A Mansão de Alamut Brasileira

Autor(a): Safe_Project


Volume 1

Pista 1: Entrada (1)

No escritório abafado, um homem de cara forçadamente fechada batia a caneta contra a mesa enquanto encarava o ventilador de teto e acariciava um gatinho em seu colo, em busca de alguma distração.

A cidade sem nome estava tão calma quanto nunca, todas as ocorrências resolvidas e nada de novo aconteceu nos últimos três dias. Seria este o preço por trabalhar bem? Se fosse, o homem se arrependia profundamente, colocando sua frustração em algumas poucas reclamações entristecidas.

— Seria este o gosto de ser tão foda?

— Esse aí eu acho que você nunca vai provar — respondeu a mulher ao seu lado, folheando o jornal.

O companheiro nada comentou, atraído pelo repentino ranger da porta do cômodo que causou uma enorme bagunça ao colidir com a grande pilha de papéis ali encostada.

Parcialmente soterrada pela avalanche de folhas, a garota amassou o jornal.

— Quantas vezes eu preciso repetir? Não saia entrando sem bater! — Meow! O gato parecia dizer “É isso aí!”. — Quem tá aí, porra!?

A figura que se revelou, apesar de encolhida, fez a dupla relaxada ajeitar as posturas de imediato. Um jovem rapaz trajado em farda militar, o brasão bordado em seu peito — uma cobra fumando um cachimbo — foi fácil de reconhecer.

Ainda acanhado, ele se desculpou brevemente antes de falar.

— Eu vim correndo até aqui por ordem do Juiz, ele pediu para que os dois comparecerem na igreja imediatamente.

A dupla de repente ficou mais animada, trocando olhares mais vívidos que nunca. Agradeceram o soldado e, após pegar algumas poucas coisas, partiram para o local ordenado.

A apertada prisão bagunçada que eles chamavam de escritório foi então substituída pela fachada da cidade, cujos limites decorados pelos restos de uma muralha antiga abriam espaço para um horizonte característico de uma cidade em ascensão.

Passando pelo centro da cidade — do tamanho de um bairro pequeno —, algumas pessoas admiravam a única atração do local, um grande escudo de bronze que era o símbolo para um honrável guerreiro de séculos atrás, enquanto a palavra “Kimkobulam”, de uma outra língua, era repetida em voz baixa por alguns.

No final da longa e larga rua de terra, o escritório do tal Juiz — também conhecido como Filho do Trovão — recebeu a dupla de portas abertas, deixando um caminho perfeito para o olhar afiado daquele homem colidir com os dois.

A mulher fitou o céu por um instante, dando um riso sem graça ao perceber que aquela estranha coincidência mais uma vez acontecia. Não importava onde fosse, sempre haveria uma grande nuvem trovejante acima de onde o Juiz estivesse.

A dupla hesitou, engoliu seco e prosseguiu. Quando entraram, as portas foram fechadas por outros soldados, e no vitral alguns metros à frente, o símbolo de uma estrela de quatro pontas agia como guardiã do homem sentado logo em frente.

— Detetives Jessie e James, aproximem-se. — Sua voz fazia jus aos apelidos, grossa e imponente, capaz de se destacar entre qualquer multidão.

A dupla acatou. Os olhares não desviaram do Trovão por um segundo sequer, aguardando até que o silêncio fosse novamente quebrado por ele.

Sua atenção focou em Jessie. — Devido a certa urgência desta situação, terei de ser bem direto. Por quantos anos vocês receberam o treinamento especial?

— Cinco anos, senhor!

— Resuma o que aprendeu.

— Sempre duvidar! Por mais lógico que algo possa parecer, sempre pode haver algo a mais.

— Certo~. — Fez uma rápida anotação num papel à disposição.

O Trovão estava a par da situação dos dois, na verdade, seria impressionante se não estivesse. A dupla era de longe a melhor da cidade, quiçá da região — afinal, era impossível não ser o melhor quando a concorrência não existia. "Estratégia", dizia James sempre que comentado o assunto.

No entanto, mesmo que o homem os elogiasse de maneira genuína por isto, seu tom de voz nunca ganhava um ar calmo ou convidativo.

Ao terminar suas anotações, o Juiz mirou a dupla por um instante, então vagou sua atenção pelos vitrais de uma forma desnecessariamente dramática. Já era mais que óbvio que ele tinha um pedido a fazer.

— Ouçam bem, independente de quem pergunte, apenas digam que é um caso de invasão de propriedade, eu não quero que as pessoas erradas fiquem sabendo do que vamos fazer…

James engoliu seco, enquanto Jessie ganhou maior seriedade em seu semblante. Foi um sinal de aceitação da dupla que, em qualquer circunstância, nunca havia recusado um caso até o momento.

— O objetivo desta vez é um tanto complexo, mas antes de dizê-lo, vocês precisam de um pouco de contexto. Aliás, desejo boa sorte para vocês de antemão… vão precisar.

Ele se levantou, buscando por uma fita de gravação e reproduziu-a numa pequena televisão que um soldado proveu. Com uma contagem regressiva, a tela em preto e branco iniciou um filme com uma única e simples fala.

Honrada seja a Nação de Utopia!

 

***

 

                                                                                                    

Dia 14 de Junho de 1867, 8:00 da manhã

                                                                                                    

O Sudeste do Continente Solum era famoso por seu clima ameno, onde mesmo a mais intensa chuva era seguida de uma tarde ensolarada, mas uma floresta nos limites da região fugia deste padrão. Seu clima mais frio e úmido fazia os visitantes pensarem estar em uma outra dimensão, a neblina inexplicavelmente não desvanecia em nenhum momento desde seu primeiro registro séculos atrás, escondendo algo mítico além de onde os olhos humanos eram capazes de enxergar.

Neste local onde qualquer pessoa inteligente evitava se aventurar, um fusca preto sem alvos para chamar a atenção tentava a sorte. Com dificuldade, ele atravessou o terreno difícil, para após duas longas horas de viagem, encontrar a sua linha de chegada.

Uma mansão surgiu do nada, de aparência semelhante à um bastião. Seu exterior era coberto de teias de aranha, musgo e uma atmosfera fantasmagórica. Mesmo abandonada, a estrutura não apresentava qualquer tipo de dano visível, apenas a sujeira esperada de séculos de descuido.

A residência da Floresta do Pecador pertencia ao nobre Jon Alamut XIII. O local esteve com a família por vários séculos, mas sua existência como moradia foi deixada de lado após a morte do primeiro proprietário, cujo nome foi abolido dentro da família.

A grande mansão já estava abandonada fazia séculos, e por mais surpreendente que pudesse soar, apenas nos últimos anos que o local começou a ser “desbravado” por adolescentes e outros curiosos.

Porém, assim como todos os que estavam cientes esperavam, relatos começaram a surgir acerca do local. Algumas pessoas desapareceram, outras foram encontradas gravemente feridas, isso quando já não estavam atiradas na frente da mansão como um corpo desprovido vida.

Para conter esta onda de desastres, Alamut, como atual prefeito da Cidade Sem Nome, criou um decreto municipal que proibia e punia qualquer um que se aproximasse da área da residência.

Aquele lugar nada representa além do antigo ninho da desgraça humana! Qualquer um que se aproxime, será pesadamente condenado!

Aquelas palavras correram pela boca do povo rapidamente, tornando a Floresta do Pecador no deserto que era atualmente.

— Parece até o início de uma história de terror — disse Jessie, fechando o documento antes de terminar a leitura.

Estacionando a poucos metros da entrada, um homem com seus 1,70 de altura desceu do banco do motorista, exibindo seus longos cabelos e olhos escuros. O entusiasmo era pouco, tanto na cara retorcida quanto na voz que saía entre gaguejos.

 — Uma mansão no meio do nada, né? Realmente parece um bom lugar para um assassino. — Ele apagou seu cigarro, jogando-o para longe e preparando uma pistola.

A mulher de mesma estatura saiu em seguida e imitou o homem, arrumando seus longos cabelos ruivos ao passo que analisava a mansão com seu par de olhos verdes.

— "Assassino" ou não, é o nosso trabalho averiguar e resolver a situação, se possível. — Apressada, ela caminhou na direção da porta da frente.

— Espera aí, mulher! — Ele estendeu a mão na direção dela.

A ação rápida de quem estava acostumado a lidar com pessoas prepotentes, no caso, a experiência de James vinha da vivência com sua própria esposa.

— E se algo ou alguém ainda estiver lá dentro? O que você pretende fazer?

— Eu meto chumbo, ué! — O click da arma acompanhado de um sorriso inocente.

— Nós não sabemos com o que a gente tá lidando. Vamos pelo menos verificar os arredores primeiro, é bom aproveitar o elemento surpresa enquanto ele ainda é útil.

— Boa ideia, James, você verifica e eu vou fazer a invasão. Não se preocupe, eu vou matar qualquer louva-deus que eu ver!

O tom de deboche fez uma veia saltar no rosto do homem, cujo bateu o pé com força na tentativa de se impor.

— Todo mundo sabe que eles são símbolos do azar! Não foi a sua avó que morreu por causa de um!?

— Não, ela tá vivassa — falou, sem perder o tom. — Na verdade, é bem estranho ela ainda estar tão bem, hoje ela deve ter uns cento e treze anos. Ontem mesmo vi ela dando uma cambalhota.

— É, vaso ruim não quebra, né.

Agora, além das estrelas que rodeavam sua cabeça, James também viu sua companheira se posicionar em frente a entrada, onde a aura determinada da detetive colidiu com a de seu inimigo desconhecido. Sem medo, Jessie chutou a porta antes que seu homem tivesse a chance de protestar.

— Merda…! Por que você tem sempre que ser assim? — Sendo ignorado, apenas cobriu as costas da parceira.

A partir da porta dupla, um tapete vermelho criou um caminho pelo chão de pedra até um curto lance de escadas à dez metros da entrada, lance este que, após uma subida de oito degraus, se dividia para direita e esquerda, ambos os caminhos resultando no segundo andar. Decorando o centro da divisória, havia uma grande estátua de pedra com um vitral azulado atrás de si. Curiosamente não havia qualquer desenho ali representado.

Era um salão grande o bastante para receber cem pessoas facilmente. Analisando melhor, este deveria ser o motivo para a área ser tão vazia.

— Vamos averiguar os cômodos, cobre as minhas costas! — Jessie avançou até a primeira porta que viu.

Com outras sequências de chutes agressivos, encontrou uma cozinha, banheiros e uma grande sala de descanso. A última chamou um pouco mais de sua atenção, onde sete poltronas circulavam uma lareira cujas chamas ainda bradavam com força.

— Ele está ou esteve aqui há pouco tempo. O Juiz disse que enviaria reforços se a gente não voltasse até o entardecer, então acho que é melhor sairmos e vigiarmos a mansão até que isso aconteça. — James buscou uma saída, mas foi puxado de volta.

— Não temos certeza de se ele está aqui ou não, então é melhor olharmos tudo com cuidado e, se não encontrarmos nada, nos posicionamos do lado de fora vigiando as passagens mais prováveis de alguém usar.

No caso, janelas quebradas ou portas carentes de dificuldade de serem abertas eram boas pistas para se encontrar.

Ah~! Agora você tá vendo o resultado de fazer tanto barulho, não é?

— Para de chorar pelo que passou e só me segue, aff!

Mesmo acovardado, a possibilidade do perigo residir na mansão junto da dupla não permitiu a James sair do local, o risco de sua parceira ser pega desprevenida. Conferindo o tambor da pistola, teve a certeza de oito chances para atingir qualquer que fosse o alvo em sua frente.

Voltando para a parte principal do local, analisaram um pouco melhor as poucas coisas que não permitiam o salão ser totalmente vazio. O cômodo não possuía decorações chamativas, apenas chão, parede e teto, mas para preencher um pouco este vazio, uma fileira de altares brancos acompanhavam o tapete vermelho.

Eram cinco de cada lado, alcançando a cintura dos dois. Feitos de um mármore em perfeito estado, cada um exibia uma frase diferente talhada em sua lateral, felizmente, todos em português.

James foi o primeiro a se aproximar, ganhando um leve interesse ao facilmente reconhecer as palavras, se tratavam dos dez mandamentos.

Hum Eu pensava que a família Alamut não era religiosa. — Com sua curiosidade atiçada, Jessie passou a analisar os objetos.

— Atualmente sim, mas fiquei sabendo que as primeiras gerações eram meio fanáticas, apesar de eu não saber o motivo exato.

— Acho que nem importa também…

Saindo das peças brancas, os holofotes retornaram para o resto da mansão. Porém, mesmo após diversos chutes contra as portas e sustos por parte de James, nada além de cômodos vazios foram encontrados.

— Que bosta! — Jessie socou um dos altares. — Não tem mais ninguém aqui!

— Sinceramente, isso me deixa até aliviado — suspirou, guardando a pistola na cintura. — Mas ainda existe uma coisa que não chegamos a investigar.

James apontou, levando a curiosidade da garota para um dos itens mais chamativos no local. Após o curto lance de escadas, na plataforma que divergia em dois lados para o segundo andar, a grande estátua se colocava como guardiã dos segredos do local.

A imagem imitava uma silhueta humana, alcançando facilmente os dois metros de altura, desprovida de qualquer órgão do rosto ou parte íntima. Acinzentada, sua textura lembrava a das pedras encontradas em rios, não possuindo rachaduras ou qualquer sinal de evidente degradação. Tal como a própria mansão, apenas se decorava com teias de aranha e algumas concentrações de musgo.

Com sua mão direita, segurava um livro de capa marrom, enquanto a esquerda guardava um lampião negro, estendido em direção a porta.

— É um belo trabalho — comentou ele, antes de pegar o livro. — HumA capa não tem título e nem nome.

— Ei, é feio roubar.

— Não se preocupe. — Olhou para a estátua e inclinou-se como em uma reverência. — Eu devolvo em breve.

Jessie resmungou impaciente, seguindo o parceiro até o lado de fora da mansão. Quando o fizeram, James abriu o livro suspeito e iniciou a leitura.

Virando a capa, foram capazes de prever o conteúdo do livro, que na verdade tinha a cara de um diário. Na velha folha de apresentação, apenas uma frase estava escrita:

Minhas ações são justas por seus próprios motivos. Se tentar me parar, eu irei matá-lo.

A dupla se encarou por um momento e James revelou animação, retrucado apenas pelo olhar de pouca de fé de sua esposa.

— Parece que o “discurso do vilão” vai ser mais rápido do que o esperado.

— Para com essas besteiras! — Ela deu um tapa. — Deve ser o diário de alguém que trabalhou ou morou na mansão. Vejamos…

Tomando o livro para si, ela retomou a leitura. No entanto, algo parecia errado, e seu parceiro também percebeu, apesar de não tanto quanto ela. As palavras carregavam algo estranho consigo, uma sensação aterradora que aumentava conforme eles liam.

Não estou partindo nesta jornada por causa de nosso pai, muito menos pelos outros. Minha intenção é descobrir o meu verdadeiro eu.

Eu não consigo entender o motivo de todos, até mesmo a nossa mãe, de achar que nosso dever é terminar o trabalho que os que vieram antes de nós falharam em terminar.

Você e os nossos supostos irmãos parecem loucos, achando que se trabalharmos juntos podemos atingir qualquer coisa.

Desde sempre você parece não ligar para mim, vendo mais importância em seus livros do que no próprio irmão. Depois que você reuniu os outros conosco, eu comecei a pensar se você me odiava. Se havia feito aquilo apenas para ter outra pessoa em quem prestar atenção.

Eu não sei o que você pensa sobre mim, e atualmente sou covarde demais para perguntar isso enquanto encaro seus olhos. Mas, um dia, eu irei adquirir a força necessária para chamar a sua atenção, independente do que isto me custe.

Quando eu voltar, irei dizer tudo que penso na sua cara! Me espere até lá!

D. Rossi

Jessie acabou sozinha nesta sensação, como se, a partir deste momento, algo passasse a lhe observar de onde ela não sabia.

 

 


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