Volume 1

Capítulo 19: NIILISMO OU CONTRIÇÃO?

Kai e Mael levaram os tessaya com eles de volta ao Reino da Orquídea.

Sua volta foi mais tranquila se fosse para comparar com a ida. Enfrentaram mais meia dúzia de caranguejos e ratos enormes. Ainda deram de cara com um bicho realmente feio de face mole e gosmenta, que piava como um pássaro.

Mas, ao contrário do que ele pensava, essas criaturas estranhas estavam apenas indo em direção dos corpos dos caranguejos.

Uma espécie de recicladores dos recicladores. Se é isso que essas criaturas estavam fazendo.

Levaram cerca de dois dias para retornar ao Reino da Orquídea, mesmo com os atalhos usados por Mael.

O vitanti achou melhor não usar os túneis, portanto, ao retornar às redondezas da Grande Entrada, soprou um apito que não fez som algum.

Demorou, no entanto, quase dez minutos para que pios como o de corujas soassem por todo o redor.

Bastou olhar pra cima que Kai os identificou: fênices. Eram em dez. Os tessaya ficaram muitíssimo impressionados.

Logo fizeram o caminho pelos dutos de ar e tiveram a visão de todo o reino do alto. Mael fez questão de leva-los ao quartel do Sínodo, onde ele mesmo sumiu lá dentro.

Depois disso Kai retornou para as mediações dos Eblomdrude.

Dias se passaram sem que ele tivesse visto Mael ou Abwn. Azalee falou que era muito normal: eles passavam dias em concílio, planejando e debatendo. Muito por isso o Sínodo tinha uma instalação completa na árvore central.

Então Kai teve tempo para si mesmo. Ficou recluso nos jardins de seus anfitriões. Encontrou um riacho que desaguava por trás da floresta.

Descobriu que, de algum modo, o que a princípio pensou ser um imenso lago, se tratava mesmo era do mar. Salgado e azul. Mas não tinha onda, então ele acreditou ser algum efeito mágico do Reino da Orquídea; tal qual o Sol, a lua e as estrelas artificiais.

Mas foi a reclusão em si mesmo que fez Kai se questionar sobre muitas coisas. Não sentia arrependimento ou mesmo remorso pelo que fizera antes. Então por que tornava a pensar nisso? Não conseguia tirar da cabeça o corpo do garoto no chão, sem vida. Ou a mãe dele encarando o lugar onde seu corpo caíra.

Eram imagens que não lhe fugiam. Ele entrou em concílio consigo mesmo. Meditou; recorreu aos livros. Mas não havia muita resposta. A pergunta que se fazia era: pra que? Pra que a crueldade tão escancarada?

Mas o mercenário já havia respondido. Mesmo assim, eles podiam mudar, não é? Porque se uma pessoa fazia mal a uma criança indefesa, independente do que seus pais ou parentes fizeram, essa pessoa era um monstro. Ou essa pessoa teria perdão?

Ele foi o juiz dessa vez, mas e se esse tipo de coisa acontecesse ao redor do reino? Sua mente vagou para o raivoso Enoryt Murphy quando arrancou a cabeça de Helder Mader. Ele poderia ser qualquer coisa, menos mentiroso. Enoryt sentiu mesmo o peso da tristeza de seu povo.

Será que, após matar o carrasco daquela gente, o Touro Negro do Norte sentiu remorso? Algum ato de contrição lhe abateu? A resposta agora era, de fato, indefinida.

E pensar sobre isso o deixou doente. Não conseguiu dormir nem achar paz. Não quando acabara de matar uma pessoa realmente mal – e já tinha feito isso antes; mas o cerne da questão não era ter matado: era ter gostado. E gostou demais de ver o rosto amedrontado do mercenário, incapaz de recorrer à própria magia, destroçado, calado, morto!

E Kai não gostava de injustiças. Isso o causava ira.

Mas será que todo mundo que cometesse atos ruins deveria ser culpado? E, ao agir como a foice, não estaria ele mesmo sendo pior do que essas pessoas?

Mais perguntas surgiam à medida que suas respostas se formavam em sua cabeça. Não era confusão; não era arrependimento. Não era contrição.

O que ele sentia era raiva de si. Raiva, pois, sabia que, ao redor de todo território do homem, quiçá do continente Reiqin, alguém estaria cometendo alguma ruindade. E agora mesmo ele se condenava por ter feito a mesma coisa que o outro, e por não se culpar por fazer isso. Se culpava era por pensar que, neste momento, não estava punindo quem quer que fizesse mal aos fracos. Se sentia mal que, enquanto estava ali naquele reino protegido, salvo por questões políticas de um povo escondido, outros sofriam a dura realidade do mundo.

Ele retirou a adaga que achou nos túneis de seu bolso. Ficou encarando o artífice. Mael comentara que era de ferrofosso, mas não teve mais detalhes acerca do material.

Vinha tentando, sem êxito, injetar chi na arma. Era a única coisa no momento que o tirava dos próprios pensamentos.

Treinava sua aura sensorial quando sentiu que alguém se aproximava. Conseguia sentir a presença de seres vivos, afinal, eram movidos por energia de chi também. Mas era só quando se concentrava, por ora.

Demorou alguns minutos para que a pessoa chegasse. Ele sentiu um cheiro forte de chocolate e perfume de rosas. Teve uma noção de quem era.

– Azalee disse que estaria aqui – Kai ergueu o olhar rapidamente e viu Fioled parada, de mãos para trás.

Ela estava bem diferente de quando se viram pela primeira vez. Isto é... suas vestes tinham mais tecido em alguns lugares. Ela usava um pano cobrindo os seis com uma alcinha sobre o ombro esquerdo. Uma longa saia branca que batia em seus calcanhares. Seus braços nus não estavam pintados, mas cheios de pulseiras.

Em seu pescoço ela usava um colar de cerejeira. Os longos cabelos castanhos estavam trançados. Sua pele continuava irremediavelmente roxa.

Kai desceu o olhar de volta para a adaga. A garota se sentou ao seu lado. Sua pele tinha um cheiro de rosas.

– Esse lugar é muito lindo. Lembro que vinha aqui com Ómra quando éramos crianças – ela sorriu, como se recordasse vividamente. – Bem ali naquela margem foi onde conhecemos Oren. Sempre um insuportável...

– Sinto muito por sua amiga – Kai a interrompeu. – Nos afastamos quando chegamos aqui, não que fôssemos próximos... Mas achei que poderíamos conversar e, desde então, só tive tempo para treinar e sair da Orquídea. Eu... sinto muito por ela.

Fioled lhe encarou com aqueles olhos âmbar. Era uma miríade incrível de marrom sobre marrom. Um olhar realmente lindo. Ela olhou para frente e sorriu suavemente.

– Não se preocupe. Você não teria como saber, afinal. Mas fui tola; quase... quase morri. Acredito que ela está descansando nos lençóis de Eteyow.

Kai fitou o riacho. Ficou tentado a compartilhar o que sabia, mas não queria aumentar a dor da amiga. Ela olhou para ele e encarou a adaga em suas mãos.

– Que tem aí?

– Encontrei nos túneis enquanto explorava com Mael – ele entregou para ela. – Disse que é...

– Ferrofosso. – Ela concluiu, maravilhada. – Achei que tinha sido extinto, há séculos que não vemos esse tipo de material por aqui.

– Então conhece disso.

– Ah – ela sorriu. Kai encarou seus dentes branquíssimos e as presas afiadas. – Meu pai é um ferreiro. Ele conhece ferro e aço como a palma da mão. Se ele visse...

– Pode levar. – Kai disse.

– Sério? – ela indagou, surpresa. Logo voltou a si. – Não posso, é seu.

– Estou te dando.

– Mas..., mas nossos costumes não permitem. Se um vitanti acha algo em uma exploração, isso é dele. Seria...

– Fioled! – Ele exclamou. – Eu não sou um vitanti e, com todo respeito, não ligo pro seu costume. É seu; esse tipo de arma não me tem serventia.

– É verdade. Então eu agradeço. – Ela baixou a cabeça, as tranças tampando seu rosto. – Soube que aprendeu um novo tipo de manti. Como é?

Kai sorriu, aliviado por finalmente ter com quem conversar. Isso surpreendeu até ele.

– É como andar ou acordar. Você precisa, literalmente, respirar. Mas respirar de um jeito correto. Essa manti é como o sopro da vida, é a energia do nosso ser.

– Parece incrível – ela levantou o rosto. – Então acha que falta muito pra controlar?  

Kai ficou calado por um tempo, refletindo.

– Nós nunca sabemos 100% alguma coisa. É como a matemática: está sempre mudando. E, apesar de ser algo tão simples como a energia que nos controla, ela evoluiu em muito. Tem coisas que posso usar partindo do princípio de outras magias e manti. Coisa que não deveria ser possível na época em que a manipulação desta energia estava em vigor. Então respondendo sua pergunta: sim. O controle total se adquire com conhecimento. Tudo está sempre mudando. Não dá pra parar por aí.

Fioled o encarou e sorriu.

Ele ergueu uma sobrancelha.

– Que foi? – Indagou, curioso.  

– Você é estranho, Kai. Quando nos conhecemos achei que era um idiota. E tive certeza quando perguntou como podia enfrentar os Gorilas de igual pra igual. E mais certeza ainda quando você os enfrentou e voltou vivo, mesmo sem manti pra se proteger. Mas, o que mais me impressionou foi que, apesar de não ter forças, você não hesitou. Não tem medo de lutar por aquilo que acredita, mesmo que todos os ossos do seu corpo se desmontem. Mesmo que seu oponente seja um Gorila monstruoso, você não hesita.

Ele baixou a cabeça. Aquilo o fez refletir. Não sabia que era essa a imagem que dava. Ouvir essas palavras o fizeram corar.

– Mas não se ache muito, ainda acho você cheio de bravata e um idiota irracional.

Kai soltou uma gargalhada. Passaram o resto do dia conversando sobre besteiras desde o nascer do Sol até o tipo de peixe que podia ser pescado no mar.


***


Após a boa conversa com Fioled, ela voltou para casa mais cedo. Ele se demorou um pouco mais; voltou no fim da tarde.

O riacho ficava no jardim leste do centro do terreno Eblomdrude, que era onde estava situada a casa deles.

Ele passou pela árvore onde treinara o chi pela primeira vez e ia caminhando em direção à casa quando uma voz o chamou.

– Que faz nos terrenos do Neru’dian, imundo?

Ele se virou e, sentado num tronco, Oren o encarava. Continuava careca, laranja e carrancudo. Kai o ignorou e tornou sua caminhada.

Antes que caminhasse alguns centímetros mais, sentiu a mão do vitanti tocando seu ombro. Em resposta, seu movimento foi muito rápido e impulsivo: ele levantou o braço, a fim de se soltar. O toque do vitanti permaneceu firme, então ele também segurou o seu ombro e ficaram se encarando.

A aura de Oren, forte e opressora, saiu. Mas Kai permaneceu; e adorou ver o rosto do vitanti: surpreso e arrogante.

– Vejo que aprendeu um truque ou dois.

– Posso mostrar, se quiser.

– Eu adoraria, mas aí teria que te prender por desacato.

– Suas leis não me são importantes, mudanti.

Oren franziu o cenho e sua feição ficou sombria.

– Onde ouviu esse termo? Quer morrer? Eu não sou um...

– Mudanti? É claro que é – Kai sorriu. – Pele laranja, gênio forte. Aposto que foi expulso de lá por não atender aos requisitos de babaquice. Mas acho que tem se saído bem.

Oren deu um soco no rosto de Kai, que cambaleou até cair no chão.  

Que forte! Mesmo tendo um revestimento constante de chi, o golpe doeu.

Ele se ergueu e Oren já estava a poucos centímetros, portando uma longa lança dourada. O vitanti espetou o chão várias vezes e grandes chumaços de terra levantaram.

Kai foi ágil e rolou para o lado, mas quando se ergueu novamente, foi acertado com o cabo da lança bem na bochecha. Seu rosto ardeu e sangue jorrou.

Oren riscou o chão e desferiu vários golpes, acertando os pontos não críticos de Kai. Foi uma surra.

O rapaz foi arremessado longe depois da avalanche de golpes. Oren se aproximou a passos lentos.

– Eu sou mais forte, superior, mais inteligente, mais...

– Mais lindo? – Kai sorriu, ciente do mau momento. – Achei que poderia dizer mais careca também.

– Você debocha, mas sabe que é verdade. Não há como me ganhar, curoh’nekedoh. Eu sou superior.

– É, você já disse isso.

Kai respirou fundo. Chi percorreu seu corpo. Ele ergueu os punhos e diminuiu o espaço.

Fez um movimento horizontal com o punho direito; Oren ergueu a lança para defender, mas era uma finta. Ao invés disso, foi acertado com uma joelhada nas costelas. Ele arqueou de dor e recebeu uma saraivada de socos.

Foi mais ou menos um minuto direto de socos: diretos, socos lançados com a mão trocada, cruzados, ganchos.

Ele só conseguiu sair do ataque massivo quando ergueu um escudo etéreo: era forte o suficiente para resistir aos socos de Kai.

Oren pulou para trás, arrastando areia e grama ao pousar. Ofegava e sangue escorria de seu rosto. A magia de escudo ruiu assim que ele estava longe o bastante de Kai.

– Toma lá, da cá. – Debochou ele.

Mas foi nesse momento que percebeu: Oren não era bom com magia.

Isso era comum até entre humanos; aqueles que não se saiam bem com feitiços, viravam combatentes arcanos. Mas é óbvio que, para ser um combatente arcano, as mínimas artes marciais mescladas com manipular mana eram necessárias.

Oren era um Combatente Arcano. E sua energia não era mana, era éter. As coisas piorariam.

O vitanti respirou fundo e empertigou o corpo. Deu um passo e, num segundo, diminuiu o espaço. Ele empurrou um braço e a lâmina da lança deslizou por baixo, como se fosse uma extensão de seu corpo. E era mesmo: as artes da espada nunca deixaram mentir.

O movimento foi parecido com uma estocada de esgrima, com Oren dando um passo à frente a fim de perfurar o corpo de Kai. A lâmina passou zunindo pela cabeça do jovem rapaz.

Quando ele desviou para o lado, ela o seguiu horizontalmente, mantendo a mesma força e velocidade. Pareceu a época em que Kai utilizava bolas de mana que perseguiam seus alvos. Os pelos de sua nuca eriçaram.

Então ele desviou para baixo. Oren, que segurava a base da lança com uma mão teve de segurar com a outra, a fim de mudar o curso da arma mais uma vez.

Então a arma desceu também.

Foi aí que ela encontrou seu alvo, tal qual as bolas de mana de Kai.

Ela atingiu em cheio o ombro direito dele, a lâmina entrando como faca em manteiga.

O rapaz urrou de dor. O mundo girou e tudo escureceu. 



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