Volume 2 – Arco 2: Fator B
Relatório 12: Atrás da Cortina
Dia 14 de Abril, 13:00 da tarde
Apesar de ser um dia ensolarado em Paradise, alguns optaram por ficar na sombra. Victor, no entanto, tinha outros motivos para fugir da luz do dia.
Em algum lugar pouco movimentado, ele mais parecia um mendigo escondido num beco escuro. De longe não era um dos melhores lugares, mas era a alternativa do momento.
Onde o sol e outras coisas não eram capazes de o alcançar, ele ofegava sem parar. Parecia ter saído do mar segundos atrás, com a roupa encharcada de suor e pregada ao corpo como se fosse um modelo legging.
— Será que… o Hector vai realmente entender a mensagem?
Uma pergunta para o nada, que foi respondida pela voz do abismo não observável.
Parece que ele já entendeu.
Um arrepio subiu pela espinha ao ouvir aquela voz em sua cabeça, sensação apaziguada pelo alívio que preencheu seu coração. Num tom orgulhoso, acrescentou:
— Bem, pelo menos eu não vou ter que ouvir ele me xingar por ser tão subjetivo.
Era a melhor maneira, visto que não tinha como saber se alguém estava rastreando seu celular ou até se já estava grampeado.
Um sorriso surgiu na face cansada de Victor, e como sempre não durou muito.
Tá na sua hora.
O aviso direto o fez se levantar num salto. Mas já? Questionavam suas pernas bambas.
Apenas vá. Nós fizemos um acordo, e estou cumprindo com a minha parte.
Siga por onde eu mandar. Eu aviso quando o momento certo chegar, e depois disso, a sobrevivência é por sua conta.
— Sério? — disse em tom arrogante. — Até onde lembro, você ainda deve me proteger duas vezes.
Não houve resposta, muito menos qualquer sinal de incômodo da entidade, mas Victor quis acreditar que conseguiu retrucá-lo desta vez.
Satisfeito, recuperou um pouco mais de fôlego e saiu do beco da forma mais cautelosa possível. O melhor — e pior — dos momentos de sua investigação acabou de ser alcançado.
***
Diferente da dupla de detetives cuja situação caminhava em uma verdadeira cordilheira constante, uma outra pessoa descia sem freio em uma ladeira.
"Que… tontura…"
Após um tempo desconhecido, a Sra. Rose acordava. Sua boca não se mexia, então tudo que conseguia fazer era pensar.
Apesar da visão turva, foi capaz de observar que o ambiente peculiar continuava o mesmo desde a última vez que desmaiou. Uma sala fechada com paredes revestidas num curioso metal branco.
Presa na parede por uma corrente de aço, tinha o mundo à sua frente como nada além de um grande painel de vidro, que dava a visão para um corredor de aparência idêntica de sua cela.
Porém, diferente da maioria das vezes, o corredor não estava vazio.
Uma criança estava vidrada em si desde que foi notada. Vestia uma roupa branca que cobria a maior parte do corpo, exceto pelo rosto. Na manga havia algo bordado, mas não era possível identificar. A tontura a impedia de analisar qualquer traço do rosto jovem.
Sua consciência estava pesada, algemada tão fortemente quanto seu corpo físico. O olhar zonzo vagou pela sala vazia, mas nada encontrou, indo então na direção da misteriosa criança.
Psst! A porta se abriu junto do som que se assemelhava com um vazamento de gás.
Vindo do corredor, dois homens entraram na sala. Ambos trajavam roupas brancas, igual a criança, se diferenciando pelas gravatas amarelas.
— Acordou? Ótimo, significa que já podemos recolher outra vez! — disse um dos homens.
Revelando uma seringa e um sorriso ansioso, o suspeito coletou amostras de sangue de Rose que, por mais que tentasse, foi incapaz de mover qualquer músculo até que o processo fosse concluído.
— Ok! Tudo certo. — disse o outro em alto tom.
O corpo de Rose foi então libertado das algemas invisíveis, agora preso apenas pelas de aço.
— O que vocês pretendem com tudo isso? — Ela tentou bravejar, mas foi capaz apenas de murmurar enraivecida. — Uma família como a de vocês… Ver tudo isso é decepcionante.
Nenhum dos dois pareceu ser afetado. Se encararam por alguns instantes, até que apenas deram de ombros.
Aquele que acompanhava o da seringa então comentou:
— Aparências não importam aqui, não mais. Assim que o nosso Informante chegar, só precisaremos segui-lo até onde queremos.
A mulher deu um curto salto. — Informante?? Então eu estava certa! Quem diabos você chamou? Ninguém aqui chegaria ao ponto de fazer um contrato com aqueles demônios, não é??
— Como se eu fosse contar! — retrucou em tom óbvio. — Além do mais, contrato com os demônios? Eu só aceito um deles aqui por causa do…
— Já chega! — O da seringa interveio. — Você é sempre assim. Vamos tomar um café pra você se acalmar, já conseguimos a última amostra mesmo.
Aquela palavra de finalização fez o coração da mulher apertar. Outra vez, “vocês não escaparão ilesos” ela profetizou com dificuldade.
Por mais que tentasse, a atenção dos homens não mais se focaria nela, assim como nenhuma prece poderia reverter ou impedir a ordem que foi dita em seguida.
— Ei, coisinha, já sabe o que fazer agora. A sala dos répteis tá indicada no seu mapa.
A criança, até então estática, bateu continência. Por sua vez, a dupla de engravatados seguiu corredor adentro, e após a criança entrar na jaula onde a mulher se encontrava, tudo que ecoou foi um rápido tump de um baque bastante característico.
— Ei, Glen, mas sobre o Informante, quando é que aquele estranho vai chegar?
Guardando a seringa num saquinho plástico, o referido respondeu à pergunta de Jorge com um sei lá bastante cansado.
Com passos lentos pelos corredores largos e intermináveis da instalação, os dois cumprimentavam colegas de trabalho trajados de forma idêntica a cada minuto. A quantidade de pessoas era sem dúvida impressionante, com muito mais pessoal do que nos maiores hospitais do país.
— O Xeps — continuou Glen — ele é o que mais sabe sobre esse cara. Parece que ele está vindo para cá de além da fronteira. Pelo que fiquei sabendo, é provável que esteja passando por Sarmatia neste exato instante.
— Sarmatia? Argh! Não vai me dizer que… ele também é outro igual o novato, né?
— Não. Ao que entendi, ele não é de Sarmatia, mas por algum motivo estava bem ao norte quando foi contatado. Agora está vindo pra cá a pé! Normalmente deveria levar meses pra fazer essa caminhada, mas ouvi dizer que ele percorreu mais de mil quilômetros em apenas dois dias!
Jorge arregalou os olhos. — Então… ele também tem um Fator B?
Glen assentiu com a cabeça. Nenhuma surpresa, acrescentou.
— A quantidade de pessoas com esse Fator que ainda estão soltas por aí é bem razoável, pelo menos pros dias de hoje, mas pelo o que o setor de controle ada calculando, não vai demorar até se extinguirem.
— Ufa! Ainda bem, deixar civis com habilidades tão poderosas… tenho medo só de imaginar o que um maluco faria se tivesse poderes.
A conversa se encerrou ali, com nada além de uma tranquila conformidade no rosto dos dois colegas.
Por fim, a caminhada que parecia levar sempre ao mesmo lugar terminou. No fim do corredor, uma porta com tranca digital.
Colocando o polegar, Glen abriu a passagem, revelando um ambiente inesperado para novos olhares.
Uma área vasta e aparentemente sem fim era o que havia ali. O metal branco não se fazia mais presente, substituído por paredes naturais de rocha que se estendiam ao teto feito de escuridão e chão inteiramente de concreto. A luz do lugar provinha de leds instalados no próprio chão.
O movimento era um pouco mais intenso que nos corredores, com vários funcionários carregando bandejas de comida de um lado para o outro.
— Disseram que ele estava aqui na área do refeitório, mas onde exatamente? — questionou Jorge.
— Ele não usa a aparência normal aqui dentro, tem que procurar pelo crachá de identificação… Ah, achei!
Numa perfeita linha reta, Glen guiou o colega entre os passantes até alcançar uma figura solitária.
Um homem encarava o chão fixamente, de olhar vazio e pouco brilhante. Em seu pescoço, a tal marca de identificação, um crachá vermelho que destacava nada além de um grande S dourado.
Percebendo a aproximação de alguém, ergueu levemente a cabeça e escutou o nome ser chamado.
— Romanov! Cada dia que passa você consegue imitar cada vez mais um nativo de Utopia.
Silêncio… — E aí, Glen.
— Cabisbaixo, ein. Se anima aí! Fiquei sabendo que a captura da Rose foi graças a você, deveria estar orgulhoso!
O homem — discretamente — vagou a atenção pelos arredores.
Bolha, isso parecia lhe rodear constantemente. Um círculo perfeito era sempre formado ao seu redor quando estava ali, impedindo que qualquer se aproximasse.
Curioso, no mínimo, já que esse círculo não era sequer visível, muito menos tangível.
— Só quero descansar aqui por um tempo, aquietar a cabeça e tal… Tô meio estrupiado.
— Mas você faz isso sempre! Nunca te vi conversando com outras pessoas. E nem o contrário, na verdade.
Romanov não respondeu mais, fadado a apenas terminar de escutar o que a dupla tinha a dizer.
— A coleta de sangue daqueles com Fator B está sendo um sucesso graças a você — disse Jorge, hesitando em dar um tapinha no ombro do agente.
— Sim, no ritmo em que estamos, logo logo vamos conseguir o que queremos, e… pelo que eu me lembre, você também vai ser recompensado diretamente pelo líder, não é? Haha! Eu adoraria saber como você conseguiu ficar íntimo de um doido como aquele.
“Farinha do mesmo saco”, um comentário que veio de longe.
Glen gaguejou, dando um repentino passo para trás. Os outros eram burros ou só fingiam? Falar algo assim na frente de alguém como aquele homem era perigoso, sabia!?
— E-enfim, — Jorge balançou os braços — viemos aqui pra te avisar que o líder quer te ver. Já sabe onde encontrá-lo, então… até mais tarde!
Com empurrões apressados, o rapaz usou a pouca força que tinha para empurrar o colega de peso para longe. Por vez, Romanov assentiu para si mesmo, levantando-se no instante seguinte.
Entre os comentários que vinham dos arredores, um suspiro era tudo que dava como resposta.
E mesmo disfarçado, a face ainda é a de um demônio.
Mas aquilo sempre se destacava em seus ouvidos, por mais que tentasse negar a entrada de cada letra.
A caminhada seguiu, reta e direta, saindo do refeitório e mirando uma das várias entradas que haviam por ali, as quais sempre resultavam nos corredores brancos.
Para muitos, aquele caminho não passava de um labirinto, mas para aquela pessoa era diferente.
No fim de seu túnel não havia uma luz, apenas uma mancha escura que só revelaria sua face quando fosse alcançada. A única e verdadeira luz que existia ali, era a qual carregava consigo, uma que não se apagaria até que o objetivo fosse atingido.
Tal foi alcançado, pelo menos uma parte dele, e era neste instante que um novo passo seria dado!
Uma porta se destacava no corredor, feita de madeira escura ao invés de metal, relembrando o agente do frescor de uma floresta, e apesar de ser mais acostumado com o frio, o nostálgico cantar de pássaros na primavera era algo que não tinha preço.
Ele abriu a porta com um leve empurrão. Com licença…
Uma grande biblioteca foi o que se revelou. Estantes recheadas de obras dominavam cada canto da parede, e com uma temática de "casa de caçador", aconchegava uma única figura.
— Yo~, Roman! Chega mais!
A pessoa nem ao trabalho de levantar se deu, de tão vidrada que estava no livro em suas mãos. Estava virada para o outro lado, dando a visão apenas das costas da poltrona, enquanto a pele dos braços e pernas esticadas eram escondidas pelas roupas.
Ao se aproximar, o agente coçou a cabeça e, em tom inferior, questionou:
— Quanto ainda falta?
— Eu que pergunto, tanto tempo aqui e você ainda usa uma aparência falsa mesmo em um lugar seguro.
— De-desculpa…
— Nada, na verdade eu nem devia questionar, já que fui eu quem te trouxe pra cá.
Romanov permaneceu retraído, tossindo falsamente como forma de retomar o assunto.
— Já tem o próximo alvo?
— Hum? Ah! Sim, sim! Nosso agente principal foi capaz de encontrar dois novos alvos, e não apenas isso, parece que um deles é um dos Especiais.
Ele ergueu a cabeça de repente. — Especiais!? Então… eles realmente existem, os herdeiros das habilidades das lendas?
— Ora, mas isso já é mais do que um fato! Eu mesmo sou uma prova viva disso, fuhahaha!!
No breve silêncio que se seguiu, o agente reuniu um pouco da coragem que lhe restava para o dia e, hesitante, perguntou: — E a… a criança?
O cerrar de seus punhos era audível, até a ansiedade em si tornava-se visível a olho nu.
Com um tom mais sério, o líder respondeu de imediato.
— Ela está bem, assim como prometi. Diferente dos outros, ela é bem mais sociável, apesar de ser meio controladora às vezes, muito esperta para a idade.
A satisfação em sua voz chegava a ser palpável. O tão aguardado dia estava cada vez mais próximo para os dois ali presentes, trazendo junto o fim de ambas longas jornadas.
— Certo! — disse Romanov, contagiado pela animação do líder. — Vamos em frente! Onde está o próximo que eu tenho que trazer?
Fuhaha! A risada foi seguida do apertar de um botão. Uma notificação então chegou no celular do agente, que teve sua resposta ao conferir o conteúdo.
— Esse vai dar trabalho, mas você dá conta, né? — perguntou o líder.
Ele leu a mensagem sem pressa e sorriu. A faceta determinada e repleta de confiança brilharam mais que nunca, apenas na frente daquele homem. Por mais que a roupa fosse a mesma dos outros, algo o tornava muito diferente.
Sem que percebesse, Romanov deixou a emoção tomar conta. Então, ainda tomado por seu coração, guardou o celular e deu as costas ao líder. — Deixa com o pai.
O pingente em seu pescoço brilhou em dourado, prenunciando a próxima batalha. O caminho agora foi completamente traçado nas duas visões deste caso imenso, cujas origens se encontravam a mais de séculos no passado.
Coincidentemente, alguém bastante próximo dessas origens caminhava exatamente na direção do foco daquele caos contido…
À Nordeste do continente, uma figura andava sem dificuldades pela neve densa das planícies geladas de Sarmatia. Solidão era o que lhe cercava, e apesar do frio insuportável até para animais nativos, tudo que carregava era uma muda de roupas finas e um pequeno sorriso despreocupado. Seu olhar focava em apenas um lugar, à frente, assim como qualquer homem que não teme o destino e nem mesmo o demônio que pensa controlá-lo.
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