vivo.

– Isso é triste...

– Sim, mas é a vida. Cabe a nós vencer as dificuldades que ela dá; se não for forte, Plumrose, a vida te consome, te pega de supetão, nem avisa que veio nem que tá indo... ela passa e você não vê. E se você for fraco, é varrido por ela. Mas força não é tudo.

– Não?

Ele negou.

– Se você for forte, mas sem uma ambição que te mova que não a força, ela te pega de jeito. Afinal, do que valeria força se usada somente pra uma coisa? Não... a vida só pode ser parada com duas coisas: força e poder. O poder sem força te torna fraco, a força sem poder te torna tributário; e alguém sem força e poder, morre.

– Mas por poder o que você quer dizer, sr. Kai?

– Poder é a capacidade de mover mundos e fundos, Plum. Mas como você moveria mundos e fundos sem capacidade? Sem força? Ainda assim, força e poder juntos podem tornar um bom homem em um ser ignóbil. Mas há uma terceira coisa que faria uma pessoa a mais poderosa de todas.

– E qual é?

– Caráter. Sem isso, a força e o poder seriam destrutivos. É por isso que muitos tem força e caráter, poder e força, caráter e poder. Mas todos sempre são pegos no burburinho, destronados por outros.

– Quer dizer que o senhor possui essas três coisas?

– Ah, não – ele sorriu. – Não tenho poder, tampouco força...

– Mas o senhor tem caráter.

Kai a olhou e o rubor desapareceu de seu rosto. Ela falava sério.

Ele gostaria de pensar que sim, mas não era tão modesto a ponto de afirmar isso. Contudo, acreditava de todo seu coração nessas afirmações. Poder e força eram constantemente combinados por homens poderosos, a história nunca mentiu. Mas e os três juntos? Será que existia alguém que possuía caráter, força e poder?

Será que existia alguém neste mundo que, possuindo esses três conseguia não ser ingênuo? Ou será que ter caráter não significava automaticamente ser tolo? Ou será que ele era tão desconfiado ao ponto de não poder nem acreditar que existia alguém bom o suficiente para ter um caráter que sobrepujasse a própria força e poder?

Bom, se era isso, então ele não tinha tanto caráter quanto Plumrose afirmou ter.

Chegaram numa rua esquisita após uma longa caminhada. Não tinha tantos vitanti caminhando ali.

Ela era mais como um beco do que uma rua propriamente dita; com suas construções estreitas, alguns candelabros acesos em archotes nas paredes de pedra bruta.

Uma enorme placa balançava ao vento que dava, rangendo e incomodando os tímpanos de quem quer que passasse.

Entraram numa lojinha no fim do beco. Um sino tocou quando abriram a porta.

– Seja bem-vindo ao Pote de Runas – disse uma vozinha esganiçada e fraca; parecia distante.

Kai esquadrinhou o lugar. Era bem grande. Um lustre de orbes douradas pendia do teto. O lugar em si era escuro, mas iluminado por tochas em archotes.

Haviam prateleiras nas paredes contendo armaduras, elmos e armas. Cinco estantes pequenas de peças e bijuterias dividiam o lugar em corredores centrais.

Ele foi pelo da direita.

Numa prateleira na parede, uma armadura completa brilhava à luz do fogo mais próximo. Ao lado, um elmo com plumas vermelhas e longas, com visores tampando a testa, nariz e bochechas.

– Oh... – uma voz ofegou ao lado de Kai. – Então é você...

A dona desta voz era uma vitanti um pouco mais baixa do que Kai. Tinha uma pele roxo claro, olhos cor de amendoim e cabelos curtos e negros. Usava um avental cinza por cima de um robe amarelado. Ela sorriu.

– Sejam bem-vindos ao Pote de Runas, melhor loja autônoma de todo Mercado Soldador e, cá entre nós, de toda região de Pylpunt. Sou Hyvina do clã Echanti, é um prazer recebe-lo, Kai Stone. Como está, pequena Plum?

Plumrose sorriu para Hyvina; aparentemente o Reino da Orquídea era minúsculo.

– Vou bem, srta. Hyvina.

– Então você faz parte da família de Fioled. – Kai interrompeu, destemperado. – Como sabe meu nome?

– Ah, sim. Sou sua prima de segundo grau. Ela me falou sobre o senhor, será um enorme prazer ajuda-lo. O que estaria procurando?

– Bem, estou atrás de uma espada. Em breve tenho que me apresentar e...

– Certo – ela bateu as palmas, assustando Plumrose. – Venha comigo.

Hyvina andou até o fim daquele corredor e parou, se virando para Kai. Abriu uma portinhola na parede e retirou uma espada dentada de dentro. Ele lembrou imediatamente da batalha vitanti contra os gorilas assassinos. Um dos guerreiros púrpura partiu um primata ao meio com um só golpe.

– Esta é chamada de Dant’rehegua, foi criada por Cennet do clã Echanti, nas guerras do lago de fora, há 200 anos. Pegue.

Ela entregou a arma a Kai. Mas ele não sabia que era tão pesada; seu cabo era feito de osso polido com fitas manchadas enroladas nele. A lâmina media, no mínimo, 70 cm, com um de seus fios liso e o outro cheio de ‘dentes’. Ele meneou-a e até fez alguns movimentos. Mas não gostou, então devolveu; Hyvina fez uma carranca.

– Então vamos seguir... Aqui, esta foi feita por Linus da extinta linhagem Murasime, há quinhentos anos. Decerto é uma das melhores em nossa posse.

Ela a tirou de sua prateleira. A lâmina curva ficava na ponta de uma lança com cabo adornado por figueiras coloridas. Kai devolveu à prateleira e passou direto.

Hyvina fez questão de mostrar cada espada do estoque que ela tinha, mas nenhum pareceu satisfazer o rapaz. A garota já estava ficando irritada.

– Bom, – ela disse, exasperada. – terei de chamar meu noivo, que é o gerente; ele está lá atrás forjando, acredito que possa encontrar algo para você.

Ela passou pelo vão detrás do balcão. Kai e Plumrose seguiram e esperaram.

– Hum... sr. Kai, o senhor tem como pagar pela arma?

– Não – respondeu ele, despreocupado.

– E como pretende fazê-lo? – Plumrose indagou, como se o pagamento fosse ser feito para ela.

Kai olhou para ela e ergueu uma sobrancelha.

– Relaxa aí, colocarei na conta de Mael.

– M-mas isso...

– Que foi? Agora acha que eu não tenho tanto caráter assim?

Plumrose lhe encarou, ofendida.

– Eu não disse isso!

Entrementes, Hyvina voltou do interior do estabelecimento conversando com alguém, irritada.

– Vejamos se é tão exigente assim. – Disse uma voz grossa e familiar.

Kai se virou e viu um vitanti de pele roxo claro, cabelos soltos e negros se aproximar; usava um piercing no nariz acima do lábio, seus olhos eram cor de âmbar.

Ómra do clã Echanti e irmão de Fioled, saiu pelo arco. Ele pareceu surpreso por um minuto, mas logo fechou a cara.

– Hyvina, deveria ter dito que o cliente era esse curoh’nekedoh imundo.

– Não achei que isso fosse tão importante assim, já que Fioled...

– Não ligo para o que Fioled pensa. Não é bem-vindo em minha loja, nojento.

– Mas irmão Ómra, foi o sr. Mael quem disse para ele vir comprar... – Plumrose ensaiou um comentário, mas foi interrompida.

– Não ligo para isso. – Ele olhou para baixo e encarou Plumrose. – Me admira que você ande com gente dessa laia, Rose. Pensei ter dito para você e Oseias não se aproximarem desta criatura.

– Meu irmão não tem nada a ver com isso, irmão Ómra..., mas o sr. Kai, ele...

– É um imundo tanto quanto aquela raça imunda dos Curoh’tuleya. Oren, um dos melhores guerreiros de nossa raça está preso por causa dele. Se não tivesse aparecido, se não tivéssemos ido pela cabeça da tola Fioled...

Kai não disse nada. Apenas tocou no ombro de Plumrose e se dirigiu até a saída.

Ómra, que esperava retaliação, se irritou mais. Ele empurrou sua aura para fora, sufocante e opressora. Kai parou e se virou, empurrando sua aura de chi e mantendo o olhar furioso do vitanti.

No pouco tempo que esteve ali, Kai logo soube que duelos de aura eram de grande valia.

Eles ficaram longos segundos se encarando, com Kai se esforçando para não atingir Plumrose e Hyvina com sua aura; foi inevitável, já que o lugar era um tanto fechado.

De um lado a pequena Plumrose lutava para não vomitar, com uma cara de desespero escancarada. Hyvina tinha certo autocontrole.

– Noivo, peço que se acalme... – ela disse.

– Este imundo de pele pelada vem à nossa terra, enche a cabeça de nossas crianças, luta com nossos guerreiros, entra em nossas lojas e anda por aí pensando ser o maioral. Oren foi misericordioso demais e, mesmo assim, foi punido. Deve isso ao Neru’dian e ao seu filho traidor, curoh’nekedoh...

Uma segunda aura inundou o salão e as duas que combatiam em pé de igualdade foram erradicadas. Um homem alto de ombros largos, barba grande e marrom saiu do arco atrás do balcão.

– Espero que estas palavras nunca mais sejam ditas em minha presença... ou melhor, em qualquer lugar que não seus próprios pensamentos, Ómra.

O irmão de Fioled se virou. Cineáltas do clã Echanti, pai de Ómra e Fioled, senhor de Pylpunt, o encarava de braços cruzados.

E estava realmente enraivecido.



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