Volume 1
Capítulo 16: MÉTODOS ARCANOS DAS RUNAS, MATIZES E SELOS
Ao sair da barraca, Kai deu de cara com um ambiente completamente modificado.
Um toldo havia sido montado e, ao longo da base circular, haviam cadeiras, uma fogueira e até uma mesa.
Sentado numa das cadeiras, Mael revirava uma panela sobre o fogo baixo da fogueira.
Kai se aproximou e ficou surpreso com o que viu: runas e matizes sob a fogueira. Mael pressionou uma runa e girou um matiz com vários selos no sentido horário.
O fogo aumentou gradualmente. Os olhos de Kai se arregalaram.
Mael ergueu o rosto.
– Que foi isso? – indagou o rapaz.
O vitanti sorriu.
– Método Arcano.
– Incrível... não sabia que isso aí existia. Quer dizer, eu já vi escudos protetores sendo montados e tal..., mas nada assim.
– Isso que fiz é só o básico. Vitanti são um povo do campo, então isso é mais usado para o nosso dia a dia.
– Onde aprendeu? – Kai perguntou, sentando numa cadeira.
– Com meu pai. Ele é um sábio, afinal. Criou muita coisa que ninguém nem sonharia em inventar. Isso que fiz... é só uma de suas invenções.
– Legal.
Mael voltou a fitar o fogo. O silêncio se instaurou; Kai foi quem o quebrou.
– Quanto tempo estive cultivando?
– Uma semana – Mael apertou de novo a runa e o fogo se apagou. – Tomei a liberdade de montar um assentamento. E então, teve alguma melhora?
O rapaz assentiu.
– Tive um sonho estranho.
– Conte. – O vitanti se levantou e pegou dois pratos onde despejou o líquido borbulhante cheio de carnes. Pegou dois copos de latão e despejou outro líquido, este transparente.
Kai se aprumou na cadeira e contou a experiência. Mael ouviu tudo com afinco, sem interferir uma vez sequer.
– Não sei o que possa significar... meu pai é quem costuma interpretar sonhos.
– Mas aí é que está o cerne da questão – Kai pegou o prato e bebeu da sopa. – Não sei se era um sonho... era mais como se eu estivesse numa dimensão espiritual.
– É como eu te disse... tudo o que sei está no livro. Você é a primeira pessoa que conheço que consegue utilizar essa energia. Claro, outros povos falam dela...
– Como assim?
– Eu sou um andante; posso me considerar multifuncional. E eu ando por todos os reinos. Já estive em outros reinos... tanto no dos homens, quanto no dos elfos e anãos. Estive no Grande Amarelo. Lá existe uma infinidade de povos; tudo misturado. Há orcs, ogros, trolls, elfos, homens, anãos.
– Sim, você disse daquela vez. E aí?
– Os que mais lembram de algo parecido são os anãos. Eles são ótimos ferreiros e arcanos, entende? Se tiver alguma dúvida acerca disso, é bom tratar com eles, seja em Montarumos ou no Grande Amarelo: será além do território do homem que encontrará a resposta.
Kai assentiu; era engraçado que as únicas pessoas que poderiam saber sobre uma técnica milenar humana fossem os anãos; logo eles que eram conhecidos por seu egoísmo.
E mais engraçado era o fato de humanos e anãos não se darem bem. Seria uma provação e tanto.
Ele parou para refletir sobre sua experiência até aqui.
Era fato que a cada pergunta que tivesse, mais perguntas surgiriam no lugar das respostas. Tinha que encarar a realidade de ser o único usuário daquela energia. Tudo a seu respeito era novo e misterioso.
Uma fina garoa começou depois de comerem. Combinaram de partir assim que o dia raiasse – se é que os raios de sol penetravam aquele lugar.
Kai se sentou numa cadeira enquanto olhava a floresta: silenciosa e barulhenta ao mesmo tempo. Aquele som que ela fazia sempre lhe acalmou; desde pequeno.
Observava os galhos e folhagens se tocando no alto, baixos piares e altos guinchos. Havia muito mistério sobre este lugar. Tinha tantas perguntas a fazer para os vitanti que nem conseguia organizar qual delas viria primeiro.
Mas se tratava da mesma situação de antes: respostas trariam mais perguntas. E não sabia se estava pronto para se acomodar, entrar no fluxo de vida daquele povo tão estranho e curioso.
Ele levou o olhar para Mael que desenhava runas no cabo de uma adaga.
– Que está fazendo? – perguntou.
– Um anão de Morrofirme me ensinou – ele se aproximou e entregou a adaga para Kai – Aqui.
O rapaz girou a arma em suas mãos. Haviam muitas runas, é verdade. Era como um emaranhado, uma por cima da outra.
Ele se lembrou da época de academia.
– Agora... faço isso e isso... – Mael pegou duas figuras e juntou-as; elas formaram um círculo. Continuou o processo de juntar as runas até que formaram um enorme quadrado com círculos, triângulos e retângulos dentro.
– Um matiz... como?
– E isso nem é o mais interessante. – Ele girou o matiz em sentido anti-horário e o selo brilhou num vermelho firme.
Ao pegar a adaga, arremessou-a no meio da floresta, erguendo e abrindo a mão logo em seguida.
Dali a pouco, uma luz brilhou do meio da floresta e lá veio a adaga, girando compulsivamente. Vinha numa velocidade tão grande que Kai acreditou que Mael perderia seus dedos; mas não perdeu.
Há poucos centímetros de se encaixar na mão do vitanti, ela diminuiu a velocidade, pousando suavemente.
– Uau! – Kai exclamou. – Como faz isso?
– É simples: junto magia e método arcano. Ao induzir minha energia do éter, ela grava meu DNA. Pra ser um arcano, deve ser um exímio conhecedor de magia. A magia no geral, é claro. Não precisa ser um guerreiro, só o conhecimento é o bastante. Mas ainda tenho que ajustar isso, o uso de runas é excessivo.
Kai pensou; na verdade, ao ver o outro ajustando as runas, se lembrou de uma aula que teve com o velho Siobhan.
Faça o simples ele dizia.
– Posso tentar...?
Mael lhe olhou de relance e olhou de volta para a adaga.
– Tudo bem. Mas a primeira vez pode ser um pouco... complicada.
– Eu tenho certo conhecimento com runas. Não um nível dos anãos, mas... O principal desse projeto é fazer a adaga gravar seu manti e fazer ela voltar, né?
– Isso. Mas isso é o mais fácil; o que demora mesmo é o processo de criação de runas. Leva dias, talvez semanas.
Kai encarava o selo de quadrados, retângulos, triângulos e círculos. E se...
Ele desativou as runas e a magia se desfez. Mael soltou um muxoxo.
– Tem um livro de runas?
O vitanti assentiu.
– Sempre ando com um.
Pegando o livro, Kai passou pelas páginas e bateu o olho numa runa que viu há muito tempo.
Pediu um papel e algo para riscar; o outro lhe entregou um papiro e uma pena mágica.
Primeiro desenhou a runa que viu no livro. Depois desenhou um círculo. Colocou a runa com forma de losango equilátero ao lado da runa circular. Adicionou uma conta matemática e a entregou à Mael.
O vitanti encarou o papel de modo estático. Em seguida, seu queixo desceu.
– Isso... isso criaria a...
– Certamente – Kai sorriu.
– Espera um pouco – Disse Mael, correndo até sua bolsa e voltou em seguida com um quadrado feito de pedra negra.
– Que é isso aí? – indagou o outro.
– É um Quadro Rúnico. Invenção dos anãos... ele ajuda a criar runas, evita o desgaste de manti... sabe como é. Quer testar?
O rapaz pensou a respeito. Se aquele tal quadro era movido a energia, não explicitamente a mana, poderia ser que desse certo. Ele assentiu, afinal.
– Tudo bem – Mael lhe entregou a pedra. – Basta injetar energia. Pense que...
– Eu entendo...
Kai fechou os olhos e inspirou fundo. Fez o processo de expelir chi do corpo e uma energia etérea lhe percorreu.
A pedra vibrou sobre sua mão. Já de olhos abertos, viu a pedra se abrir como uma rosa desabrochando. Dela, um painel flutuou em um tom verde. Kai podia ver através dele.
Se espantou com tamanha engenhosidade. Nunca tinha visto algo tão... avançado.
Maior era o espanto quando percebeu que foi adequada até mesmo para uma energia antiga, há muito perdida. Os anãos eram mesmo uns gênios no quesito construção e criação.
– Devia ver sua cara – Mael riu.
Kai tomou a liberdade de tocar no painel; então desenhou o losango que ganhou um tom vermelho; acrescentou o círculo e a conta matemática. Segurando o losango com a mão esquerda e o círculo com a direita, deu três giros no primeiro e um meio giro no outro.
Em seguida colocou um dentro do outro, a conta matemática pulsando vivamente. Pairando no ar havia um matiz redondo com vários outros dentro. Houve um forte brilho e um cheiro forte quando, por fim, adicionou a conta. Quando cessou, bem no centro uma pedrinha cinza com um desenho brilhava com uma cor amarela.
Mael estava boquiaberto.
– É ela mesmo. A runa...
– ... Othala, a runa ancestral de ligação – Kai cortou. – Sim. Agora... – ele pegou a runa com os dedos e os círculos se desfizeram. Apertou a pedrinha cinza e ela se desfez, apenas o símbolo ficando. Kai a colocou no cabo da adaga, então ela brilhou num azul forte.
O brilho permeou o cabo e depois se apagou. Ele a entregou ao vitanti, que observou tudo maravilhado.
– Creio que pra ativar essa runa, basta inserir sua manti.
Foi o que Mael fez. Depois de jogar a arma e ela voltar com o dobro de velocidade e sem fazer qualquer ruído, ele olhou para Kai.
– Como fez isso? Criou uma runa a partir de outras matizes... em tão pouco tempo e... E logo uma ancestral. Me diga, como fez isso? Só vi tal maestria na mão de anãos.
Kai deu de ombros.
– Sou bom com matemática. Mas o segredo é fácil: você complicou demais; achou que pra fazer um feitiço desse era necessário selos e matizes combinados; isso tornou a arma mais lenta. Mas é simples. Troquei todos os selos pelo losango de categoria A, que substituiria todos os outros selos tão bem ou melhor quanto. Adicionei o círculo pra dar circunferência e proteção; a fórmula de Zipler e o eixo de Falcoul foi só pra complementar.
– Falcoul e Zipler... esses são famosos matemáticos humanos.
– Sim – Kai sorriu. – São os pais da geometria arcana. Estudei sobre eles há um tempo. Sabe, era necessário na academia pra ser um soldado de rank arcano.
– Me enganou direitinho...
– Que quer dizer com isso?
– Você... todo surpreso porque eu fiz um sistema de fogo movido à runas, sendo que inventou facilmente uma runa do nada. Sabe quantas horas seria necessário pra criar uma única runa? E os selos? Seu safado genioso.
– Mas eu realmente fiquei surpreso. E tive ajuda do seu Quadro Rúnico. É que... bem, nunca me ocorreu usar as runas pra isso. Mas a gente se vira com o que tem. Lá na academia fizeram a gente criar feitiços de escudo de grau 5, tem noção?
– Com esse nível arcano, tenho sim. Vamos – Mael pegou uma cadeira e se sentou ao lado de Kai. – Vamos trocar conhecimento.
E passaram o resto da noite bebendo e conversando sobre runas, selos e matizes.
***
Kai acordou no outro dia com uma forte dor de cabeça. Foi dormir quase ao amanhecer, bebeu demais e o assunto sobre runas o deixou enjoado.
Saber e gostar eram duas coisas muito distantes. Ele sabia uma coisa ou outra sobre runas; grande parte de sua habilidade estava voltada para a rapidez e facilidade que tinha em cria-las. Mas nunca gostou muito; matemática sempre foi um péssimo negócio pra ele. Queria evitar economia o máximo possível.
Afinal, o que o fez ficar desgostoso foi que os professores sempre diziam pra não misturar matemática com runas. Mas ele bem sabia que uma precisava da outra. O livro rúnico dos anãos era bem específico sobre isso. Mas os matemáticos sempre foram pouco compreendidos no reino dos homens.
O louvor nunca esteve em quem criava feitiços e magias e sim em quem as executava. Era cruel, mas a dura realidade em que viviam.
Passados vários minutos de seu acordar, ele ouviu um TUM-TUM-TUM contínuo. Saiu de seu saco de dormir e foi até a beira da base circular e olhou além. Não tinha nada.
Deu de ombros e fez percurso até seu saco; sua intenção era se engolfar nos cobertores e dormir mais um pouco.
Um estrondo frustrou seus planos, no entanto.
Ele tombou pra frente e a árvore sacudiu.
Mael se levantou depressa, olhando para todos os lados.
Um segundo baque.
Desta vez, Mael foi arremessado longe e Kai deslizou pelo piso de madeira liso de volta à beirada do centro circular. Seria uma queda feia.
Antes de cair por completo, formou garras com os dedos das mãos e, com uma forte pressão de chi, afundou-os na madeira que ruiu ao seu toque.
Ele balançou para lá e para cá, a árvore emitindo um ruído agudo. Olhou para baixo e franziu o rosto.
Uma lagarta enorme e preta andava para trás e para frente bem onde ele olhou há alguns minutos. Tinha duas antenas enormes e marrons saltadas para cada lado do que deveria ser sua cabeça. Abaixo dela, um bocado de pinças em forma de pernas, agindo simultaneamente.
Kai se balançou e puxou seu peso de volta para a base, os dedos ainda cravados no piso.
Mael veio deslizando e, pouco antes de cair, enfiou sua espada no piso. Deu olhada lá embaixo e fez uma careta.
– Estamos sem sorte, Kai – gritou em meio aos guinchos da criatura. – É uma centopeia.
– Percebi – Kai respirou fundo, o chi usado em suas mãos tomando uma grande parte de sua energia. – Que quer fazer?
– Temos que matá-la.
– Concordo. Qual o plano?
– Que acha de pôr em prática o que descobriu?
Kai sorriu, um rubor subindo seu pescoço.
Meio minuto mais tarde, Mael pulou lá de cima com a espada erguida acima da cabeça. Não canalizou Éter, apenas golpeou o casco da centopeia, que ricocheteou.
A centopeia parou de bater na árvore e virou sua atenção para o vitanti.
Entrementes, Kai se soltou da base e saltou também.
Chi fluiu por seus braços e pernas; o ar bateu contra seu rosto, frio e úmido.
Ele imaginou uma figura em forma de disco se formando na palma da sua mão.
Cada vez que guiava o chi para ela, maior ficava. E cresceu até que tivesse o tamanho da cabeça de Pele-pétrea.
Sua energia zunia e soltava faíscas, permeando entre roxo e azul. Ele a lançou; que rodopiou e rodopiou. Quando encontrou a couraça da criatura, resvalou e foi em direção das árvores. Não fez nem cócegas – em contrapartida, cortou sete árvores em sequência –; esse ataque só fez o bicho voltar sua atenção para ele.
Uma de suas antenas agarrou a perna de Kai, que ainda estava no ar; ele praguejou. Foi arremessado tão longe que mal teve tempo de se proteger.
Formou um escudo de energia às pressas ao redor do corpo.
Atingiu em cheio o solo e terra, raízes e musgo subiram.
A dor foi amortecida, mas não se tornou menos dor. Se levantou praguejando e observou Mael enquanto corria das pinças da criatura.
Rogou todas as pragas que conhecia, em língua do homem e em língua estrangeira.
Finalmente criara uma técnica interessante, mas não fez um arranhão sequer. Tinha de melhorar o dano.
Voltou correndo para perto de Mael que desviava com louvor de pinceladas fugazes.
– Já tentei vários golpes – berrou, esquivando de outra pinça. – A couraça é muito resistente.
– Ela deve ter um ponto fraco.
– Deve sim – Mael suspirou enquanto arrancava uma das pernas. – Tem algum plano? Ainda estou meio grogue.
Kai pensou por tempo demais; Mael perdeu a paciência.
– Vamos, cara; não é fácil esquivar delas.
– Tentemos pela parte de baixo.
– Boa ideia. – Mael gritou, sorridente. – Se sua couraça é dura, quer dizer que tenta proteger alguma deficiência. Ótimo raciocínio, sr. geometria.
– Ei! – Kai pigarreou. – Pensei que estivesse grogue.
– Estou com sono, não morto. Agora vai.
Kai assentiu.
Uma lâmina de chi pulsou e se formou ao longo dos dedos dele. Só teria uma chance, seu controle sobre a energia recém adquirida ainda era muito fraco.
Contabilizou que teria cerca de um minuto antes de ficar exaurido.
Impulsionou as pernas, ganhou velocidade. Correu ao longo da lateral da criatura; as pernas se moviam simultaneamente. Esticou o braço, a fim de cortar o máximo que pudesse.
Sua teoria era correta: as pernas da centopeia eram fracas em relação ao casco. Quando ele cortou boa parte delas, ela cedeu pro seu lado.
– AGORA! – gritou, dando saltos para trás.
Um minuto se passou e nada. Sua mente já começava a girar em busca de uma outra alternativa.
Então, de chofre, ouviu-se um enorme estrondo. A criatura caiu de costas, as pernas parando de se mexer. Em seguida, uma densa aura como um vendaval veio em sua direção.
Sangue roxo e carne vermelha caíram do céu.
Depois de longos minutos, Kai caminhou até o corpo estático da criatura.
Ao se aproximar, notou que no peito da centopeia havia um buraco gigantesco, como uma cratera.
Sentado entre as pinças imóveis, Mael limpava o sangue de seu rosto, irritado.
– Precisamos dar o fora daqui, alguém está tentando nos matar.