Volume 2 – Arco 3: Dia do Tarche
Relatório 21: Vigilância
Norte da Avenida Romantusk, poucos metros da Praça do Escudo…
Sentada num banco um pouco afastado da grande multidão, Lívia observava o movimento da rua com um falso olhar tranquilo. Sua perna pulava freneticamente e num ritmo com aceleração crescente. Seria capaz de cavar um buraco até o centro da terra se ninguém lhe parasse.
Com seu clássico vestido azul e as sapatilhas brancas, nada fazia além de matutar juntamente das formas físicas que suas preocupações haviam tomado.
Dentre todas as pessoas que se divertiam no festival, um trio de crianças despertou uma lembrança antiga, guardada à sete chaves e por guardas invencíveis.
Tudo era bom antes, na época onde o sol brilhava não apenas em Paradise, mas no mundo inteiro. De fronteiras abertas, viajar era a melhor opção que se tinha, ainda que a população de Utopia não tivesse motivo pra isso, visto que moravam em nada menos que na área com a maior quantidade de pontos turísticos de todo Continente Solum.
O sorriso das três crianças era como um segundo sol, cujo iluminava as memórias da garota ao ponto de fazê-la alucinar.
Bons tempos, ela sussurrava para si mesma ao ver uma figurazinha pequena — que já usava a característica cartola de faixa verde — correr pelas ruas como se fosse o líder da trupe. Seguindo ele, um garotinho moreno e super energético que corria tanto quanto gritava, enquanto uma garotinha caminhava atrás dos meninos com olhar cansado, mas um inegável sorriso no rosto.
Nostalgia, aquele sentimento quase inexplicável trazia um conforto necessário em tempos tão estranhos.
“O que aconteceu pra tudo mudar?” Ela encostou a cabeça no banco, encarando o céu minimamente estrelado.
Passeou por cada momento que havia guardado, gradualmente avançando entre os anos de convivência deles três para enfim alcançar a resposta que desejava.
“Ah… Foi quando o Hector se mudou pra FESOL.”
O momento parcialmente apagado voltou como uma pedra indesviável. A saída de Hector havia marcado praticamente o fim de um ciclo que, até então, pensava-se não ter fim. Mesmo que tivesse retornado dois anos depois, havia retornado diferente.
Paranoico, esta era a palavra que melhor podia defini-lo no início. Qualquer coisa desencadearia eventos que, quase que inevitavelmente, terminaria com alguém baleado. Que tipo de imbecil daria permissão para alguém como ele ter posse de uma arma de fogo? Esse mistério era o único que nunca seria resolvido.
E quase que lendo a mente da garota, uma silhueta familiar se colocou no caminho das incontáveis luzes. Ao ser reconhecida, sorriu e cumprimentou.
— Yo~! Tá pensando na morte da bezerra aí ou o que?
— Igor! — Ela deu um salto no banco. — Não pensei que te encontraria tão cedo.
Ele coçou a cabeça e deu um riso sem graça. — Bem, eu ainda não tive nenhum sinal do Hector. Acho que ele não vai mesmo aparecer, ele nem é do tipo de ir em festas, no fim das contas.
Podia ser verdade, mas uma no dia 28 não justificava um sumiço de duas semanas! E falando em festas, alguém parecia estar tão envolvido na comemoração do feriado quanto qualquer um.
O rapaz de grande porte se vestia com roupa leve e um colete que imitava uma cota de malha, protetores nos cotovelos, joelhos e ombros. No punho esquerdo havia um soco inglês de plástico, na cintura uma espada dourada e, por fim, um chapéu de cervo na cabeça.
— Cê tá… bem no clima, né? — Ela desviou o olhar, como se não o conhecesse.
Mas por mais que tentasse, seus olhos voltaram não ao colega, e sim àquela silhueta menor que sentava no ombro que mais parecia um banco. Albert imitava seu pai em todos os aspectos, exceto pela pequena diferença de ser tão pequeno que as roupas largas mal serviam nele.
Aqueles par de olhos meio cinzentos brilhavam no que parecia ser a primeira vez, refletindo no olhar da garota uma imagem que ela só conseguiu definir em uma palavra: Fofo!
— Mas e aí? — Estendeu a mão. — Bora andar por aí? Isso é, se você não estiver esperando alguém.
Sua mão moveu-se instintivamente, mas a mente a fez hesitar quando lembrou daquele que provavelmente estaria no local. Entretanto, vários minutos se passaram desde que chegara e, por mais esperançosa que estivesse, a ideia de Isaac dar as caras por ali não conseguia ganhar cor dentro de sua cabeça.
Ela aceitou a mão amiga. — Pode ser, tô precisando me distrair.
Igor a puxou do banco, quase levando-a ao chão no processo. Maldito bombado que não sabe medir a força!
Eles começaram a andar pela rua em direção à praça onde o evento se focava, mas algo de errado não estava certo. A constante sensação de olhos cravados em si atraía sua atenção para lugares estranhos, desde a tampa de um bueiro até um beco escuro, onde nada além de gatos de rua residiam, e por fim a fonte resultava em Albert, que a todo momento desviava o olhar da garota quando ela o descobria.
Até onde tudo indicava, apenas ela sentia isso. Igor caminhava numa leveza inexplicável, nem parecia ter noção de mundo. Seu olhar focava o caminho à frente e nada mais, desviando apenas quando era para olhá-la diretamente. Albert imitava essas ações com uma perfeição invejável.
— Você não teve mesmo nenhum sinal do Hector? — perguntou ele.
— Nadica. Ele sequer recebeu as minhas mensagens. Fui na casa dele várias vezes, mas mesmo os vizinhos disseram não ter visto ele nos últimos dias.
— Cacete… Onde que esse maluco está? Só falta ele ter se metido onde não devia, te falar, viu!
Lívia arqueou uma sobrancelha. — E você ainda não me disse a porra do motivo pra querer falar com ele! Machuca tanto assim se me contar?
Ele coçou a cabeça e comprimiu os lábios. O olhar desviou para Albert, e então veio um resmungo hesitante. Aff! Ela por fim suspirou.
— Deixa quieto. Nem sei mais se tô sendo intrometida ou se são as pessoas que estão ficando loucas.
O pensamento atraiu de volta a atenção de Igor. Com uma interrogação acima de sua cabeça, ele questionou o que foi dito. Lívia argumentou:
— Ah, sei lá… Você também não notou que todo mundo hoje em dia parece meio estranho? Posso até estar generalizando, mas o Oswald lá no hospital, o Hector que desapareceu, até mesmo você! Tem ideia do quão chocada eu fiquei quando você apareceu do nada dizendo que adotou a porra de um filho!?
— Ei, ei, opa, opa!! Eu já entendi, se acalma aí! — riu comicamente, jogado num abismo gelado pelo olhar sério da médica. — Você… não acha que tá muito obcecada?
Ela ficou corcunda de repente, cruzando os braços e abaixando a cabeça. O som de seu ranger de dentes predominou sobre a música, atraindo ainda mais olhares que atingiram até os órgãos da garota.
Controlando as emoções, Lívia se reergueu aos poucos, mas rapidamente. Seu olhar cabisbaixo focava agora no chão.
— Eu só… queria ter um dia normal de novo. Você também não acha que tudo tá muito estranho ultimamente?
Como? Ele perguntava. O mundo, desde que se tinha esse conhecimento, sempre fora estranho. Um lugar amargo, mas doce nas suas profundezas; que guardava da salvação à perdição eterna. Como algo assim se tornaria mais confuso?
Ela mirou Albert, que havia desviado sua atenção para a multidão e não parecia que encararia a médica tão cedo. Seu olhar passeava entre as pessoas com uma grande velocidade.
— É que — continuou ela — tem uma coisa. Ela tem me incomodado ultimamente.
Ao questionar novamente que coisa seria essa, um resmungo foi a única coisa que saiu pela bocada médica.
Inexplicável, dizia ela, era algo que nem mesmo o maior gênio que o mundo já teve conseguiria explicar. Todos encaravam torto, falavam rispidamente, “parece até que guardam o segredo que destruiria o mundo se fosse revelado”, acrescentou enquanto gesticulava.
Igor ganhou um sorriso de canto. — Ora, mas todo mundo guarda um segredo ou outro. Não é algo com o que você deva se preocupar.
— Como não? Como eu não vou me preocupar quando esse segredo pode ter relação com o desaparecimento do meu, ou melhor, do NOSSO amigo!!?
Mesmo o elevar de seu tom de voz não alcançou a alavanca de realidade do colega, que por consequência permaneceu de semblante alegre.
Eles cessaram a caminhada, e de cima, ele a encarou. — Bem, é como dizem por aí: Algumas coisas devem permanecer em segredo.
Algo se apagou na mente da médica. Uma lâmpada que, ainda que indiretamente, se conectava com todas as partes de seu cérebro. Ação, reação, lógica, todos seus sentidos foram desligados de um instante para o outro.
Não por causa do suor que escorria por seu rosto, muito menos pelos olhos que marejavam e refletiam a luz cegante nas pupilas azuis, a visão distorcia de outra forma, tomando uma aparência totalmente desconhecida.
Porém, uma mão sobre seu ombro trouxe-lhe uma corda para fugir do abismo no qual caiu, uma corda que a levava para o céu da desconfiança.
— Lívia Montes, certo? Fiquei sabendo que a senhorita estava querendo conversar comigo.
Ela girou a cabeça, se deparando com uma figura trajada formalmente. De pele bronzeada e olhos castanhos, a mulher que não aparentava a idade que realmente tinha surgiu como um fantasma, e poderia muito bem ser Hector em seu lugar.
Diferente dos civis, fantasiados de forma demasiada exagerada, ela se colocava em destaque com seu justo e formal vestido púrpuro e um desesperador sorriso tranquilo.
— Se-Senhora Rose!?
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