Volume 2
Capítulo 69: Recomeço
— Nove anos? — repetiu em pergunta, Colth assustado. Sussurrou para si mesmo: — Se passaram nove anos... Inacreditável.
O grupo se reunia no porão disputando espaço com os mantimentos de meses daquela dupla nada convencional de sobreviventes. Índigo não conseguia andar sem o auxílio de uma muleta devido sua perna prejudicada, e Iara se mostrava completamente atenta quando portando o seu arco, e amavelmente sorridente quando de mãos vazias.
— Mas o que aconteceu? — questionou Garta em um tom minimamente desolado. — O que aconteceu com o império? Com as pessoas...
Índigo se adiantou em sua poltrona velha:
— Aconteceu o que sempre acontece quando Lux vai à algum mundo.
— A explosão varreu quase todos da capital — complementava Iara em tom soturno.
Índigo continuou após os outros mostrarem seus olhos surpresos:
— Uma parte das pessoas morreu pelo impacto, outra grande parte pelo colapso dos prédios se amontoando uns sobre os outros. E a maioria que sobreviveu após isso, sofreu de uma doença que afetou o mundo inteiro e não só a capital.
— Uma doença? — Celina curiosa e impactada.
— Chamam de doença da lua — prosseguiu ele. — Após a explosão e a grande devastação da capital, a lua nunca mais brilhou na noite. As pessoas pareciam buscar por qualquer fagulha de esperança, esperavam todas as noites para encontra-la no céu, era como algo que as hipnotizava, mas não estava lá. Não demorou para que os primeiros começassem a enlouquecer, mas o pior estava por vir, alguns ficaram tão insanos que começaram a se tornar hostis com qualquer outro, até mesmo com suas próprias famílias. As pessoas doentes matam e despedaçam as vítimas como animais selvagens, simplesmente para satisfazer um desejo sanguinário incompreensível.
— Que cruel — sussurrou Colth.
— Ah! Droga! — esbravejou Koza. — Merda, Tera!
Todos se surpreenderam com a criatura que saltou do ombro de Goro para o chão e escondeu seu rosto observando a parede sombreada do canto do porão.
— O que foi? — perguntou Goro pasmo com a intensidade das palavras do dragão esmeralda em forma reduzida.
— Ela deu o melhor de si. — O tom de Koza era lamentador com um choro entalado em sua garganta. — Sacrificou o que ela mais amava e, mesmo assim, não foi o suficiente. Mesmo com aquela explosão em sacrifício, Lux se safou e continua com o seu plano nojento de extinguir tudo e todos.
— Está dizendo que Lux venceu? — perguntou Colth. — Sem chance. Ainda estamos aqui e temos que lutar...
— A capital está em ruínas e o mundo um completo caos! — desabafou Koza observando o contraponto com desprezo. — “Lux venceu?” Que tipo de pergunta é essa? O que você acha? Perdemos tudo. Não há mais nada pelo que lutar.
— Não podemos desistir assim. Ainda temos como lutar e...
— Lutar por qual motivo, Colth!? Hã? — confrontou com energia e em seguida voltou a esconder os olhos nas sombras conformado: — Por uma pilha de entulho? Não obrigado, eu não tenho mais pelo o que lutar. Você jamais entenderia.
— Eu jamais entenderia?! — Colth sentiu o ódio corroer sua garganta e avançar até as suas palavras cuspidas: — Eu perdi minha família inteira, todos aqueles que eu amava. Eu perdi minha cidade inteira, todos aqueles que acreditavam em mim.
— Ótimo! Você tem um monte de pedra nessa cidade que pode usar de lápide para chorar pela sua família de mentirinha.
— Seu desgraçado...
Colth confrontaria a criatura no canto da sala, pretendia golpeá-lo com a sua raiva, mas foi seguro por Celina. A garota agarrou o pulso do rapaz e o impediu:
— Calma, Colth. Isso não vai adiantar em nada.
O rapaz respirou fundo recolhendo o seu rancor ao desviar o rosto em repulsa.
— Celina tem razão — Koza continuou sério. — Nada mais adianta agora.
— Então Tera se sacrificou em vão?... — Sussurrou Garta erguendo o silêncio em seguida.
O abatimento foi visível no rosto de todos. Finalmente haviam percebido o que aquele mar de entulho representava e com ele uma desilusão avassaladora se estabeleceu. Colth escorou-se na parede esfriando a cabeça.
Começaram a pensar o quão Koza estava certo. Talvez, de fato, nada mais importasse. Talvez, tudo pudesse ser resumido em ruínas, como aquelas da Capital. Foram minutos de uma quietude remoendo a melancolia.
Goro se mostrou desconfortável, não conseguiu se conter frente ao ambiente pesaroso, se manifestou rompendo o desalento:
— Mas, então, o que explica termos passado nove anos dormindo, e só acordarmos agora?
— Como você é idiota — respondeu Garta de imediato. — Não ficamos dormindo por esse tempo. Nós simplesmente pulamos esse período todo.
— Tá, mas isso não faz diferença — retrucou Goro dando de ombros certo de suas palavras.
Garta continuou com ar superior sobre ele. Olhava para o rapaz como se fosse apenas uma criança das mais tolas:
— Como foi que você passou nas provas teóricas do exame de Albores em? Eu não vou explicar mais uma...
— Deixa que eu explico, Garta — Colth tentou resolver de uma forma mais pacífica do que a da guardiã de Finn sem paciência. Se voltou ao amigo e completou mais ameno: — Você não entendeu Goro, é um pouco mais complicado do que...
— Ele tem razão — concluiu Celina interferindo na explicação.
— O quê? — Colth e Garta uníssonos e surpresos.
— Goro tem razão — repetiu plácida a guardiã de Tera.
— Exato, eu tenho razão — concordou Goro elevando as sobrancelhas sobre os outros. Logo percebeu e perguntou: — Mas sobre o que eu tenho razão?
— Aff — Celina suspirou profundamente, desviando seu olhar do rosto confuso do rapaz esnobe. — Nós saltamos esse período todo. Mas porquê? Me parece que não foi por acaso. Não é, Koza?
— O que está insinuando? — perguntou a criatura isolada ao ser confrontado pelos belos olhos da garota.
— Tera percebeu que não teria poder o bastante para barrar Lux, nem mesmo com o seu sacrifício. — Celina continuou. — Percebeu que, nem a sua magia mais forte, poderia para-la. Por isso direcionou sua magia temporal na nossa direção, para nos mandar ao futuro. Afinal, ela era a deusa do tempo, a explosão foi o efeito colateral dessa magia poderosa.
— Você acha que... — Koza sussurrou sua dúvida, mas foi interrompido pela firme intervenção de Garta, que complementou a teoria de Celina com convicção:
— Tera não tentou se sacrificar pela derrota de Lux na explosão. Ela estava tentando nos dar uma chance no futuro — afirmou Garta, cerrando um dos punhos com determinação —, nesse futuro.
— Uma chance para um contra-ataque — acrescentou Colth, com expressão decidida.
Um silêncio carregado de significado preencheu o porão enquanto a criatura revelava seus olhos, transbordando surpresa e emoção diante daquelas palavras:
— Tera nos protegeu de Lux... — sussurrou seus pensamentos.
— Então o mundo não acabou de fato, não é? Ainda podemos dar a volta por cima, certo? — perguntou Goro confuso em meio as perspectivas dos outros e foi parcialmente ignorado.
Celina avançou o assunto mirando Koza surpreendido, quase como um ultimato:
— Não é por acaso que estamos aqui. Tera tinha uma missão para você, não é?
— Ela me fez prometer protegê-los... — Koza refletiu em voz alta, chegando a uma conclusão: — Para salvar esse mundo.
— Você não é do tipo que quebra promessas, não é? — provocou Garta, desafiando-o.
Koza a encarou com seriedade:
— Não. Claro que não — Encheu-se de determinação. — Nem tudo está perdido.
Celina, ao lado de Colth, sussurrou para que só ele escutasse:
— Não precisa socar todos os seus amigos.
O rapaz ficou boquiaberto antes de desenhar um sorriso satisfeito ao entender o que ela quis dizer com aquilo. A garota ainda se evidenciou caminhando alguns passos até o centro do porão mirando os olhos para a criatura:
— Então você tem pelo que lutar. Vai nos ajudar, não é Koza?
A criatura sorriu cedendo sua posição.
— De certa forma, eu ainda tenho que seguir as ordens de quem responde por esse mundo. Então, sim.
Todos concordaram com olhares entre si. Esses olhares ecoaram após o desastre, simbolizando confiança e sintonia, unindo-os por um único objetivo. Aceitando a perda sem aceitar a derrota, entenderam que seriam eles a mudar o rumo desse panorama sombrio que envolvia seu mundo órfão.
Colth sussurrou ao lado de Goro após a conclusão:
— Mandou bem.
— Não sei do que você está falando — respondeu o amigo.
— Não banque o idiota comigo. Entendeu o verdadeiro significado do sacrifício de Tera.
— Eu não sei mesmo do que você está falando — Goro concluiu caminhando para longe e se afastando da indagação.
Colth apenas sorriu com o canto da boca ao ser deixado para trás, estava nada impressionado.
***
Poucas horas se passaram, a determinação e confiança não mudaram, continuavam intactas. Uma mesa improvisada foi colocada ao centro do porão com meia dúzia de caixotes e bancos espalhadas ao seu redor servindo de assentos. Logo, a discussão sobre os próximos passos que estavam por vir começou:
— Então, o mundo inteiro parece um deserto, e o paradeiro de Lux é desconhecido? — recapitulou Colth.
— A destruição só atingiu a Capital, mas todas as cidades estão vazias. Como verdadeiras cidades fantasmas — respondeu Índigo, sentado do outro lado da mesa.
— Podem até parecer cidades fantasmas — acrescentava Iara —, mas são perigosas. Há os doentes da lua, e os Vanguarda espalhados por aí.
— Você já havia falado desses Vanguarda, o que são? — perguntou Garta.
— Um grupo que se autointitula governantes do novo mundo. Eles são comandados pelo Bernard e são como bárbaros sem misericórdia.
— Bernard? — Garta novamente se pronunciou. — O guardião nervosinho? Achei que o Índigo tivesse parado ele.
O homem mais velho desviou os olhos insatisfeitos:
— Eu lutei com ele antes de vocês encontrarem Lux e a explosão acontecer. Bernard se mostrou um adversário mais forte do que eu esperava. O guardião de Calis é poderoso, minha perna é a prova disso.
Índigo mostrou a perna prejudicada, levantou a espécie de manto que vestia e mostrou a pele coberta de bandagens brancas enroladas por toda perna direita. Os outros sentiram a dor dele, mas preferiram não a enunciar.
— Se Bernard ainda está por aí — Celina pensou alto —, podem haver outros guardiões?
— Eu ouvi boatos bem sólidos de uma garota com poderes sobrenaturais de levitação na região de Taemar — disse Iara —, se eu tivesse que apostar, diria que é uma guardiã.
— Sem dúvidas é a guardiã de Nox, Dilin — complementou Índigo — Não gosto daquela garota.
— Está falando da garotinha que tem o gigante incrivelmente forte de estimação? — perguntou Garta se lembrando de já ter visto a figura peculiar.
— Sim, o irmão de Dilin, mas ele não é muito inteligente, e definitivamente, menos perigoso do que a irmã.
— Menos perigoso? Aquela criatura monstruosa? Espera, você disse “irmão”? — surpreendeu-se Garta.
— Isso. Pode não parecer, mas eles são irmãos. Tão poderosos, quanto o guardião de Calis ou qualquer outro — confirmou o homem mais velho. — Além deles, ainda tem o Hui, mas seu paradeiro é desconhecido.
— Hui. Esse nome... — Colth refletiu alto. — Esse é o filho do deus Hueh, não?
— Exatamente, ele é a cara do pai, não só fisicamente, também na sua personalidade odiável. Mas é um guardião renegado, não respondia mais ao seu pai.
— Então, além de ser um mundo quase deserto e perigoso — comentou Goro —, ainda é um mundo cheio de doidos com magias poderosas e caráter duvidosos.
Koza se posicionou sobre a mesa chamando a atenção:
— Não esqueçam que o nosso foco deve ser Lux. Temos de impedir ela e seu plano de recomeçar.
— Acho que você poderia começar nos contando o que aconteceu antes de tudo isso explodir. E o porquê de ter tantos deuses nesse mundo. — Índigo foi direto. Teve aprovação de todos os outros com olhares curiosos.
— Ah, tudo bem — concordou a criatura ao ser pressionada. — Bom, tudo começou quando os deuses decidiram entre si que iriam acabar com as demandas por sacrifícios de guardiões à deusa Lux.
— A reunião dos oito deuses — sussurrou Colth.
— Exato. Os Deuses se reuniram e decidiram não sacrificar mais os seus guardiões em nome de Lux, como sempre havia de ser. Esse foi o início da revolta contra a deusa maior.
— Por que Lux precisava de sacrifício de guardiões? — perguntou Goro. — Ela já não era a... como você disse? “Deusa maior”?
— Ninguém sabe de fato o motivo dos sacrifícios — respondeu Koza. — Talvez seja para consumir suas magias, ou fazê-los de seus escravos. Ou talvez, Lux só queria mostrar quem é que, de fato, mandava. Lembrar aos filhos que eles são apenas seus subordinados, vai saber.
— Essa mulher é o mau encarnado — comentou Goro.
Koza voltou ao seu assunto principal olhando para todos ao redor:
— Enfim, Lux não gostou de ter sua demanda pelos guardiões recusada e iniciou o seu plano de retomada dos mundos dos deuses desobedientes. O mundo de Anima foi o primeiro, ninguém sabe ao certo, mas ele desapareceu em minutos após a chegada de Lux. Hueh escapou e auxiliou um grupo de deuses que se formava para deter a destruição dos próximos mundos por Lux.
— Tera, Finn, Mutha, e Rubrum — disse Colth.
— Exatamente.
— Espera um pouco — solicitou Garta. — Hueh se juntou a esses deuses?
— Sim. Hueh era um aliado — respondeu Koza. — Ele não chegou a lutar, mas auxiliava na estratégia. Foi assim que o grupo formado criou um plano para impedir Lux. Ao tentar a destruição do mundo de Rubrum, a deusa maior seria emboscada. Na ofensiva, estavam o próprio deus Rubrum, a deusa Tera, e o deus Mutha, além de seus aliados, como por exemplo, eu. A deusa Finn ficou responsável pela rota de fuga, com a sua magia de portais interligando os mundos, caso o plano desse errado. E deu errado.
— Vocês fugiram? — perguntou Garta.
— Foi uma retirada estratégica — corrigiu Koza. — Rubrum foi morto por Lux, nos obrigando a recuar para o mundo de Finn, mas algo deu errado. O portal não fechou a tempo, e Lux invadiu também o mundo da deusa Finn. Aquele mundo belo, moderno e avançado foi corroído pela maldade da deusa maior. Nem mesmo as armas mais tecnológicas que eu já vi, foram o bastante para detê-la. O que nos restou, foi recuar mais uma vez após uma luta pela sobrevivência. Despistamos Lux e fomos parar aqui, no mundo de Tera.
— Quando diz, todos — Celina tentava o esclarecimento —, você quer dizer Tera, Finn, Hueh e Mutha?
— E a mim mesmo, sim — confirmou Koza. — Tera abrigou todos em seu mundo, no nosso mundo. Finn usou toda sua magia para proteger o mundo de Tera, agora sua moradia, de qualquer possibilidade da vinda de Lux. Além disso — a criatura olhou diretamente para Garta —, ela adotou o nome de Petrica e, sem possuir mais um grande poder mágico, se tornou uma cidadã de Taemar no mundo de Tera.
— Onde se casou e teve dois filhos — concluiu Garta soturna.
— Podia ser um final feliz — disse Goro —, mas estamos sentados em caixas de madeira ao redor de uma mesa no porão de uma cidade em ruínas. O que foi que aconteceu?
— Pelo que parece, Hueh traiu tudo e todos — respondeu Koza. — Recrutou alguns poderosos do império, manipulou a deusa de Tera, e abriu uma passagem para a guardiã de Rubrum e seus capangas. — Terminou conferindo o rosto de índigo.
O homem mais velho desviou os olhos arrependidos:
— Eu peço desculpas por isso, sei que devem me odiar e...
— Não — Colth interrompeu. — O seu pedido de desculpas serve. Eu também fiz coisas ruins, pelas quais eu me odiei, mas o importante agora é fazermos as coisas certas daqui para frente.
Índigo voltou com os olhos em um brilho agradecido. Acenou positivamente com a cabeça após olhar por um instante a garota Iara mais ao fundo do cômodo. Resumiu:
— Tem razão.
Koza voltou ao assunto principal da reunião:
— O importante agora é focarmos no objetivo. Dito isso, temos de achar um jeito de encontrar Lux. Faremos ela pagar antes que esse mundo pereça por completo.
— Não vai ser difícil — respondeu índigo. — Lux está sedenta para apagar toda a magia deixada pelos seus filhos. Isso inclui todos os guardiões.
— Acha que Lux virá de encontro a nós? — perguntou Colth.
— Definitivamente, não é a prioridade dela, mas se qualquer guardião fazer barulho o suficiente, e chamar atenção...
— Tem razão — complementou Koza. — Lux deve estar lidando com outro mundo, um que represente mais perigo do que o mundo de Tera nesse momento. Ela não deixaria todos esses guardiões livres se soubesse da existência deles aqui.
— O que significa que ela não voltará por algum tempo — Celina pensou alto. — A não ser que chamemos sua atenção.
— Exatamente — concordou Koza. — Se descobrir que há tantos guardiões aqui em Tera, Lux não hesitará em vir e acabar de uma vez por todas com esse mundo. Ela vai tentar extinguir a vida desse mundo, assim como fez com o mundo de Rubrum e o mundo de Finn.
— Do que está falando? — Garta se surpreendeu estranhando. — O mundo de Finn não foi destruído... não completamente, ao menos.
— Hã? — Koza não entendeu de imediato.
Garta teve de ser mais clara:
— Ainda há vidas em Finn. Uma pequena cidade.
— O quê?
— Sim, inclusive meu irmão vive aos arredores dela. Chamamos de Vila Última.
— É um nome bem autoexplicativo, não? — comentou Goro enquanto todos esperavam a resposta da criatura.
— Espera. — Koza solicitou um segundo para colocar os seus pensamentos em ordem. Voltou confuso: — Por que Finn nunca nos disse isso? Nunca mencionou nada parecido para Tera ou Mutha.
Colth comentou de imediato:
— Talvez ela não soubesse?
— Não. Até onde eu sei — Garta se aprofundava —, foi minha mã... Foi a própria deusa de Finn que fundou a cidade em um lugar bem isolado de qualquer centro existente naquele mundo.
— Mundo avançado. Conhecimento — disse Celina, recebeu a atenção de todos ao dizer coisas sem significado à primeira vista. Continuou pensativa: — Por isso a biblioteca... Uma arca.
— O quê? Do que você está falando? — Colth perguntou ao seu lado.
— Aquela grande biblioteca na Fortaleza Última onde estivemos após o exame de admissão. A biblioteca é uma grande arca. — a garota respondeu e se deu conta do que disse: — “Fortaleza.”
Celina levantou o tom vivaz ao perceber algo que sempre esteve lá. Prosseguiu:
— Por isso era uma fortaleza. Para proteger os conhecimentos mais importantes reunidos daquele mundo.
— Calma aí. — Garta balançou a cabeça negativamente e continuou em seguida com sua indagação: — Não era conhecimento algum. Ninguém conseguia entender o que estavam nos livros, nem mesmo as pessoas da vila. Estavam em um idioma irreconhecível, eram apenas milhares de páginas com rabiscos.
Celina colocou o seu polegar sobre os lábios intrigada:
— Tem razão. Mas não faz sentido guardar milhares de livros, se ninguém vai ter capacidade de lê-los. Tinha que ser a língua conhecida pelas pessoas de Finn, a língua materna delas, então por que... Seria possível se... Koza! — A garota mantinha-se energética tentando entender a situação.
— O que foi? — a criatura se assustou com a empolgação e a sede de respostas vinda de Celina.
— Você nos disse que Mutha e Finn vieram ao nosso mundo, refugiados após a derrota para Lux em Rubrum.
— Foi uma retirada estratégica e...
— Quanto tempo se passou desde essa “retirada”, até a chegada de Lux e a explosão de tempo?
— Ah... Uns trinta anos. Trinta e um, para ser exato.
Celina se levantou do seu banco improvisado e caminhou em círculos com o seu polegar sobre os lábios. Estava determinada, empenhada a entender aquilo.
— O que ela está fazendo? — perguntou Goro.
— Acho que ela está pensando — respondeu Colth com a mesma pergunta em mente enquanto observavam a garota sussurrar palavras desconexas para si mesma:
— O mundo de Finn tem um idioma diferente do nosso? Não, não agora. Talvez antes? Mas como? Não? Talvez?
— Aí Colth, você tem uma habilidade incrível de atrair malucos, sabia? — pronunciou Goro em um tom que não era de todo sarcástico.
Celina levantou a voz ainda pensativa:
— Um outro idioma apenas presente em Finn. Essa é a conclusão certa. Mas trinta anos não é tempo o bastante para se apagar a língua de uma nação. Mesmo assim, ninguém conseguia entender o que estavam naqueles livros da biblioteca, mesmo sendo nativos de Finn.
— Foi o que eu disse. — Garta retomou. — Nem mesmo a pessoa mais esquecida desse mundo, esqueceria sua língua materna.
O silêncio pensativo tomou conta da mesa. Todos tentavam chegar a alguma explicação plausível sem sucesso. Goro se cansou da quietude rápido, e se pronunciou em tom irônico ácido:
— Se fosse o Colth, eu apostaria que ele conseguiria esquecer.
— O quê? — Celina encarou a própria teoria em sua cabeça.
— Para de ser babaca, Goro — disse Colth se sentindo insultado. — Foi um erro meu ter usado a magia de Anima para esquecer o que aconteceu naquele dia e fugir do passado, mas não precisa ficar esfregando isso na minha cara toda vez que...
— É isso! — Celina colocou as palmas das mãos sobre a mesa de forma empolgada. — Magia de Anima!
— Ficou maluca, mulher!? — Goro se assustou.
— Magia de Anima foi a responsável por apagar o conhecimento das pessoas restantes de Finn — concluiu a garota.
— Maldito Hueh. — disse Garta rangendo os dentes.
Koza tomou a frente da conversa enquanto Celina voltava a se sentar. Ele pensava alto envolvendo todos em suas memórias:
— Não faz muito sentido. Naquela época, tínhamos Hueh como aliado. Ele votou a favor de Tera e Rubrum na reunião dos deuses, e até nos ajudou a arquitetar o planejamento. A não ser que... — A criatura entendeu. — A própria Finn pediu que Hueh apagasse esse conhecimento de seu povo.
— O quê? Por quê? — Garta perguntou já negando essa possibilidade.
— Para dar a mesma oportunidade que Tera nos deu agora.
— Faz sentido — concordou Celina de imediato com a criatura.
Mais uma vez o silêncio pensativo. E mais uma vez Goro foi quem o perturbou:
— Alguém pode me explicar? Eu não estou entendendo mais nada.
Celina foi ao apoio:
— Finn sabia dos riscos de uma guerra comprada contra Lux. Pensando nisso, a deusa guardou o conhecimento mais precioso de seu mundo em uma biblioteca fortificada, em um lugar afastado, próximo a uma pequena vila que ela mesma havia fundado. Desse modo, mesmo que tivesse de deixar o seu mundo às pressas, teria parte dele guardado e seguro. Mas isso não foi o bastante. E se o seu povo chamasse a atenção com as tecnologias e conhecimento daquele mundo. Ela precisava se certificar de que o conhecimento ficasse perdido, por um tempo pelo menos, até que as coisas se acalmassem ou ela retornasse.
Koza se pronunciou ainda pensativo:
— Se existe mesmo todo esse conhecimento guardado nessa tal fortaleza... As armas e as tecnologias que o povo de Finn usou contra Lux, sem dúvidas, seriam úteis em uma nova batalha.
— O problema é, conseguirmos acesso ao mundo de Finn — resumiu Colth.
— É possível, se eu conseguir tirar essa coleira, e usar a magia de deslocamento. — Garta apontou para o seu próprio pescoço. — Preciso encontrar uma das chaves de que Goro comentou.
Goro, citado, estranhou:
— Sim, mas eu vi essas chaves no prédio do ministério da Defesa, lá em Tekai. Não me diga que está pensando em atravessar esse deserto de entulho e ir lá e... É exatamente o que você está pensando, não é?
— Sim.
— Você não ouviu o que o velho perneta e a arqueira fofinha falaram? — perguntou Goro provocativo, tirando um olhar insatisfeito de Índigo. — A capital está em ruínas, tem um guardião idiota que se acha um deus, e há pessoas doentes por aí que são perigosas e sentem prazer em matar.
Mesmo com as palavras verdadeiras de Goro, a mulher não hesitou em sua decisão:
— Só a capital está em ruínas. O que significa que o prédio do ministério em Tekai ainda está de pé.
— Esse não é o ponto — retrucou Goro negando a decisão com o balançar de cabeça. Virou-se ao outro amigo e continuou sincero: — É por isso que eu te odeio, Colth. Você só faz amizade com pessoas sem noção.
Colth foi de encontro com essa ideia:
— Garta está certa. Não podemos ficar parados esperando a chegada de Lux, precisamos reunir o que temos de melhor. A tecnologia de Finn e a magia de Garta serão necessárias, se quisermos parar a deusa da luz.
— Exatamente — concordou a guardiã de Finn com uma expressão aprovadora em seu rosto antes da continuidade de Colth:
— E é por isso, que eu quero propor uma união entre os outros guardiões. Uma união com a guardiã de Nox e o guardião de Calis.
O silêncio ganhou notoriedade novamente. Todos repetiam aquelas palavras em suas cabeças para terem certeza do que haviam entendido. Garta mudou seu semblante completamente à medida que compreendia. Desaprovou dessa vez:
— O quê?! Nem pensar. Você deve estar brincando...
— Não. Escuta, Garta. Lux é poderosa, você presenciou aquela batalha divina contra Tera. Temos de usar tudo o que temos, inclusive nos unir aos que não gostamos contra algo que quer nos destruir.
— Não, mesmo!
Garta franzia a testa e balançava a cabeça negativamente enquanto os outros apenas observavam a discussão se acalorar. Celina se pronunciou ao lado do amigo:
— Colth tem razão. Não conseguiremos vencer Lux sem um bom grupo.
— Você concorda com isso, Celina? — Garta ainda estava incrédula. — Bernard, o guardião de Calis, foi quem feriu o Aldren. Ele o teria matado, se eu não tivesse intervindo. E agora você me diz que quer trabalhar com ele?
— Se isso for o necessário para salvar o meu mundo — Celina olhou para todos ao seu redor, decidida —, e para salvar todos por quem me importo. Então, sim. Eu concordo com Colth. Primeiro vamos atrás da guardiã de Nox, já que temos uma noção de onde ela está. E depois, vamos encontrar o guardião de Calis.
Garta foi acertada pelas palavras e pela intensidade delas. Não esperava isso vindo daquela garota. Lembrava-se dela como alguém indiferente a qualquer situação, mas não era isso que se apresentava diante de seus olhos surpresos agora:
— Celina... Você... — A mulher boquiaberta se forçou a interromper o que estava prestes a dizer. Desfez todos os seus pensamentos e voltou negativa: — Não. Eu já disse que temos de tirar essa coleira do meu pescoço.
— Tudo bem — Colth acenando positivamente —, mas primeiro, vamos encontrar os outros guardiões. Já sabemos onde Dilin está.
— Não. Isso não vai acontecer. E se eles se negarem a nos ajudar? Ou pior...
— Faremos que aceitem — disse Colth interferindo e elevando o seu tom decidido. — Vamos convence-los a nos ajudar.
Garta manteve seu olhar impiedoso e, até enojado, sobre a dupla discordante. Balançou a cabeça negativamente e respirou fundo como se estivesse pronta para ceder. Voltou um tanto emburrada antes de novamente encarar os olhos de Colth e finalmente: — Que seja, mas eu vou continuar com a minha ida à Tekai para retirar essa porcaria do meu pescoço.
Colth e Garta cruzavam os seus olhares decididos. Decisões opostas que demoraram a ser percebidas por Goro. Finalmente notou se pronunciando:
— Espera aí. A garota das flechas falou que a guardiã de Nox foi vista em Taemar. Mas isso fica para o lado oposto de Tekai.
— Uma separação em dois grupos — evidenciou Koza. — Não é de todo ruim.
— Isso vai acelerar nossos avanços — prosseguiu Índigo tendendo a concordar.
Koza manteve-se alguns segundos pensativos. Em seguida balançou a cabeça positivamente, tomando sua decisão:
— Então, faremos isso — concluiu a criatura sobre a mesa. — Mas já adianto que ficarei ao lado de Celina. Ela é o que resta da magia de Tera, o que me prende a esse mundo.
Índigo aceitou sem oposição. Voltou-se à garota ao seu lado:
— Então, eu tenho um trabalho para você, Iara. Quero que acompanhe Garta na busca pela libertação de sua magia.
— Pode deixar comigo! — respondeu ela animada. Olhou para a mulher por qual possuía uma admiração e a cumprimentou com os olhos sorridente: — Pode contar comigo, Garta.
A guardiã de Finn deu um leve sorriso. Ainda se sentia desconfortável por ver aquela garota tão crescida repentinamente. Por mais que não percebesse tantas mudanças em seu comportamento ou personalidade.
— Vocês são todos malucos — disse Goro e, sendo pressionado pelos olhares imediatamente em resposta, sabia o que viria a seguir e reclamou: — Eu vou ter que escolher um dos grupos, não é?
O rapaz perguntou já se virando para Colth.
— Nada disso. Você vai vir comigo — demandou Garta.
O rapaz quase saltou da cadeira para então olhar para a mulher convicta. Mostrou-se surpreendido e com um pouco de medo aparente em seu arregalar de olhos:
— O quê?! Com você?
— Preciso que mostre onde fica o prédio do ministério da Defesa em Tekai.
—...
Goro calou-se chocado. Se virou devagar, novamente para Colth, como se suplicasse sua intromissão. O amigo, em resposta, não interferiu:
— Tudo bem. — Em seguida, Colth grudou seu rosto aos ouvidos de Goro repentinamente, sussurrou: — Por favor, mantenha-a segura. Não deixe que ela compre confusão com ninguém.
— É sério?
— Eu confio em você — respondeu Colth ainda em sussurros. Afastou-se do amigo e disse para que todos à mesa ouvissem: — Com isso, temos os grupos formados.
— Quando foi que ele ficou convencido assim, em? — murmurou Goro sem que ninguém escutasse.
— Então, está decidido — concluiu Koza, colocando um ponto final na reunião.