Volume 2

Capítulo 93: Silêncio

— Você tinha que ter visto a Garta em ação, ela era simplesmente incrível! — exclamou a garota, empolgada, adentrando um velho prédio em ruínas que agora era apenas vestígio do esplendor que Albores um dia já foi.

— Eu sei, Iara. Você já falou isso umas mil vezes — resmungou o homem, avançando com dificuldade, apoiado em uma muleta.

Ele liderava a garota, acompanhado por seus três lobos que abriam caminho pela construção abandonada.

— Tem certeza de que precisava vir até aqui, Índigo? O que tem de tão especial neste lugar?

Iara observou o corredor, com partes da parede faltando, por onde o sol invadia o ambiente desolado. Restos de mobílias quebradas e teias de aranha entrelaçavam-se em abandono.

— Paciência, menina. A Garta não te falou que essa é uma característica importante a se ter? — indagou Índigo, com uma minúscula fagulha de ironia.

— Até parece. — A garota revirou os olhos.

— O quê? Eu falo sério. Pergunte para a Garta quando a encontrar. Tenho certeza de que ela vai concordar comigo.

— Como se eu fosse encontrar com ela — rebateu Iara, mórbida e desesperançada.

Índigo se virou, percebendo a mudança de tom. Fitou profundamente os olhos da garota, que logo os desviou.

— Ei, ei, ei. Não fala assim. Eu já disse que, se ela estava com a guardiã e a deusa de Tera, há uma possibilidade de...

— Pare de se iludir, Índigo. Já se passaram cinco anos. Essa "possibilidade" não existe mais.

As palavras de Iara ecoaram pelo corredor deserto, e um silêncio doloroso preencheu o espaço. Índigo sentiu como se o peso da desolação tivesse se materializado ao seu redor. Os lobos Sirveres, leais companheiros, observavam a cena com olhares atentos, como se compreendessem a complexidade do momento.

— Iara, eu... — Índigo começou, mas as palavras pareciam presas em seus lábios. Sacudiu a cabeça, como se buscasse clareza, e recomeçou: — Não perca as esperanças, essa é a única coisa que nos...

— Você fala como se a esperança fosse algo bom — interrompeu ela, cuspindo sentimentos com amargura —, mas não é. É doloroso. Eu perdi todo mundo, e não tenho mais ninguém. Fico sonhando acordada, imaginando reencontrar alguém que talvez nem mais exista. Eu preferia ter certeza, assim como você tem da sua família.

O homem se surpreendeu, sentiu uma pontada no peito que o fez recapitular tudo. Tentou disfarçar, mas seus olhos já haviam demonstrado emoção. Índigo desviou o rosto, antes de responder abatido e desiludido:

— Tá. Acho que você tem razão.

Ele começou a caminhar de volta pelo corredor, passando pela garota, e dando as costas a ela. Os lobos o seguiram esvaziando o lugar.

Com as suas próprias palavras pesando em seus ombros, a garota tentou contornar a situação com apreço:

— Espera Índigo, não foi isso o que eu quis dizer. Eu sei que você sente falta da sua família, e não deveria ter os colocado na conversa. Eu não queria te chatear.

O homem continuou a caminhar em direção à saída, auxiliado por sua muleta. Respondeu em tom neutro, sem mudar o rumo ou olhar para trás:

— Acha que foi isso que me chateou?

Um breve silêncio ganhou forma. O vento sussurrou entre as paredes descascadas, destacando o pesar da garota, que agora se sentia verdadeiramente solitária.

Ela baixou a cabeça com o remorso lhe comovendo:

— Droga — sussurrou, se culpando.

Com a visão fixa no chão, Iara notou as pegadas dos lobos sobre a poeira acumulada no piso arruinado. Ela então seguiu com os olhos os desenhos de patas até notar que se intensificavam no final do corredor, onde algo chamou sua atenção. Uma caixa de madeira jogada ao chão em meio ao rastro de pegadas dos lobos que pareciam desenhar um círculo ao redor do objeto.

Com a curiosidade aguçada, Iara avançou em direção ao ponto focal do rastro. Cada passo se mesclava às pegadas dos lobos. Parou frente a caixa retangular e empurrou a tábua de cima que servia como tampa e ocultava seu conteúdo. Ficou encantada ao notar o que havia dentro, uma arma. Um arco curvo com uma aljava cheia de flechas lhe acompanhando.

O sorriso que se formou nos lábios de Iara carregava consigo uma dualidade, pesaroso e agradecido ao mesmo tempo. Seus dedos acariciaram o arco com reverência, percebendo o quão estúpida havia sido.

— Foi para isso, não é? — sussurrou sozinha, arrependida.

                                               ***

— Caramba — sussurrou Goro boquiaberto, ao lado de Iara no canto do salão. Estava completamente estarrecido pelo que acabara de observar ao centro do lugar.

Garta estava absoluta, completamente recuperada de seus ferimentos e agora vitoriosa contra o guardião de Calis. Plena enquanto o adversário desacordado ao chão, Garta pôde finalmente respirar e passar mão sobre o seu olho que permanecia sadio, pensou consigo mesma o quanto era bom não sentir a dor daquele ferimento e não carregar a maldita coleira de Sathsai que tanto lhe prejudicou.

— Garta! Você está bem? — Iara partiu em direção a ela. Tremulando a sua saia rosa em uma corrida animada pelo salão.

— Sim, muito bem — a guardiã respondeu, pensativa sobre os seus ferimentos que não existiam mais. Mas foi surpreendentemente interrompida quando a garota chegou até ela e surpreendentemente a abraçou.

— Você é incrível — disse Iara apertando os seus braços ao redor do Garta.

A guardiã não correspondeu o abraço, mas deu um leve sorriso de felicidade desconcertada.

— Tem certeza de que está bem? — perguntou Goro, se aproximando em tom alheio, sarcástico. — Esse seu rosto feliz, não é normal para você.

A mulher levantou uma das sobrancelhas desafiada.

— Não liga para ele, Garta — aconselhou Iara, desfazendo o abraço e observando os olhos da guardiã. — Se não fosse você, eu não sei o que faríamos.

— Do que você está falando? — estranhou Garta. — Foram vocês que impediram Bernard e tiraram o colar do meu pescoço, eu só finalizei.

Goro sorriu elevando o queixo. Ele ergueu a mão direita deixando a palma exposta, para que então, Iara fizesse e o mesmo de encontro. As palmas das mãos colidiram em cumprimento.

Garta piscou os olhos enquanto fazia uma expressão de fascínio.

— O-o que foi isso?

— É só um “bom trabalho”. Eu e a fofinha formamos uma boa dupla. Ela é uma ótima escudeira.

— Hã? — Iara discordou imediatamente. — Até parece. Você é que é o escudeiro.

— Ah — Goro ofendido. — Fala isso quando você lutar com dois inimigos de uma vez para pegar uma chave e libertar uma guardiã e te salvar.

— Não, não. Eu é que lutei com um guardião e venci — rebateu Iara.

— Venceu? — perguntou o rapaz debochado.

— Ele está caído ali — Iara apontou para Bernard inconsciente —, e eu estou aqui, bem tranquila. Então é, acho que posso dizer que venci.

— Não. Não pode. Não foi você quem derrubou ele e...

— Já chega! — interferiu Garta. — Eu não sei quando foi que vocês se tornaram amiguinhos...

— Amiguinhos? — ambos perguntaram uníssonos.

— Mas já está bom, não? — perguntou Garta desviando os olhos.

— Hã? — expressou Iara, com um grande ponto de interrogação no rosto, assim como Goro.

— O que é que está bom, Garta? — O rapaz colocou a dúvida em palavras.

A guardiã escondeu ainda mais os olhos. Envergonhada:

— Vocês sabem.

— Já viu ela assim? — sussurrou Goro em direção à Iara.

— Nunca. Acha que é alguma magia? — respondeu a garota no mesmo tom de incerteza.

— Pare, vocês dois! Eu estou ouvindo — interrompeu Garta.

— Então fala logo, mulher! Para de enrolar! — rebateu Goro, angustiado. — O que é que está bom?

— O meu agradecimento — Garta cuspiu as palavras de uma forma veloz e indolor. Ao notar a dupla à sua frente sem ação, ela continuou. As palavras atropelando os ouvintes sem qualquer pausa para respiração ou raciocínio: — Se ainda não foi o bastante, então eu vou dizer. Mas vou dizer só uma vez, e não fiquem aí parados como se não fosse nada. Então lá vai: Obrigada!

A palavra de agradecimento ecoou pelo salão e rebateu nos ouvidos de Iara e Goro. Ambos ficaram completamente imóveis, sem reação. O silêncio surgiu da ponderação dos dois.

— E então? — perguntou Garta, apreensiva.

Iara e Goro se olharam e, no instante que seus olhos se encontraram, eles caíram no riso. Uma gargalhada vinda do fundo de seus peitos que expunha completamente Garta e seu rosto desconcertado e cauteloso:

— Do que vocês estão rindo? Não é para ser engraçado.

— Hahaha!

— Hahaha — mantiveram-se os dois.

— Vocês são muito cruéis — sussurrou Garta, escondendo novamente o rosto.

— Aí, Garta — Goro chamou por ela.

A guardiã hesitou se virar em direção a ele, mas algo em seu coração a fez repensar. Voltou o rosto e os olhos para frente e se surpreendeu com que estava diante dela.

Goro estava parado, com a mão erguida e a palma exposta em direção a ela. Os olhos dele apontaram para a mão que aguardava a complementação.

Garta sorriu com o canto dos lábios e levou a sua mão até a dele.

Clap.

— Bom trabalho.

O silencio retornou, mas dessa vez era caloroso e amigável. Garta respirou fundo, aquela sensação era tão boa quanto a ter toda a sua vitalidade e visão de volta. Era um sentimento de dever cumprido que jamais tivera, principalmente pelo fato de estar acompanhada.

Lembrou-se de tempos distantes, onde suas memórias se entrelaçavam com ordens que não poderiam ser descumpridas, mas que sempre lhe faziam sentir um vazio ao final delas. Dessa vez não sentiu esse vazio. Longe disso, a guardiã estava satisfeita e feliz.

Perdeu o sorriso logo em seguida.

— Ah, que sensação nostálgica — disse a voz arrogante e cheia de si ao centro do salão. Os três arregalaram os olhos, e Bernard continuou: — Fazia uns dez anos que eu não sentia isso.

O tom dele era forte, mas sereno perto de seu ódio de antes, estava de pé retirando a sujeira de seu casaco com um corte superficial que partia a sua testa em duas, através do líquido vermelho escorrido entre os olhos. Garta se virou preparando a sua espada para o combate enquanto ao lado dos outros dois. Goro apontou seu revólver e Iara esticou a linha de seu arco com uma flecha engatilhada.

— Como era o nome disso mesmo? — perguntou Bernard pensativo, com os olhos perdidos, até focá-los nos três a sua frente: — Ah é, vocês chamam de "dor".

— Que isso? Como que você ainda está de pé? — perguntou Goro, com uma preocupação evidente no rosto aflito. — O golpe da Garta foi certeiro.

— Quantas vezes eu avisei? Eu sou o guardião de Calis. Meu corpo é o seu tumulo, e ela o meu amparo.

— De que merda você está falando? — Garta colocou em palavras a sua feição confusa.

— Eu estou dizendo, que minha vida é dela — Bernard finalizou, com um ódio entre seus dentes.

Em seguida, o homem colocou sua mão sobre o próprio peito. Apertou a palma já irradiante contra o seu coração, e se concentrou.

— O que ele está fazendo?! — perguntou Iara, apreensiva mirando o seu arco em direção ao inimigo.

— Ahhh! — Bernard gritou, em dor intensa enquanto o seu peito brilhava debaixo de sua mão.

— Calma, Iara. Não atira! — Solicitou Garta, preocupada. — Droga... eu tenho que parar isso, ou ele vai acabar se matando — pensou alto e deu um passo à frente, mas o brilho de Bernard se intensificou, impedindo-a prosseguir.

— Ahhh! — O guardião sofria com a própria magia. — Não vou deixar que acabe assim!

— O que é isso? — se perguntou Garta. — O que ele está...

Antes que pudesse terminar o seu pensamento, a guardiã foi interrompida por um raio de luz retilíneo que passou ao seu lado e acertou Bernard. Acompanhado pelo som característico do revólver, aquele era definitivamente um disparo de Sathsai.

As luzes se encontraram ao centro do salão, impedindo qualquer entendimento da situação.

— O que você fez? — Garta perguntou em tom de bronca, a Goro.

— Tá falando sério? — Rebateu o rapaz sem baixar a cabeça. — Tá mesmo preocupada com ele?

— Tsc — Garta deixou de lado, contrariada, e se virou para o inimigo novamente.

As luzes já se dissipavam para revelar a figura de pé, surpreendentemente, não era mais Bernard, pelo menos não mais com uma aparência humana.

Uma aberração. Uma manifestação monstruosa que emergia até o teto. O ser tinha uma cabeça feral, semelhante à de um leão, mas com presas exageradamente grandes e afiadas, desafiando a própria mandíbula. Seus braços eram incrivelmente musculosos e cobertos por uma pelagem grossa e escura que culminavam nas mãos grotescas com apenas quatro dedos e grandes garras cortantes como a de grandes pássaros.

Ao final do tronco robusto, a pelagem cedia lugar a escamas que transformavam o restante do corpo em uma sinuosa extensão de uma serpente peçonhenta. Cada movimento do monstro parecia dar vida a padrões hipnóticos nas escamas deformadas onde devia haver pernas.

O monstro se erguia no salão, seu corpo pulsando com uma magia distorcida e sinistra. Um rugido escapou da sua boca grotesca e ecoou pelas paredes como uma tempestade enraivecida.

Garta, Goro e Iara observavam atônitos a metamorfose aterradora que Bernard havia sofrido. O que antes era um adversário humano transformou-se em uma força da natureza corrompida, uma encarnação viva do caos e da destruição.

A coisa se moveu com uma agilidade descomunal, desafiando a lógica física enquanto girava sua cauda em espirais de destruição. O vento que o seguia arrastava consigo fragmentos de objetos e poeira, criando um véu turbulento ao seu redor. Boa parte do telhado do prédio fora simplesmente expurgado para o céu com o vento forte, e fez com que os outros três recuassem assustados:

— Mas que merda é essa!? — Goro exclamou, expressando a perplexidade que todos sentiam.

 Antes que pudessem formular qualquer resposta, a criatura grotesca avançou com uma ferocidade incomparável. Seus movimentos eram fluidos e poderosos. Garta, Goro e Iara lutaram para manter seus pés firmes diante da força avassaladora que fazia o ar vibrar e o chão tremer.

Mesmo apavorados e surpreendidos, os três tomaram posição. Garta empunhou sua espada curva com destreza, sua lâmina brilhando à luz trêmula das velas. Bernard ergueu o revólver de Sathsai enquanto Iara, com seu arco e flecha, mantinha-se focada.

A criatura, com sua cabeça leonina, rosnava enquanto os observava. Os objetos tremiam e o ar pulsava com a magia distorcida. A tensão no ar era palpável quando Garta tomou a iniciativa, lançando-se contra a fera com um golpe rápido de sua espada.



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