Volume 1 – Arco 2
Capítulo 37: Embate de bestas, parte 4, Entre as presas
Sempre que lembro daqueles dias, tenho um sorriso no rosto.
Quando chegamos na capital, a primeira preocupação que tivemos foi ganhar um pouco de dinheiro. Por sorte, achamos uma taverna que precisava de gente nova.
Entrando lá, pude ver a diferença da cidade-estado para uma vila. O interior era imenso e decorado, a madeira bela e nova, com diversas velas deixando o ambiente iluminado, acolhedor.
Também haviam diversos mercenários, vários deles eram jovens, um pouco mais velhos que nós. Ao conseguirmos trabalho e um alojamento nos estábulos, eu e Rino focamos em conseguir qualquer pedaço de informação sobre Ittai, mas ninguém na capital sabia de algo.
Todos ali vivam despreocupados, sem qualquer medo de que algo pudesse acontecer com eles… Um claro contraste com as vilas mais pobres.
Enquanto um lado vivia livre, outro era preso por diversos fatores que não tinham nenhum controle. Era revoltante, mesmo quando criança sabia disso…
E não suportava aquilo.
Contudo, pelo bem de Rino, mantive-me calado. Foquei, invés disso, em observar os mercenários, buscando informação de algum deles.
Não tive sucesso imediato. Eles sempre notavam quando observava e paravam de discutir, focando em assuntos banais, sem qualquer relação com o trabalho.
Foi no nosso segundo dia na capital que algo mudou. Na noite, houve uma queda na atmosfera, um aumento de pressão que sufocou todo o barulho da cidade.
Mesmo que estivéssemos dormindo na hora, acordamos assim que aquela presença se fez conhecida.
Era absurdo pensar que alguém assim existia. Que um mortal podia calar uma cidade inteira só de por os pés nela…
Mas Ittai tem essa influência nas pessoas.
Assim que percebi quem era, peguei Rino e parti para onde a sensação era mais forte, ignorando todos que corriam para longe.
Lembro de quase ser pisoteado várias vezes, só para conseguir chegar no pátio central.
Quando enfim cheguei lá, vi algo que mudaria para sempre minha perspectiva de vida. Algo que me fez ver o motivo do ancestral de vocês humanos ser tão temido na cultura dos Bestiais.
Vi um confronto entre quatro Mármores.
Dois deles se vestiam como selvagens, um com uma clava e outro com um imenso martelo de guerra. Os dois eram Bestiais Ursos.
O terceiro era um Bestial Falcão, que usava de suas asas para voar para longe enquanto disparava flechas, cobrindo os pontos cegos de ambos os Bárbaros.
Ainda que os três estivessem com os Ciels despertos, o inimigo não fazia questão alguma de fazer o mesmo. Invés disso, focava apenas em bloquear os ataques, de uma maneira quase preguiçosa, com aquela espada branca.
Era quase injusto.
Continuou bloqueando os ataques enquanto esquivava de outros, até que se cansou. Colocando pressão nos pés, chocou sua lâmina contra a clava, pressionando-a fortemente. Num giro do punho, libertou a pressão e então deu outro corte, este mandou o adversário para longe.
Antes que pudesse finalizá-lo, desviou de uma saraivada de flechas e então de outra martelada. Contudo, usando a velocidade do bárbaro contra ele, só colocou a espada na altura do pescoço.
Vendo o que ia acontecer, largou a marreta e tentou pular para longe, mas como se visse o futuro, Ittai meramente segurou a lâmina com as duas mãos e, com um único e singular movimento, decapitou o oponente.
— Já morreu? — Nisso, desviou de outra saraivada de flechas e bloqueou a clave. Com outro giro de pulso e um passo para o lado, deixou o oponente cair para frente e, rapidamente, perfurou a garganta dele, usando a Katana como uma adaga.
Depois disso, cortou a garganta e saiu correndo na direção do prédio onde o arqueiro estava. Vendo que o mesmo começou a voar, pulou na parede umas três vezes, até alcançar o inimigo e, com um rápido movimento, perfurar o peito dele.
Com um chute, enviou o corpo do Mármore para o chão e pousou no telhado.
Lembro que, depois disso, desapareceu com pura velocidade. Quando pisquei, estava na minha frente, agachado e olhando-me com curiosidade.
— Eu te conheço?
— Bem… eu…
— Você não me é estranho… — Colocou a mão no queixo, pensando, até que estralou os dedos. — Já sei! O pirralho daquele bar! — Nisso, voltou a atenção para mim e estreitou os olhos. — Está bem longe de casa…
— Eu… eu só queria… — Engoli em seco e suspirei, olhando fundo nos olhos dele e forçando as palavras para fora de minha boca. — Eu quero ser um mercenário… Como você! — gritei, puxando meu irmão para perto de mim. — Eu e meu irmão…
Os olhos dele ficaram mais gentis e um sorriso no rosto surgiu, porém toda a felicidade que sentiu foi esmagada, quase que instantaneamente.
— Acredite, crianças… Vocês não querem ser como eu — sussurrou, levantando-se e arregalando os olhos. Virou-se para trás e pôs a mão no cabo negro da espada. — Saia! Alguém do seu calibre não devia se esconder como um covarde.
Deu três segundos de silêncio, quietude máxima, até que algo mudou.
Passos foram ouvidos e uma figura adentrou no luar.
Era um homem alto, com cabelo escuro, espetado e longo, descendo até a cintura. Junto disso, portava uma roupa que não fazia nenhum esforço para esconder os músculos perfeitos do corpo.
Talvez aquilo que mais me chamou a atenção, contudo, foram os olhos dele. Olhos amarelos, com duas fendas. Tão frios como gelo, aquele olhar fez com que congelasse, incapaz de me mover.
Senti um medo absoluto ali. Eram olhos de um predador, que tinha certeza absoluta da caça. Continham uma força esmagadora por trás deles, assim como uma fome que não podia ser contida.
Senti dificuldade em respirar e fiquei pasmo quando percebi que nem ao menos olhava para mim.
Naquele momento, amaldiçoei os deuses, os demônios, e todo o tipo de entidade. Era injusto pensar que alguém assim existia…
Humanos eram seres com um potencial infinito e que, ainda que nascessem mais fracos que as outras raças, conseguiam evoluir, mudar com tamanha naturalidade que era invejável…
Talvez seja esse o principal motivo pelo qual Ittai era tão mais forte que os oponentes que enfrentou. Bestiais são conhecidos por seus atributos físicos elevados. Se pegar um grupo de adultos que nunca treinaram e colocar contra uma criança da minha raça, tenho certeza que os humanos não teriam chance alguma…
Contudo, pegue dez bestiais que treinaram dez anos e faça-os enfrentarem um filho de Seth que trabalhou metade do tempo e não tenho dúvidas que sua raça ganharia.
Humanos são, depois dos elfos, os mais próximos dos deuses e anjos. Diferentemente dos elfos, contudo, vocês são afetados pelo tempo, tendo muito mais chance de crescer e se tornarem absurdamente fortes.
Os humanos que nascem fazendo de tudo um pouco sempre superaram as outras espécies, e os humanos que se especializam em uma única coisa podem chegar a superar um deus.
Foi ali que entendi isso, bem naquele momento, quando dois humanos poderosíssimos estavam para se enfrentar.
— Pegue seu irmão e fuja… — disse Ittai, dando um passo para frente. O outro só percebeu agora a nossa presença e direcionou aqueles malditos olhos até nós dois.
Antes que tivesse um ataque, o espadachim se colocou entre nós dois, permitindo que respirasse mais normalmente. Considerando algo, trocou a espada que segurava para a branca e suspirou, cansado.
— Normalmente, eu usaria a espada de meu irmão para cortar qualquer inimigo… Mas, acho que, considerando o quão anormal é essa situação, preciso ir com tudo.
Nisso, ouvi a respiração dele se silenciar e senti a presença dele permear a área por completo, pesando em meus ombros.
Ittai havia aberto o primeiro Céu.
O homem sorriu com isso e lambeu os lábios.
— Eu dei sorte de aceitar esse trabalho… Já estava querendo te enfrentar tem um tempo, “Arsenal vivo”.
— Então é assim que me chamam atualmente? — Sorriu e caminhou calmamente até o oponente, que fez o mesmo. Notei, com certo fascínio, a forma como as unhas dele cresceram. — Acho que combina até… Mostra que aqueles velhacos do conselho ao menos servem para algo.
— É… talvez tenha razão… — A voz sibilante dele fez com que calafrios percorressem minha espinha e, olhando para trás, vi meu irmãozinho quase desmaiando. Engoli em seco, sabendo que precisava me mover para longe… Mas não tinha força alguma para fazê-lo. — Infelizmente, tenho um trabalho a fazer, então essa caçada será breve.
— É… talvez tenha razão… — respondeu, parando alguns centímetros ante o rosto do oponente. — Digo o mesmo, Aroc, ou devo lhe chamar de “A fome”?
O outro riu alto com isso por alguns segundos, até limpar uma lágrima.
— Eu vou gostar disso. — Nisso, a luta começou.
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