Volume 2

Capítulo 127: Magia

Quando Colth abriu os olhos, não havia horizonte. Nenhuma linha o separava do infinito. Estava cercado por um vazio espesso, tingido de um amarelo pulsante, um sol eterno. Não havia céu, nem chão. Seus pés tocavam o nada, mas ainda assim sentia peso, não do corpo, mas da mente.

Ao seu redor, fragmentos de paisagens pairavam e flutuavam lentamente. Partes de casas antigas, árvores secas, flores murchas no ar. Havia livros despedaçados com páginas desmanchando ao vento, lembranças partidas, memórias que pareciam suas, mas que ele não reconhecia. Tudo era estranhamente familiar, e ao mesmo tempo remoto.

A voz de Beca pareceu ecoar distante, fora daquele mundo, diminuiu até desaparecer. Se desfez, levada por um vento que não soprava de lugar algum. Colth já não estava mais em Finn. E, mesmo envolto por aquele silêncio absoluto, não sentiu medo.

Ele já sabia onde havia chegado.

— Anima... — sussurrou, sentindo a palavra vibrar no peito.

Olhou para as próprias mãos. Sentiu-as. Mas algo escapava por entre seus dedos a cada segundo, como se sua essência estivesse sendo lentamente absorvida pelo lugar.

— Não tenho muito tempo — murmurou para si mesmo.

Focou-se no objetivo. E então, eles surgiram.

O espaço adiante ondulou. Primeiro vieram os pilares, brotando do vazio. Depois, fragmentos de paredes deslizaram pelo ar e se encaixaram com precisão, erguidas como se obedecessem a um arquiteto invisível. O chão rachado nasceu sob seus pés, e logo foi coberto por um manto espesso de cinzas. O teto, alto e abobadado, desenhou-se acima dele para deixar tudo mais sombrio.

O templo despertou ao seu redor.

Um espaço amplo, que era iluminado pela luz amarelada vinda dos grandes vitrais estilhaçados. O vento também lhe acompanhava pelas janelas despedaçadas, movendo as cinzas finas pelo chão de forma carinhosa.

No centro, entre ruínas inclinadas e fragmentos de estátuas desfeitas, quatro figuras se destacavam. Sentavam-se sobre blocos derrubados, no altar de um deus extinto.

Colth avançou, os passos lentos afundando suavemente nas cinzas, até o centro do salão aos pedaços e as pessoas conhecidas.

Hueh permanecia imóvel, olhos fechados, apoiando a cabeça na mão como alguém exausto demais para existir. Hui observava Colth com um olhar vazio, sereno. Aldren mantinha-se curvado, apoiando os cotovelos nos próprios joelhos com a cabeça baixa e ombros pesados. E uma quarta figura, encapuzada, permanecendo de costas.

Colth parou próximo a eles. Os seus passos cessaram com um som ecoado que se espalhou em uma onda lenta pelas cinzas leves.

— O que está fazendo aqui? — Aldren perguntou, sem tirar os olhos dos próprios pés, sua voz rouca.

Colth ignorou de imediato. Observou o cenário melancólico, os outros ao redor, e rebateu com pergunta, a voz baixa e firme:

— Então isso... isso é Anima?

Aldren se calou. Hueh balançou a cabeça, desviando o rosto com desdém. Nenhum som. Nenhuma resposta até que Hui decidiu falar.

Com os olhos calmos, ele se voltou para Colth:

— Um fragmento do que restou. O último grão de areia de um mundo consumido por Lux. O mesmo que vai acontecer com o seu, em breve.

As palavras saíram suaves, mas carregadas de uma certeza fria. Um sorriso mínimo brotou nos lábios dele. Não era malicioso, nem cruel. Era apenas um fato.

Colth absorveu aquilo em silêncio. Então, mais uma pergunta, os olhos fixos na dupla de deuses:

— Eu não entendo. Por que fizeram isso?

— A divisão? — Hui devolveu, com um leve suspiro sobre a pergunta já gasta. — Apostar no número par e no ímpar ao mesmo tempo, não é óbvio?

— Mas a sorte lhe trouxe um zero — Colth rebateu rápido.

Hui sorriu com o canto dos lábios. E o silêncio se firmou novamente, até Colth expor seus pensamentos amargados mirando Hueh.

— Mas isso não é tudo, não é? Você não confiava nem em si mesmo.

Finalmente, Hueh se virou, lentamente. Respondeu com cansaço:

— Confiar ou não... desde que eu estivesse lá, eu estaria satisfeito.

— Mas não estará — cortou Colth, ácido.

— Não? — Hueh arqueou uma sobrancelha. A expressão provocadora parecia sugerir que estava vencendo em seu jogo.

Colth foi pego de surpresa. Encarou de volta com estranheza e, assim que estava prestes a questionar, foi interrompido por Aldren:

— O que veio fazer aqui?! — gritou repentino, sua voz arrastou as cinzas do chão. Um ódio ainda presente. — Responda!

Colth não se intimidou, sustentou o olhar sobre ele e disse sério:

— Eu preciso da sua ajuda.

Aldren mirou os olhos para ele e o observou com desprezo.

— Está brincando comigo?

Aldren levantou-se rápido, os pilares atrás dele rangeram. Seus olhos, queimavam com um brilho sombrio.

— Vocês não conseguiram proteger o mundo de Tera. Acabaram com as minhas possibilidades de proteger Finn. Destruíram toda a chance que eu dei àquele mundo com meus sacrifícios. E agora quer a minha ajuda?!

Colth permaneceu imóvel, como se cada palavra de Aldren fosse merecida.

— Eu nunca quis sua morte, Aldren.

— Mas causou. E não importa se você queria ou não. Ela veio pelas suas mãos! — rugiu, dando um passo à frente, o vazio distorcendo sob seus pés. — O que você quer? Já não foi o suficiente?

Colth respirou fundo, com paciência. Respondeu com uma serenidade mais barulhenta que um grito:

— Sei que você tentou lutar antes de cair. Que tentou salvar Última. Que fez suas escolhas. E que Hui estava lá, oferecendo saídas fáceis.

Hui virou o rosto, levemente, como se ouvisse, mas não se importasse.

— Eu estava perdendo tudo... de novo — murmurou Aldren, e sua voz mudou. Mais baixa. Frágil. — Rasuey me ensinou o que é dor. Mas Última me mostrou o que é desespero. E quando Hui apareceu... quando prometeu um mundo sem medo, sem perda...

— ...você cedeu — completou Colth, com pesar.

— O que eu poderia ter feito?! — gritou Aldren, voltando ao ódio como se tentasse se agarrar em sua escalada após a queda. — Você, a Garta, a Celina... não estavam comigo! E eu não sabia se algum dia voltariam. Eu estava sozinho. Sozinho em algo pior que o luto. Mas eu tentei... tentei fazer de Última o que sonhei para todos.

Colth ficou em silêncio. Mas sua mente já havia decidido. Expôs:

— Aldren, eu não te culpo por completo.

— Hã?

— Buregar, Edgar... e você — ele falou firme. — Todos foram usados. Puxados para seus piores momentos. Levados a acreditar que estavam escolhendo. Mas estavam apenas cumprindo o plano de um único deus.

Ele se virou. Olhou para os outros três ali à frente com toda a sua convicção. Continuou:

— Hui. Hueh. Helm. O mais fraco entre os filhos de Lux. O menos abençoado. O mais ambicioso... e invejoso.

Por um momento, nenhum som ecoou. Aldren manteve seus olhos perdidos em pensamentos, enquanto os outros três apenas reviravam suas próprias frustrações.

Colth manteve o tom decidido:

— Você não estava sozinho, Aldren. Estava perdido, mas nunca esteve sozinho.

Aldren abriu a boca, como se as palavras fossem escapar em defesa. Mas elas vacilaram. Morreram antes de nascer. Ele voltou a se sentar, e seus dedos começaram a tremer sutilmente sobre os joelhos.

— Garta te mandou para Finn para te salvar. Ela enfrentou o impossível por você. Se não fosse por ela, seu fim teria sido no telhado do Ministério da Defesa em Albores. — Colth não aliviava. — E, no dia seguinte ao que você deixou Tera, Celina implorou para que voltasse. Você não viu, mas eu vi. Ela enfrentou Albores, enfrentou Hueh, enfrentou ela mesma, só por você. Se esforçou como ninguém por isso.

Aldren baixou o olhar, o punho se fechando com força sobre as próprias pernas. Não em fúria, mas em constrangimento. Colth continuou:

— Quando a Celina perdeu as esperanças, quando estava prestes a desistir e cair, eu a segurei. Não só por ela, mas também por você. Porque eu acreditava que você era alguém a ser seguido.

—Eu...

— Você não estava sozinho. Nunca esteve. Estar com alguém não é só estar perto. E estar longe não significa estar esquecido. — Colth tentava se fazer entender. — O que eu quero dizer é que mesmo distante, mesmo em outros mundos ou separados pela linha da vida, se você está pensando naquela pessoa, se aquela pessoa está pensando em você, então você não está sozinho.

A respiração de Aldren tornou-se instável.

E o guardião de Anima, daquele mundo que já não existia mais, continuou com a máxima sinceridade:

— Eu também perdi tudo. Eu também me afundei. — Colth baixou os olhos, encarando as cinzas entre seus pés. — Fiquei preso entre um desejo súbito de acabar com a própria vida e o ódio pleno. Me perdi como você. Me tornei o guardião de Anima. Mas não foi isso que me fez voltar.

A voz dele amaciou, como se falasse não apenas para Aldren, mas para si mesmo.

— Foi porque alguém, em algum lugar, acreditou em mim. Me chamou de volta. Eu só precisei que um amigo me abrisse os olhos com alguns socos para isso.

Ele ergueu o olhar novamente. Seus olhos cintilavam em sinceridade.

— Eu peço desculpas por não conseguir ser esse amigo pra você, Aldren. Por não estar lá quando você mais precisou. Mas não fuja da responsabilidade. Não transforme a dor em desculpa. Você foi o principal culpado pelas suas escolhas. E eu sei... isso machuca. Machuca muito.

O silêncio que veio depois foi pleno.

Aldren ainda não olhava para ele. Mas sua rigidez começou a ceder. Os ombros tremiam, não mais em raiva. As lágrimas surgiram devagar, sem escapar dos olhos.

— Eu vi — disse por fim, baixo. — Vi as suas memórias, Colth, quando me conectei com Anima, com esse mundo. Vi ela... Celina, com você. Vi o que ela se tornou. Era só uma garota. Apática, indiferente, frágil... e eu achava que precisava protegê-la de tudo. Eu achava...

Ele engoliu em seco, e uma lágrima escapou marcando seu rosto cabisbaixo.

— ...eu achava que sem mim, ela não seria nada.

Colth escutou em silêncio. O vento soprou as cinzas sobre seus pés.

— Mas ela foi. — A voz de Aldren quebrou. — Ela foi tudo. Ela se tornou tudo. Forte, firme... com esperança. Mesmo ferida, mesmo sofrendo... Ela se tornou alguém incrível. Alguém que eu gostaria de ter ao meu lado.

Ele ergueu os olhos de novo. Observando as janelas quebradas e o amarelo do lado de fora que era refletido em seus olhos arrependidos.

— E o pior, Colth... — falou com os dentes trincados — é que eu só percebi isso depois da minha morte. Só enxerguei o valor dela quando já não podia mais tocá-la. Quando Anima me jogou de volta cada memória, cada instante que perdi. Ela me amava. E eu... eu a ignorei.

Colth se aproximou. Ajoelhou-se diante dele, sem arrogância.

— Ela ainda te ama. Não como antes. Mas ainda carrega você. Ainda sente sua ausência. Ela não esqueceu.

Aldren baixou a cabeça. As mãos cobriram o rosto.

— Eu não tenho mais pelo que lutar.

— Tem, sim — sussurrou Colth. — Pelo mundo dela. Pelo mundo que um dia foi seu. Se alguém ainda pensa em você, então você não está sozinho.

Novamente o silêncio preenchendo o vazio.

— Você acha... — a voz dele finalmente saiu, rouca, baixa — que se alguém... se a Celina, se vocês, tivessem dito isso antes... eu teria feito diferente?

— Engraçado — Colth não sorriu, mesmo com a leveza de seu tom. — Você é a segunda pessoa que me pergunta algo parecido hoje.

— Sério? E o que você respondeu para a primeira?

— Que o passado é só o passado, e que o único caminho possível para fazer algo diferente, é fazer algo agora, no presente — Colth respondeu, honesto.

Aldren cerrou os olhos. O véu da autopiedade começava a se rasgar. A raiva, que antes o alimentava, agora parecia vazia.

Então, lentamente, ergueu os olhos. E, pela primeira vez, olhou diretamente para Colth sem barreiras. Os olhos estavam cansados.

— Você está aqui por causa dela, não está? Por causa da Lux.

Um leve tremor percorreu o templo de Anima. As colunas distorcidas da ruína ancestral estremeceram devido ao peso do nome pronunciado.

Colth assentiu, devagar, se levantando.

— Ela está solta. E se não fizermos algo, o que restou, vai desaparecer. Tera... Finn... tudo.

Aldren concordou com um balançar leve de cabeça, com os olhos de Colth em reconhecimento lhe encarando. Quase um sorriso agradecido. Mas imediatamente, foram cortados por Hui sentado próximo. Uma risada desonesta em meio tom. Em seguida disse, amargurado:

— Impressionante como vocês são hipócritas.

Colth e Aldren lhe encararam com o mesmo desgosto. Hui continuou:

— Se fazem de heróis, dizem que é para o bem de todos, mas no final são exatamente como os deuses que vocês tanto odeiam e colocam a culpa de tudo.

— Do que você está falando? — questionou Colth. Aldren parecia já saber onde o deus queria chegar, mas apenas desviou os olhos.

— Não se faça de inocente — rebateu Hui, firme. — O nosso bravo imperador sabe do que eu estou falando.

Colth dobrou as sobrancelhas e se virou para Aldren, esperando pela resposta. O homem baixou a cabeça e desprendeu a palavra com dor:

— Sacrifício.

Colth segurou a respiração surpreso. Hui sorriu com o canto de boca. Sussurrou em provocação:

— O meu grande imperador vai permitir mais sacrifícios? Mais sofrimento? Qual será o guardião sacrificado? Ou serão uma centena de pessoas novamente...?

— Não escute ele, Aldren.

Colth se colocou a frente. Impedindo as palavras de Hui e sua manipulação aguçada.

— Ele tem razão, Colth. O ritual para aprisionamento de Lux necessita de sacrifício e... Eu não posso fazer isso de novo...

— Não precisa se preocupar com isso — Colth pareceu irradiar convicção.

— Hã? — Aldren levantou a cabeça e o observou de baixo para cima.

— Eu prometo!

— Promete? O quê?

Colth apenas sorriu com convicção e determinação para ele. Pronto para ouvir sobre o ritual e contar sobre o seu plano para finalizar com aquilo tudo.

 

                                               ***

 

Lux, com o rosto frio e ao mesmo tempo arrogante, flutuava alguns centímetros sobre a grama orvalhada. Seus cabelos brancos ondulavam sem obedecer ao vento. Seus olhos vermelhos se destacavam no seu belo rosto convencido.

Ela sorriu, cruel.

— Vocês insistem em resistir. Tão pequenos e tolos. Apenas me entreguem a magia da deusa de Tera e darei um fim rápido a vocês.

— A magia de Tera jamais será sua novamente — disse Dante, rodeado de seus aliados. Garta, Goro, Iara e Mon lhe acompanhavam.

Lux voltou a exigir:

— Para onde aquele familiar nojento levou a garota com a magia de Tera? Respondam!

Em seguida, se virou para procurá-la, mas foi rapidamente interrompida. Garta gritou:

— Não nos ignore!

A guardiã de Finn, entre os aliados, foi a primeira a avançar. A espada curva em suas mãos piscou entre os mundos. Ela se concentrou e saltou, atravessou os céus até Lux em um piscar de olhos graças a magia de Finn.

— RAAAAH! — gritou, girando a lâmina curva no ar com toda a força.

Lux ergueu a mão. A espada de Finn se chocou contra o escudo invisível da deusa, explodiu em faíscas.

Dante surgiu ao lado de Garta, rugindo em um salto. O guerreiro de Tera se jogou contra Lux com velocidade absoluta. Sua lança afiada em direção ao flanco da Deusa, forçando-a a se mover.

Lux desviou com um giro elegante. Seus pés voltaram ao chão.

Mon aproveitou a oportunidade. O guardião de Nox ergueu seu martelo colossal e sombreou Lux antes do golpe violento. A marreta desceu, com força suficiente para esmagar um prédio, mas não acertou.

O martelo colidiu com o solo. Uma cratera se abriu erguendo terra e pedras para todos os lados em uma explosão.

Mon parou após o ataque, tentando ler a situação.

— Onde ela...? — Girou, os olhos varrendo a névoa de poeira levantada por ele próprio.

Lux apareceu atrás do guardião, deslocada pela magia de Finn. Silenciosa, mortal. O cajado agora em mãos, com a lâmina estendendo-se em direção às costas largas de Mon. Um golpe direto nas costelas.

Mas foi impedida.

Dante acertou em cheio a lâmina do cajado com sua lança, desviando a estocada a centímetros do coração de Mon. Em seguida, girou sua lança com seu único braço sobre a cabeça, tentando acertar o rosto de Lux com pura velocidade em acrobacia.

A Deusa fez um movimento espelhado ao dele com seu cajado e parou o avanço da lança. Bloqueou. Ambos mediram forças, equivalentes, mesmo que o homem velho tivesse o triplo do peso dela.

O martelo de Mon eclipsou o sol novamente, em direção a Lux, ele tentou mais uma ofensiva oportunista.

Ela gritou. Maximizando o esforço e a concentração.

Com a mão direita livre, apontou para Mon. A gravidade se distorceu com um som fora da realidade. O corpo inteiro do guardião foi suspenso sem aviso. Privado de peso e força, o golpe de Mon falhou no meio do caminho. E em um gesto brutal, Lux o lançou.

— AHHRGH!

O corpo de Mon foi disparado como um projétil e colidiu com Dante. Ambos se chocaram com um estrondo, sendo arremessados contra os escombros da fortaleza próxima. O que sobrou foi a lança de Tera cravada ao chão.

— Insetos — sussurrou Lux, com desdém, enquanto seus longos cabelos flutuavam no ar.

A uma distância segura, Goro puxou o gatilho de seu revólver, ao mesmo tempo que Iara lançava uma flecha certeira em direção a Deusa maior.

— Agora! — gritou a guardiã de Véu, liberando o projétil.

O disparo e a flecha cortaram o ar em perfeita sincronia. O flash de luz rabiscou uma linha reta, seguido pela silhueta da flecha, em direção a Deusa. Mas Lux, sem demonstrar urgência, girou levemente o cajado. O escudo translúcido foi novamente desenhado, interrompendo o ataque. Porém, Iara já se concentrava para continuar a ofensiva.

O chão sob os pés da Deusa se retorceu, e três lobos sombrios surgiram. Com brutalidade, abocanharam as pernas de Lux com rapidez sem qualquer misericórdia.

Os dentes afiados dos Sirveres encontraram a pele macia, mas a Deusa apenas os observou sem sentir dor. Ergueu uma sobrancelha se concentrando na magia de Rubrum. Em resposta, os lobos gritaram em agonia enquanto derretiam em um líquido escurecido e pegajoso, virando nada.

A Deusa até chegou estranhar a falta da cor ali, Rubrum sempre tingia o mundo de vermelho, mas ali... só sombra. Não teve tempo de pensar mais do que uma fração de segundo. Uma nuvem de corvos avançava veloz em sua direção, prestes a acertá-la.

Podia até parecer que veio do nada, mas Lux sabia que se tratava de uma nova invocação da magia de Véu, da magia de Iara.

— Chega de truques, criança de Véu! — rosnou Lux, demandando, ao mesmo tempo que erguia um braço para frente com a palma das mãos em direção aos pássaros sombrios que estavam prestes a atingi-la.

O bando se dispersou diante dela, como se os pássaros sentissem medo. Eles desviaram em pleno voo, contornando a Deusa pelos lados e por cima.

Lux, em meio àquela nuvem negra de penas e bateres de asas, fixou os olhos em Iara, traçando a sua morte. Mas a garota apenas a encarou de volta, desafiando-a.

No momento em que o último do bando de corvos passou, no momento em que a Deusa se preparou para avançar com o contra-ataque, Garta surgiu do céu.

Encoberta até então pelos pássaros sombrios, a guardiã de Finn estava de cabeça para baixo, impulsionada por um salto antes de seu deslocar que a colocou ali. Ela mergulhava rápido, como um relâmpago, afiada com sua espada curva gargalhando as vozes antigas em seus ouvidos.

Lux não estremeceu. Apenas desviaria fácil e retornaria ao seu ataque já planejado. Mas, assim que tentou mover os pés, foi estranhamente interrompida.

Seus pés estavam presos. Algo havia os agarrados. Sombras. Vindas do sangue derramado dos Sirveres, as sombras se entrelaçaram aos pés de Lux e a seguraram com força.

— Como? Ela não só neutralizou a minha magia de Rubrum, mas a voltou contra mim com o uso de Véu... — sussurrou Lux, não teve mais tempo de pensar. Sentiu a presença vinda dos céus sobre sua cabeça.

Rapidamente olhou para cima, o perigo derramava-se sobre ela. Lux ergueu o cajado. O escudo translúcido se formou no mesmo instante e a espada curva de Garta bateu contra ele, poderosa. O impacto estalou como um trovão, rachando a proteção mágica e o chão sob os pés da Deusa.

Lux reagiu instintivamente, girando o cajado e estocando a ponta com a lâmina em direção a guardiã. Garta sentiu a aproximação e quase se moveu, mas não. Não se permitiu ser parada novamente pelo escudo de Mutha. Precisava manter àquela ofensiva, destruir aquela barreira mágica, se quisesse avançar. Ela confiou.

Goro surgiu em corrida e, em só um movimento coletou a lança de Tera do chão deixada por Dante e a impulsionou contra o cajado de Lux, os entrelaçando. Interrompendo o seu ataque.

Lux tentou então levantar o outro braço livre para invocar a magia de Nox, mirando no corpo de Goro. Afinal, nenhum humano resistiria a gravidade e o peso com força que ela traria para a Deusa.

Mas nada.

Simplesmente não conseguiu mover o braço. Era como se estivesse preso sob o peso de uma montanha, como se a magia de Nox agisse contra ela.

— Não pode ser...

Ela olhou de relance. Mon, ferido entre os escombros da fortaleza, com sangue escorrendo pelo rosto e um corte profundo na testa que o impedia de abrir o olho esquerdo, estava com os braços erguidos. Mesmo quase inconsciente, mantinha as palmas apontadas para a Deusa com dedicação, concentrado.

— Te peguei — sussurrou ele com um sorriso dolorido no rosto. — Agora eu entendi como você usa as magias roubadas.

— Seu...!

Lux não terminou de esbravejar. Algo lhe preocupou ainda mais. Uma angústia ao ouvir o rosnado de Garta.

A guardiã de Finn mostrou ainda mais determinação ao ver o esforço de seus aliados para conter o poder absoluto da Deusa. Principalmente, Goro, um humano em meio a deuses e guardiões. Sabia que aquilo não duraria mais do que alguns segundos, e isso elevou ainda mais o seu poder.

Ela pressionou a espada com ainda mais força. As rachaduras no escudo se espalharam como em um vidro prestes a estourar.

Lux rangeu os dentes. A sua barreira mágica estava à beira do colapso.

O cerco estava se fechando. A Deusa sabia que precisava sair dali, agora, naquele instante. Mas os seus pés ainda estavam afundados naquela sombra viva por Véu, impedindo o movimentar ou deslocamento. O escudo de Mutha estava prestes a ser destruído. O seu braço esquerdo não podia ser erguido, parecia estar sob o peso vingativo de Nox. E o braço direito com o cajado ocupado com um simples humano.

“Humano.” A palavra passou pela cabeça da Deusa de forma a enojá-la.

— Um mero humano — ela sussurrou fixando os olhos em Goro e se concentrando em magia de Anima. — Que a sua mente sucumba.

O silêncio se fez enquanto ela o encarava.

Aos olhos de Goro, um momento constrangedor.

O rapaz olhou de volta como se tivesse levando um flerte de uma completa estranha. Ele respondeu com um olhar aguçado e sarcástico, enquanto ainda mantinha a lança pressionando o cajado:

— Desculpa aí, mas eu não tô interessado em uma mulher tão mais velha.

— O quê?! — Lux estranhou completamente, surpresa.

— A idade te deixou surda, foi?! — Ele gritou, como se aquilo realmente fosse o problema da comunicação. — Não leva para o lado pessoal, purpurina, você é uma nota “S”, com certeza, mas eu já tenho alguns planos com uma outra pessoa.

— Imbecil, como você resistiu a minha magia de Anima? — ela realmente não entendia, e isso a irritava.

— Ah, isso? — Goro fingiu surpresa. — O Colth me ensinou algumas coisas. Ele me passou um método que a Lashir usou para manter afastadas as ideias de Hui e a magia de Anima de sua cabeça. Não é tão complicado, precisa de um pouco de paciência, meditação e esforço. Mas você pega rápido depois de algumas vezes tentando. Sabe, depois de aprender isso, eu penso que deve ter um método para conter, ou minimizar, cada uma das magias e...

— Cala a boca! Por que está me falando isso, seu minúsculo apedeuto?

— Eu já disse que tenho alguém. Não adianta me elogiar, não vou mudar minha escolha. — Goro balançou a cabeça negativamente, tranquilo, talvez cínico. — Mas se você quer tanto assim saber... Eu só estou te mantendo ocupada.

Ele sorriu.

— Hã?

O som de estilhaços se espalhou pelo campo. Fagulhas do colapso voaram em todas as direções, como em uma explosão de luz.

O escudo de Mutha se quebrou em mil fragmentos translúcidos.

Lux virou o rosto, o reflexo tardio de quem foi enganada por um humano.

Não teve tempo para mais nada. Viu apenas o aproximar da lâmina curva em sua direção.

Garta não hesitou.

Girou a espada com toda sua força, aplicada toda à técnica e à fúria. A lâmina encontrou o pescoço de Lux. Um corte limpo. Único, rápido e indolor.

A guardiã gritou. Um rugido que carregava toda a dor, todo o passado, todo o peso de quem foi usada, moldada para aquele momento.

O tempo atrasou.

O espaço se silenciou imediato.

E uma tensão congelou todos.

A cabeça da deusa se separou do corpo e tombou, rolou pelos próprios pés. Parou sobre a grama, aconchegada. Seus olhos, abertos e surpresos, mas vazios.

O corpo de Lux permaneceu em pé por um momento, como se recusasse a aceitar a derrota.

Então desabou.

A respiração ofegante de Garta se fez ouvir.

Goro engoliu em seco, varreu o cenário ao redor com os olhos. Viu Mon se recuperando, Dante tentando se levantar ao lado dele, e Iara distante com um acenar de cabeça orgulhoso. Mais próxima, Garta, encarando os olhos sem vida de Lux.

— É isso? Acabou, não é? — perguntou Goro, implorando pelo fim.

Garta se virou para ele. Os olhos arregalados ainda com a adrenalina nas veias de seu corpo. Mas antes que pudesse responder, antes que pudessem respirar aliviados, um som monstruoso rasgou o céu.

— O que foi isso? — murmurou Goro, ao lado de Garta.

Ambos olharam para cima. O céu... estava rachando.

Uma imensa rachadura começou a surgir no limite daquele mundo. Percorrendo todo o azul visível sobre suas cabeças.

— Isso não... — sussurrou Mon, impactado pela visão catastrófica que um dia já havia presenciado.

O barulho, como um trovão no céu, crescia em intensidade. O precipício no azul o dividia em dois e se expandia, se abrindo. Era como cânions imensos na atmosfera que derrubavam minúsculos cristais de Sathsai por tudo, que brilhavam e cintilavam, como uma chuva de estrelas.

E do centro daquela fenda... algo desceu.

Lux.

Intacta.

— Vocês ainda não entenderam, não é? — A voz de Lux, daquela Lux, ressoou no céu.

Goro chegou a olhar para o corpo que acabaram de derrotar ao chão. Ainda estava lá, frio e imóvel. Ele se virou para Garta, quase uma reclamação:

— Nós quase morremos para acertar um único golpe na Lux, e agora tem outra? Não tem como lutarmos com outra assim...

— Tsc — Garta estalou a língua e cerrou os dentes, com imensa raiva, observando a Deusa completamente recuperada descendo dos céus.

Lux continuou, flutuando com a máxima elegância enquanto o vento tremulava o seu vestido negro e seus belos cabelos triunfante.

— Eu não sou um simples corpo. Sou a energia e a magia. O espaço e o tempo. O sangue e a mente. Eu sou o início e o fim —ressoou ela, e então ergueu os braços com leveza — Não me deixaram escolha. O céu esmagará cada um de vocês, até sobrar apenas a garota da magia de Tera.

De fato, o céu começou a se mover. Lento, em direção ao solo, com um estrondo contínuo de ranger que estremeceu a todos.

Garta, ao perceber a seriedade daquilo, se preparou rapidamente em urgência. Focada com os olhos na Deusa dos céus. Ela estava prestes a se deslocar:

— Eu vou lá...

— Espera. — Goro segurou o ombro de Garta, impedindo-a de se mover. Seus olhos estavam fixos em algo além. Então, apontou para o horizonte partido. — Olha.

Do outro lado do céu, entre os estilhaços de cristal e as nuvens em colapso, a ilha flutuante de Nox surgia imponente, avançando silenciosa.

No alto do castelo, firme contra o vento, uma voz ecoou:

— Estou aqui! — gritou Celina. — Deixe todos em paz!

Lux parou. O céu, que descia como a morte plena, congelou. Por um instante, o mundo respirou aliviado. O olhar da Deusa se voltou, surpresa e intrigada, para Celina.

— Celina... — sussurrou Garta, impressionada pela coragem, lá de baixo ao lado de Goro.

No instante seguinte, a bela forma de Lux se desfez e se refez em um piscar de olhos. Havia se deslocado com a magia de Finn. Agora, ela pairava diante de Celina, no alto do castelo. Olhos nos olhos. A poucos passos uma da outra.

O vento soprou com violência, mas nenhuma das duas se moveu. Nem sequer piscaram.

— Fácil assim? — disse Lux, com um tom que misturava desconfiança e curiosidade. — Vai se entregar? Não esperava isso de você.

— Eu não quero ver ninguém mais sofrendo — Celina, sincera e firme.

— O que te fez mudar de ideia? — Lux ergueu uma sobrancelha.

— Eu já disse. Sem sofrimento. Está com medo do quê? Você não é a Deusa maior? Não tem com o que se preocupar.

Um silêncio tenso se formou. Lux cerrou os dentes, furiosa com a ousadia daquela garota. Mas de fato, ela não tinha com o que se preocupar, a magia de Tera era a menos ofensiva dentre todas e, mesmo que aquela garota frágil tentasse algo, a Deusa maior acabaria com ela em um segundo.

Os pés de Lux tocaram as pedras do telhado do castelo e ela caminhou dois passos determinados em direção ao objetivo final.

A Deusa ergueu lentamente a mão e pousou os dedos no topo da cabeça de Celina. O gesto parecia cerimonial, ao mesmo tempo que era completamente ameaçador.

As unhas claras da divindade brilharam com intensidade sob a luz pálida do céu, que agora tremia, rachado como um espelho.

— Que seja... — resmungou a Deusa. — Acaba aqui.

Como um selo final, o prelúdio de um fim pensado por ela, se concentrou.

Celina fechou os olhos, não por medo, mas por escolha. Não havia fuga, nem súplica.

Lux também fechou os olhos. Reuniu sua essência uma última vez. Todo o seu poder, toda a sua divindade pulsava na ponta de seus dedos. Um brilho puro e escuro ao mesmo tempo.

O arredor desapareceu completamente. Não havia mais chão, nem céu, nem tempo. Foi nesse limiar, entre o ser e o nada, que Lux ouviu:

— Finalmente, mãe… estamos todos reunidos novamente.

A palavra “mãe” soou em uma seriedade lógica, longe de um chamado carinhoso. Como o retorno do ciclo.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora