Volume 1

Capítulo 1: JUIZ, JÚRI E CARRASCO

Kai estava quieto no meio da floresta, próximo ao riacho. Os únicos sons que ouvia eram os da natureza. O descer do córrego; o piar do pássaro. O zumbido do mosquito, o chilrear da coruja. O balançar das árvores. Sua própria respiração.

Ele não fazia som algum; não exibia qualquer movimento. E sua respiração era completamente calma, como se fizesse isso um milhão de vezes.

Esperava que o cervo se aproximasse do riacho: matar a sede. O tempo já começava a mudar e, em breve, aquele mesmo rio estaria congelado. Era hora de agir. Puxou uma flecha da aljava com dois dedos da mão direita e ergueu o arco na altura dos olhos com a esquerda; num segundo preparou a flecha na corda.

A pena na haste roçou em seu rosto; fizera a mesma linha branca na bochecha que sempre fez desde que começou a caçar. Não fechou os olhos negros; apenas observou. Aguardou o momento. O vento veio, lhe bagunçou os cachos negros, que embaçou sua visão. Não fez mal, poderia acertar aquele bicho de olhos fechados, se quisesse. Mas não queria. Seria arrogância; e disso estava farto.

A lufada se foi e ele soltou a flecha quase que imediatamente. Estava cerca de 10 metros do animal e, em 10 segundos, a flecha percorreu o caminho até o dorso do bicho. Ouviu-se uma lamúria.

Kai se ergueu, colocou o arco posicionado num ombro e levou a mão até sua coxa direita, onde havia uma faca. Puxou-a ainda dando passos leves, inaudível.

Correu mais uma pequena distância e chegou perto da margem do rio. O bicho estava caído, bufando. Havia nervosismo, medo. Batia a cabeça no chão, em forma de protesto. A flecha se fincou bem no meio da barriga, pelo flanco. Fincou-se até o meio da haste. Kai ficou alguns segundos admirando os longos chifres.

Foi até o animal caído, que permaneceu a bufar. Se abaixou em um joelho e colocou uma das mãos sobre o animal. Acariciou-o e levou a mão até onde a flecha estava. Puxou num movimento brusco, arrancando dor e berro do bicho. Ele acalentou-o, acariciando sua pelugem dourada, quase negra em algumas partes.

Se aproximou mais da cabeça do animal e fitou seus olhos. Uma enorme bola de negro, branco e amarelo, como o pelo dourado. Lágrima caiu, e Kai entendeu sua dor. Acariciou o pescoço do animal e fechou os olhos, fazendo uma rápida prece. Depois levou a mão que mantinha atrás das costas, a que segurava a faca, até o pescoço do animal e, num corte seco, cessou sua dor.

Sangue escorreu enquanto o bicho se debatia. Era um sangue negro, grosso, que Kai adorava olhar. Limpou a faca com a ponta de sua capa e a guardou. Teria um bom banquete nessa noite.

                                            
 ***


O Castelo Negro se preparava para mais um inverno. Neve Sempiterna já estava acostumada com tanta neve e com um clima tão frio. Essa cidade se localizava no extremo norte de Algüros, sendo regida por uma das Dez Grandes famílias do reino. Os Murphy.

Cerca de 12 membros – jurados e de sangue – dessa família se reuniam no grande salão, fora os membros de outras nobrezas.

As paredes do salão haviam sido construídas com tijolos reforçados com mana, para aguentar bem o frio. Nelas, enormes flâmulas pendiam com uma única imagem: o brasão dos Murphy. Numa espécie de altar, uma mesa enorme estava disposta de frente para o salão, com cerca de oito cadeiras atrás dela. A visão dali permitia a quem estivesse sentado ver quem adentrava pelas enormes portas.

Cerca de quatro mesas rodeavam o meio, com pessoas rindo, comendo, bebendo e se divertindo. Era o aniversário de cinco anos de Mairon, filho mais novo de Lorde Murphy. O pequeno menino já tinha ido se deitar a um bom tempo; no entanto, isso não atenuou a comemoração dos demais.

Kai observava de longe, sentado mais afastado e tomando um copo de cerveja quente. Alguns lordes de famílias secundárias se faziam presentes, com mulheres em seus colos e se empanturrando da carne que Kai caçou.

Num ponto, Helder Mader, um homem baixinho e gordo, era o que mais bebia e se atirava para as moças. Como de praxe, era sempre o primeiro a chegar e o último a sair.

Próximo a ele estava Clay Dito, um homem bruto e de aparência igualmente bruta. Era um Mestre da Espada de grau 5, conhecido pela alcunha “Lobo Louco”, pelo seu método de luta. Comandava a tropa de Neve Sempiterna. Kai gostava muito deste.

Tinha Lucio Fal, que era quem detinha 30% de ouro aos cofres dos Murphy. Era um homem tão estranho quanto os acima citados. Sendo alto e robusto, com a pálpebra esquerda caída e beiços pra baixo. Tinha um olhar astuto, como Kai bem já conhecia. Tinha, no entanto, de fato sua nobreza a zelar; várias moças rodeavam-no.

Kai observou à esquerda, onde estava o mais novo senhor da casa Fellner, Drico, com seus cabelos oleosos e cacheados caídos para frente. Era responsável pelo comércio bruto de Neve Sempiterna.

Neve Sempiterna não era tão grande assim, mas detinha poderio militar, trazia grandes lucros para Algüros, e os Murphy eram a primeira casa a se instalar ali após os Walsh, a família real.

Para Kai, a festa não era um aniversário: estava mais para uma despedida de solteiro. Ou simplesmente uma despedida. Algo acontecia, não era do feitio de Lorde Murphy dar festas como essa, principalmente em se tratando de aniversários; e chamar aquelas pessoas… Não. Ele não era de dar murro em ponta de faca.

Notou também os guardas pessoais de Lorde Murphy um tanto calmos, sem beber muito. Não era de seu feitio.

Ele finalmente pousou o olhar na mesa principal. Lorde Enoryt Murphy olhava para a cena em sua frente com uma enorme calma, indiferente. Ele era conhecido por sua capacidade de tomar decisões; um Arquimago de categoria B; um sujeito bastante forte.

Seus cabelos ruivos pareciam ter sido banhados pelo fogo, e seus olhos eram extremamente verdes. Seu rosto era salpicado por sardas, e ao redor de sua boca havia rugas; indicador comum de alguém que sorri muito. Trajava-se de vestes longas e negras.

Ao seu lado, seu primogênito, Bron; encarava o salão com seus olhos negros e distraídos. Era a cara esculpida de seu pai. Acabara de chegar aos 19.

Do lado esquerdo de Lorde Murphy, Bimos Lei apenas passava os olhos pelo salão, com uma fina linha marcando a ponta de sua boca. Era careca e havia uma cicatriz em formato de X que começava em sua testa. Pousou os olhos em Kai e acenou com a cabeça de lado.

O rapaz repetiu o gesto, ciente da aparente falsidade; o homem não era nada amistoso. Na verdade, era muito astuto: uma cobra. Mas uma cobra que agia do lado de lorde. Não tinha como uma cobra matar uma onça. A onça morreria bem como a cobra. E, nesta analogia de cobras e onças, Lorde Murphy era uma onça, com seus olhos à espreita, aguardando o momento de atacar.

Enquanto Kai deu uma mordida na coxa que segurava, um soldado veio até o lorde e sussurrou em seu ouvido. Ele assentiu e se inclinou para Bron e logo depois para Bimos. Qualquer que fosse o plano de Enoryt, iniciara-se ali. Desembestado e vertiginoso.

Como Kai estava mais próximo da porta, ouviu uma zoada do lado de fora. O restante daqueles bêbados não se incomodou.

Entrementes, lorde Murphy ergueu a mão direita, atraindo a atenção dos lordes. Foram se virando para frente um a um.

– Agradeço pela presença dos senhores. – Disse Enoryt, no rosto uma carranca impassível. – Senhores Firmo e Mostus, que vieram do Sul; uma viagem longa, obrigado pela sua presença.

– Oh! – bradou Firmo, fingindo modéstia. Era baixinho; seus olhos entregaram sua astúcia. – Não seja compelido a isto, senhor. É sempre uma honra estar em tua presença.

– Quantas horas de viagem foram, sr. Firmo? – indagou Bron, como se não soubesse.

Grayson Firmo ajeitou os óculos em seu rosto e se endireitou. Ele era um homem que cuidava das fazendas e plantações, que ficavam ao Sul de Neve Sempiterna; era já na saída da cidade. A família Firmo era a mais proficiente neste ramo em Neve Sempiterna, sempre lucrando para os bolsos cofres da cidade. Ele se divertiu com a pergunta.

– São, precisamente, 14 horas de viagem, milorde – disse sorrindo para uma mulher ao seu lado.  – Pegamos a estrada do rei em determinado momento, isso nos deu um tempo mais rápido e um caminho seguro.

– Decerto. – Respondeu Enoryt, mais pra si do que pros outros. – Estamos gratos com sua presença também, Mostus. É sempre bom encontrar com você.

Tímido Mostus meneou a cabeça, honrado. Havia certa leveza envolta de si. Ele tinha uma pele mais escura, e seu cabelo era encaracolado. Havia um sorriso nobre em seu rosto, que deixou Kai se sentindo divertido.

– Eu que devo agradecer, sua Grandeza – disse, anulando tudo aquilo que Kai havia pensado sobre ele. Era um bajulador de primeira. – Não sabe a honra que me dá ser chamado para tal evento. Pena que cheguei tarde demais, acabei perdendo...

– Não se preocupe. – Cortou Enoryt, seco. – Agradeço aos senhores Mader, Fal, Fellner, Dito, Glory e Moraes. Sua presença é de suma importância para mim.

Alguns deram sorrisinhos de agradecimentos, carregados de honraria e tributo. Eram todos agradecidos de estar ali, Kai já tinha entendido. Mas por que continuava com o mau pressentimento?  

– No entanto – disse Enoryt, se ajeitando em sua cadeira de espaldar alto. – Há coisas que eu gostaria de dizer.

Os homens permaneceram calados.

– Como bem sabem, Algüros está passando por uma situação muito delicada no momento. Sua alteza real, Brann Walsh, tem a doença cinza. Dizem os Grandes de Algüros que é provinda de uma feitiçaria da Tribo dos Sanguinários. Sabem bem como é esse povo. E quem toma conta de nós na ausência de vossa alteza é seu filho mais velho.

Alguns riram ao célere ataque às Tribos Sanguinárias. Era da consciência de todos que estes já haviam sido expulsos das terras do norte e, quiçá, definhado para além das fronteiras norte, nas terras frias da grande Geleira.

– No entanto, Neve Sempiterna é próspera – ele ergueu um dedo. – É o que eu adoraria dizer. Tivemos problemas com assaltantes ao redor da cidade. Clay teve problema essa semana, não somente na baixada Ibiã, não é, capitão Dito?

– Sim! – Clay soltou um arroto. – no monte Zeller e no leste da Vilela, onde deveriam ser lugares mais tranquilos, tivemos muita dificuldade com bares e pequenos comércios sofrendo com essa calamidade. Esses pestinhas sabem se esconder, meu senhor.

– Decerto – concordou, ignorando a grosseria. – Há também o infortúnio para os Mader, ter seu banco assim... afanado. E os Firmo, que regem boa parte das fazendas. Segundo seu relatório mais recente, houve roubo de gado e de comida. – Ele olhou para Grayson Firmo que concordou com o que foi dito. –  Um revés, de fato. Estamos tendo muitos roubos e sequestros constantes de pessoas ao redor da cidade inteira. Mas nossos investigadores mais confiáveis estão tratando disso. Apesar disso, Helder doou cerca de cem moedas de ouro para um cofre recém aberto no nome de Mairon, meu caçula. Obrigado.

Ele olhou ao redor. Todos bateram palmas, impressionados.

– O que não consigo entender, no entanto, é sobre a possibilidade de isso ser feito em plena crise.

Helder Mader ficou atônito. Empalideceu, como se perdesse totalmente o sangue do corpo e o álcool indo junto.

– Sim, porque, se você é roubado, o correto é tentar repor aquele dinheiro, não ficar gastando mais e mais sem ter. Qual foi a quantia, Bimos? Do dinheiro roubado.

– Cerca de 250 mil moedas de prata... que equivalem a 12.500 moedas de ouro. Isso é bem alto, até para os padrões de Neve Sempiterna.

– E quanto de ouro da cidade vai para o Banco de Gelo ao decorrer do mês, Bimos?

– Cerca de 25 mil moedas, senhor. Um valor significativo, devo dizer.

Enoryt abaixou a cabeça, nada surpreso.

Alguns lordes começaram a olhar para Mader, curiosos e severos.

– Mas isso não é o bastante para suspeitar de alguém... – Disse Helder, olhando ao redor.

Enoryt Murphy ergueu as sobrancelhas.

– Suspeitar? Não há suspeitas aqui, uma vez que esse dinheiro pode ter sido tirado do seu próprio bolso. O dinheiro dado em benesse, digo. Sim, por que existiria suspeita se o seu dinheiro e o dinheiro roubado do banco não se cruzam. Afinal, a quantia roubada diz respeito apenas à cidade. Que você teria com isso, não é?

Helder Mader se levantou, cambaleante.

– Vá direto ao assunto, Enoryt. Começa com essa conversa do nada, onde quer chegar? Não pense que pode me expor ao opróbrio, eu...

A aura daquele salão mudou.

– Eu não ordenei que se levantasse, Helder. – Mader caiu de volta no banco, mufino. Kai percebeu alguns prendendo a respiração. – Seu saldo bancário foi checado, bem como o de cada um aqui presente – e sou compelido a afirmar que um trabalho minucioso foi feito para descobrir tais informações. O dinheiro de todos fora reduzido a menos que um grão. Mas o seu, é claro, continuou intacto. Sendo justo, 200 moedas foram retiradas; acredito que sua metade tenha ido em direção da conta de meu caçula.

Clay Dito se levantou, derrubando duas moças que estavam em seu colo.

– Você tem nos roubado, seu rato? – gritou. – Eu vou te matar.

– Capitão Dito – disse Enoryt, a sobrancelha ainda erguida. – Acalme-se. – O homem assentiu, mas continuou de pé. – Criamos o banco e seus cofres com a promessa de ser o mais impenetrável possível. Então como fora roubado? Isto fez minha cabeça e de meus homens ferver. Mas pensamos fora da caixa, entende? Não há como roubar um banco em plena luz do dia e sem ser visto. Não... foi um trabalho bem feito.

“Mas, tal como tivemos tempo e paciência para obter as informações acerca das contas dos senhores, tivemos para descobrir esta parte do enigma. Acontece que somente duas pessoas tinham acesso restrito ao cofre em si. Uma está aqui entre nós – ele apontou para Helder.”

– Então como sabem que não foi o outro quem...

– Ah – Enoryt riu. – Nós sabemos... sabemos. A outra pessoa foi submetida a um... interrogatório. A partir daí, com seu auxílio quase instantâneo, descobrimos transações fraudulentas ao redor de todo território. E você, Helder Mader, contratou bandidinhos para despistar nossos guardas, ordenou que roubassem as terras de Grayson, que nada tinha a ver. Uma rixa pessoal, acredito.

“E o que mais me surpreendeu foi a sua pachorra de achar que não descobriríamos. Você já havia me feito de bobo uma vez, Helder Mader, quando mentiu sobre sua formação em economia básica na Academia de Zeller. Fraudou uns papéis no processo, tenho certeza. Belo feitiço de criptografia, diga-se de passagem. E foi uma mentira bem elaborada, concordo. Não fosse pelos furos e pontas soltas.”

– Q-quanta mentira, q-quanta calúnia sendo d-dita por uma mesma p-pessoa.

– Ainda ousa dizer que meu lorde é mentiroso, seu rato? – Drico Fellner se levantou de seu banco e passou por Kai; caminhou até o velho banqueiro. – Depois de tudo já ter sido esclarecido, ainda nos diz que é uma mentira?

– Cale a b-boca, m-moleque...

– Cale a boca você, seu trapaceiro. – Rugiu Enoryt, se erguendo – Não obstante com essa sua compulsão, elevou a taxa de dar e receber. Pensou que tinha autoridade o suficiente para isso? Aproveitou um momento de fraqueza... Pensou que só porque ganhou um pouco de poder poderia fazer o que quisesse? 

“Fez empréstimos para o povo, ciente de sua situação avariada; humildes demais. Orquestrou furtos e sequestros por toda Neve Sempiterna visando o lucro, e achou que se livraria? Mas admito que fui e sou culpado, eu o coloquei lá, afinal – Enoryt suspirou e sua carranca se firmou – Eu aciono a lei MaryGenevre.”

Todos se alarmaram, até mesmo Kai. 200 anos se passaram desde que essa lei não era acionada; e quando um lorde a aciona na presença de outros lordes, quer dizer que ele pode tomar um julgamento instantâneo, sendo o juiz, a foice e o martelo.

Claro, sendo uma lei como qualquer outra, só poderia ser aprovada caso cada lorde fosse a favor. Deixou de ser usada pois era de natureza arcaica; e estavam numa era em que a justiça era feita de forma mais justa.

Nenhum senhor foi contra. Mader olhou ao redor, em busca de seus guardas. Não havia nenhum. E ele cometeu o juvenil erro de ir desacompanhado. Estava sozinho.

As vestes de Enoryt reluziram a luz do candelabro. Deu a volta na mesa, e Kai observou sua espada, grande e imponente. As pessoas se afastaram. Lorde Murphy era conhecido por ser muito complacente, mas não misericordioso.

– Você mexeu com meu povo, Mader… deveria ter continuado trabalhando como banqueiro, mas cresceu seus olhos. Você orquestrou o sequestro de crianças, pobres inocentes. Tirou tudo deles, desde sua dignidade até sua inocência. Eu o sentencio à morte.  

Gemidos e nervosismo se fizeram presentes ao redor da sala. Kai se atentou a olhar aqueles no salão. Nenhum fez menção de ir contra as palavras do Lorde. Havia certa satisfação no rosto de alguns.

Helder foi ao chão, beijando os pés de seu lorde.

– Me perdoe, milorde... eu devolvo, devolvo tudo, por favor, não me mate, eu tenho ouro... tenho...

Uma luz permeou o lugar, e ouviu-se uma zoada de metal. No segundo seguinte, houve um baque no chão. O corpo de Helder Mader caiu para um lado e a cabeça para o outro.

Ela rolou até parar nos pés de Kai, que olhou para seu rosto, que ainda estava de olhos fechados e a cara de choro. Nem sentiu a morte. Ele ergueu o rosto e fitou Enoryt Murphy, uma onça com raiva.

– Não mexa com meu povo. – Disse, a cara severa fitando o corpo.



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