Volume 2
Capítulo 118: Destino
— Argh! — gritou Celina, agarrando o pé com força enquanto cambaleava para trás, em dor.
— Você está bem? — perguntou o homem, ainda sentado sobre a grande pedra, protegido pela sombra das folhas esmeraldas da bela árvore que marcava a entrada da pequena ponte de madeira levando o caminho até à residência aconchegante. O tom dele era desinteressado, enquanto balançava a cabeça mostrando desaprovação. — Eu avisei que você se machucaria com essa pedra.
Celina resmungou baixinho, afastando a mão do pé dolorido. Se recuperou rapidamente. Seus olhos se levantaram cheios de desconfiança com uma expressão em confronto.
— Por que disse aquilo? — perguntou ela, com a voz descontente em acusação.
O homem arqueou uma sobrancelha, enfrentando-a de modo superior.
— Estava bem óbvio que você não tem treinamento algum — comentou ele, no alto de sua experiencia. — Não importa a sua arma, você é um perigo constante para si mesma. Teve sorte de ser só uma pedra.
Celina ignorou o insulto velado. Levantou a voz exigente:
— Eu não estou falando disso. Não finja. Você disse que é o guardião de Tera — ela insistiu, os olhos faiscando. — Por que disse isso?
Ele deu um suspiro exagerado.
— Ué? Porque eu sou o guardião de Tera. Esposo e combatente. Dante, o lanceiro dos céus.
— Está mentindo. — A resposta de Celina foi seca, cortante.
— QUÊ!? — O homem inclinou-se para trás, ofendido.
— Não é guardião de Tera, coisa alguma — repetiu ela, cruzando os braços com firmeza.
— Como ousa!? — exclamou Dante. Levantando-se abruptamente.
Sua altura, perto dos dois metros, impôs uma sombra imponente sobre Celina, mas ela não recuou. Continuou encarando-o inabalável.
O vento soprou forte, balançando o tecido acinzentado que cobria o tronco e os braços do homem. O movimento das folhas ao redor e os pássaros voando para longe anunciavam o embate entre os olhos deles.
— Você não é o guardião de Tera — repetiu Celina, pausadamente com convicção. — Sei disso porque eu sou a guardiã de Tera.
Dante soltou uma risada amarga, imaginando que a intimidaria, mas Celina permaneceu imóvel, determinada.
Ele então aumentou o tom e o ar de ameaça:
— Até parece que uma coisinha insignificante como você pode ser...
Antes que terminasse, Celina ergueu a mão direita, sem mover o rosto ou os olhos. Da palma de sua mão irradiou um brilho sutil, e a pedra que havia deixado cair no chão momentos antes contrariou a gravidade, saltando suavemente de volta para sua mão aberta.
O homem arregalou os olhos e soltou os ombros.
— Reversão de tempo... Só pode ser brincadeira — balbuciou incrédulo. Em seguida, negou os fatos à sua frente. — Você não pode ser quem me substituiu.
— Então você era o guardião de Tera, afinal? — indagou Celina, ainda cautelosa, analisando suas reações.
— Eu permaneço sendo o guardião de Tera — rebateu ele. Em seguida, baixou a voz e desviou os olhos para as margens do rio. — Eu só não tenho mais qualquer magia, após a batalha do mundo de Rubrum.
Celina começou a perceber onde tudo aquilo se encaixava.
— Você está falando da fuga dos deuses para o mundo de Tera, depois que perderam para Lux. Colth me falou sobre isso e... — ela se lembrou de algo importante. — Ah não, eu preciso voltar e ajudar ele se não...
— Não foi uma fuga, foi uma retirada estratégica — Dante foi enfático para tentar ser mais convincente. Ignorou a outra preocupação da garota. — Mas sim, tanto eu quanto o deus de Mutha perdemos nossa magia naquele dia.
Enquanto falava, ele levou a mão esquerda até o ombro direito e pressionou a região com firmeza. Apenas naquele instante Celina notou que o braço direito de Dante não existia mais, oculto sob o tecido acinzentado que cobria o tronco.
Ela prendeu a respiração, surpreendida. Dante, percebendo o olhar inquieto dela, apenas murmurou:
— Não sou mais o lanceiro dos céus que fui um dia.
— Agora eu entendo — pensou alto Celina. — Por isso Tera não tinha mais um guardião. E no furor da fuga, essa atribuição caiu sobre mim. Lux foi a responsável por isso, e ainda te deixou incapacitado de lutar, senhor Dante.
— Tsc — Ele estalou a língua encarando-a, evidentemente amargo e desagradado pelos fatos expostos. — Não foi fuga... Ah! Isso não muda nada. Eu só perdi minha magia, e meu status de Guardião, por me sacrificar e proteger Tera. Mas olhe só para você!
Dante apontou o dedo para ela, quase acusando-a.
— Hã? — Celina se espantou com o tom energético e ostensivo dele.
Dante continuou:
— Duvido que saiba usar uma arma. Já se mostrou ser uma incompetente desajeitada em apenas alguns minutos. Não tem capacidade alguma para ser uma guardiã. Esse tal Colth, que você precisa ajudar, vai morrer se depender de você.
— O quê? — Foi a vez dela de sentir insultada. Sentiu o rosto esquentar, indignada. Aquilo por si só já era um sentimento novo. Levantou a voz e o encarou. — Pois saiba que eu sei usar uma arma sim! A Garta me ensinou a atirar com um rifle de Sathsai, e eu sou muito boa nisso.
— E quem é Garta?! —perguntou ele sem paciência. — Nunca ouvi um nome horrível assim. Aposto que você inventou agora.
— Eu não inventei! — esbravejou Celina, visivelmente irritada. — Ela é a guardiã de Finn!
O homem bufou, discordante.
— Uma guardiã de Finn ensinando a guardiã de Tera? Isso é ultrajante! — Ele passou a mão pelos cabelos com mechas grisalhas, inconformado. Preferiu a negação da realidade novamente. — Realmente, só pode ser uma brincadeira de mau gosto. Isso deve ser coisa daquele dragão convencido.
— Está falando do Koza? — Celina pareceu mais amena. Sentiu ao citar o nome.
— E existe outro dragão convencido? — rebateu Dante. — Onde ele está? Preciso dar uma bronca nele e...
— Não. — A voz de Celina tremeu. Ela apertou os lábios, hesitando antes de continuar. — Infelizmente, o Koza...
Dante parou, a expressão antes furiosa suavizou um pouco.
— Ah?
Celina abaixou os olhos, deixando-os perdido em pesar.
— Eu sinto muito. — Sua voz saiu ofuscada pela tristeza. — Fui uma completa idiota. Não consegui salvá-lo... e ainda o magoei.
Por um momento, Dante a observou em silêncio, seus olhos avaliando o rosto cabisbaixo dela. Não soube como se portar diante do lamento dela. Celina parecia tão determinada segundos antes, mas agora estava afundada em culpa.
Ela continuou, as palavras em sussurro:
— Acho que você tem razão. — Suspirou, derrotada. — Eu não deveria ser a guardiã de Tera.
Dante percebeu o quão dura suas palavras foram, agora que ditas com aquele sentimento soturno da garota. Com um suspiro cansado, ele relaxou os ombros e adotou um tom mais brando.
— Olha, garota, eu não sei o que aconteceu. — Sua voz tinha um tom de compreensão surpreendente. — Mas não acho que você tenha dispensado o Koza das atribuições dele como familiar de Tera.
— Claro que não! Eu jamais faria isso... — Ela balançou a cabeça, a tristeza e culpa ainda a queimando.
— Entendo... — Ele assentiu devagar. — Então, pode tirar essa expressão de derrota do rosto. Um familiar de uma deusa não é fraco. Na verdade, é quase que imortal.
— O quê?! — Celina levantou os olhos, surpresa.
Dante continuou sério. Explicando com toda a sua experiencia aparente nas suas marcas de batalhas pela pele.
— Enquanto houver uma centelha da magia de Tera por aí — ele inclinou-se ligeiramente, apontando para Celina com firmeza —, Koza estará seguro. Só será necessário trazê-lo de volta.
Celina piscou os olhos várias vezes, processando as palavras dele.
— C-como?
— Ah, garota... Parece que ele te enganou, não foi? É bem a cara daquela salamandra idiota.
***
Garta sentiu o vento frio balançando seus cabelos, enquanto recobrava a consciência sobre uma superfície nada confortável. Um som agudo e constante, talvez um motor, misturava-se com o sussurro da brisa, agravando sua confusão. Lentamente, ela abriu os olhos, piscando para clarear a visão, e percebeu o céu noturno sem estrelas expandindo-se ao redor.
— Onde... — murmurou ela, enquanto forçava os olhos para focá-los.
— Você acordou? Isso não era pra... — uma voz conhecida respondeu, vacilante. Era Hikki, que se aproximava com um ar preocupado. Ele olhou por sobre o ombro e gritou para a outra direção, quase irritado: — Você não disse que ela ficaria apagada por pelo menos uma hora?!
— Sua irmã é resistente demais, o que posso fazer? — respondeu uma voz distante, abafada pelo barulho do vento.
Garta piscou mais algumas vezes, sentindo a cabeça girar, até finalmente se dar conta do seu entorno. Estava em uma embarcação voadora, suspensa no céu noturno, sobre um banco de madeira encostado na parede externa da pequena cabine sem janelas, em meio ao convés.
Mais um instante, e seus sentidos despertaram, a tensão percorreu o seu corpo e ela se sentou rapidamente, voltou-se para Hikki com um olhar definido.
— Hikki, o que você... — começou ela, mas ele ergueu as mãos num gesto apaziguador.
— Calma, irmãzona, — disse Hikki, tentando soar reconfortante. — Está tudo bem...
— Onde estão os outros? Para onde estamos indo? — Garta continuou tensa, desconfiada. Se levantou e olhou para várias direções, fitando o horizonte escuro além do convés em busca de qualquer ponto de referência, qualquer coisa que explicasse onde estavam.
O que chamou sua atenção foi o homem mais adiante, magro, com cabelos longos despenteados, e uma barba por fazer, que manobrava a embarcação usando um trio de alavancas na ponta do convés.
— Quem é aquele? Onde que... — Garta se irritou com suas próprias perguntas. — Hikki, o que você fez?!
— É garoto... — O homem barbudo, ainda concentrado nas alavancas, interrompeu. — Errei na dose, esqueci que sua irmã não é uma mulher qualquer.
Garta atiçou os olhos para reconhecer o homem, um pouco mais velho do que ela. Algo nele despertou uma memória e ela o observou com mais atenção, suas sobrancelhas franzidas.
— Você... é aquele emissário...
— Caio — se apresentou ele. — Fico feliz que tenha se lembrado de mim, guardiã. Eu lembro muito bem de quando levei uma surra de você. Bons tempos, não? — finalizou com um sorriso nostálgico, um pouco depravado, no rosto.
Garta ergueu o nariz, mal disfarçando o desgosto, e virou-se para Hikki, os olhos irados.
— Hikki, por que você está ajudando esse sujeito?
— Ah, mas está enganada, senhorita guardiã, — interrompeu Caio, novamente, com um tom flexível. — Sou eu que estou ajudando seu irmão, e não o contrário. Aproveitando, como foi o cochilo?
Ele finalizou com um sorriso seguro, descomprometido. Hikki, imediatamente em resposta, se virou para Caio com o rosto desiludido.
— Você errou a dose de propósito? — perguntou o rapaz, com os olhos arregalados, suspeitando da intenção de Caio.
— Eu? Jamais — respondeu Caio, com uma expressão ambígua.
Hikki apertou os punhos, aborrecido.
— Espera, o que isso quer dizer? — perguntou Garta, desviando o seu rosto entre os dois. — Vocês me drogaram?
Caio não se prendeu e revelou:
— Seu irmão arrumou um casamento forçado para você e...
— Seu traidor! — reclamou Hikki, interrompendo.
— Desculpa, garoto. — Novamente o sorriso de Caio irritava o rapaz. — Eu já fiquei uma vez contra a sua irmã, e não foi legal.
— Hikki — Garta rosnou com os olhos enfurecidos sobre o irmão.
O irmão deu um passo para trás, claramente tentando se esquivar da raiva da guardiã:
— E-Eu fiz um acordo com o Aldren. Colth e os outros devem estar enfrentando o Gerente agora... mas tudo isso é para garantir sua segurança...
— Hikki — ela repetiu, estreitou os olhos, furiosa.
O irmão sentia as pernas tremer enquanto alvo:
— Aldren prometeu transformá-la numa deusa, Garta, para que finalmente possamos viver sem medo, sem que estejam sempre tentando te capturar ou...
— Hikki — repetiu ela, a voz carregada de uma ameaça que fazia o irmão vacilar.
— A ideia era que você acordasse só no casamento, onde ele já teria concluído o ritual, e tudo estaria resolvido. Um mundo pacífico, com você como deusa. A ideia é perfeita...
Garta avançou.
— Eu jamais me casaria com o Aldren por benefício próprio, seu moleque mimado!
Hikki pareceu encolher sob o olhar de Garta. Sua voz vacilou:
— Ele... ele planeja usar o campo de escravos de Tera para convencê-la. Ele usou a vida deles para me forçar a concordar também, e...
— Os nascidos em Tera? — Garta pausou, pensativa.
— Aldren vai matar todos, se algo sair do roteiro que ele planejou. — Hikki deixava escapar suas palavras como se tentasse se esquivar da culpa. —Por isso que a melhor solução é você se casar com ele, e fazer a paz se manter no mundo. É o melhor para todos também.
— Beca havia mencionado isso — disse Garta refletindo, ignorando a última parte do irmão. E então retornou a raiva sobre ele. — Você esqueceu como eu vivi, Hikki? Esqueceu que eu fui prisioneira daquele maldito Gerente por anos? Como ele me fazia sofrer, me obrigando a fazer os outros sofrer? Não seria diferente agora e...
Garta finalmente percebeu algo que agarrava o seu pescoço. Um colar, que estava mais para uma coleira. A guardiã suspirou fundo e mirou os olhos ferventes em Hikki. Não precisou dizer mais nada, e Hikki continuou com o discurso evasivo:
— Ah, o colar inibidor de magia? Eu não podia deixar que você estragasse o casamento, sabe? As vezes você é um pouco feroz demais e...
Garta apenas esticou a mão com a palma para cima, esperando por algo, sem palavras, foi o suficiente para que Hikki engolisse seco e quase suplicasse perdão.
Ele baixou a cabeça e, hesitante, tirou algo do bolso. Colocou uma pequena chave metálica na palma dela, incapaz de encará-la.
Garta utilizou a chave para destrancar a coleira, e deixou o som do metal ecoar ao derrubá-la no chão do convés. A respiração de Hikki acelerou, mas Garta apenas fechou os olhos por um momento, controlando-se.
— Eu deveria ser “feroz” agora, com você, Hikki. Mas tem coisas mais urgentes — rebateu ela, mais fria.
O irmão respirou completamente aliviado, como se seu tempo de vida tivesse sido estendido.
Caio, que estava quieto até então, riu de nervoso.
— Só para deixar claro — ele pronunciou-se novamente. — Eu avisei que era uma péssima ideia para o Hikki, desde o começo.
— Conversaremos depois sobre isso — Os olhos de Garta mantinham-se ferventes sobre Hikki.
— Sim, irmã — Hikki não conseguia encará-la, mas finalmente mostrou o tom arrependido.
Caio limpou a garganta, o som discreto, mas o suficiente para atrair a atenção de todos.
— Que bom que a sessão de terapia em família terminou — comentou com ironia. — Porque estamos nos aproximando da fortaleza Última. Senhorita guardiã, deveríamos voltar?
Garta observou a torre da fortaleza, se aproximando no horizonte frente a embarcação, e ponderou. A hesitação durou apenas um segundo. Ela então caminhou e parou ao lado de Caio, seus olhos se estreitaram, determinados.
— Não. Com o tempo que já perdemos, voltar seria inútil. Além disso, ao contrário de um certo alguém, eu acredito nos meus aliados. Eles vão dar conta. E eu... — um sorriso frio surgiu em seus lábios — ...eu vou destruir as pretensões de um noivo.
Hikki e Caio trocaram olhares impressionados, espantados pela confiança que ela exalava.
— E você queria que eu ficasse contra ela? — murmurou Caio, mirando Hikki com um olhar astuto. — Até parece. Eu tenho amor à minha vida, garoto.
A embarcação se aproximava da fortaleza Última. No alto do muro externo da torre principal, uma passagem se fazia visível. Aquele era o local para embarque e desembarque da máquina voadora que fora improvisado para um acesso rápido.
Conforme o pequeno barco aéreo se aproximava, o som do motor diminuiu, e o barulho da brisa tornou-se mais evidente. Garta permaneceu próxima à borda, a visão fixa na fortaleza. Apesar de suas expressões controladas, os punhos cerrados denunciavam a tensão. Ao lado dela, Hikki se mantinha em silêncio, mas também atento, enquanto Caio manipulava as alavancas de forma natural, experiente naquilo.
— E aqui estou eu, novamente — murmurou Garta, seu tom seco quebrando o silêncio. — Parece que eu só estou dando voltas.
— Bom, se é assim. Então eu devo dizer, seja bem-vinda, guardiã — respondeu Caio, lançando um sorriso para ela.
Garta respirou fundo, sem dar atenção ao homem.
A embarcação finalmente alcançou o ancoradouro improvisado. Uma plataforma de pedra que emergia da lateral da fortaleza, conectada a um arco de metal que servia como porta. Não havia guardas, nem qualquer tipo de movimento no local, o que apenas aumentava a desconfiança de Garta.
— Sem recepção? — questionou ela, atenta.
— Aldren tem confiança demais no poder dele próprio — comentou Caio, ajustando as alavancas uma última vez antes de a embarcação pousar suavemente sobre a plataforma. — Além disso, a maior preocupação dele não está aqui.
— Fala do Hui? — perguntou Garta, sem desviar os olhos da fortaleza à frente.
— Sim — respondeu Caio, relaxando as mãos das alavancas. — Não é fácil manter tantas pessoas presas, e quando o ritual começar... aquilo vai virar um inferno.
Garta apertou ainda mais os punhos, sua expressão endurecendo enquanto uma rajada de vento forte balançava seus cabelos negros. Ao lado dela, Hikki tentava mascarar o nervosismo.
— Essa é uma preocupação que vai ter que ficar para depois, — disse Garta, com firmeza. — Nesse momento, precisamos nos focar em...
Repentinamente, antes que ela terminasse seus dizeres, algo surpreendeu os três na embarcação. Hikki foi alvo de algo que acertou a sua testa e se agarrou em seus cabelos como praga.
— Eu vou acabar com você! — gritou a criatura, com uma voz aguda que ressoava irritada, grudada na cabeça do rapaz.
— Merda! — reclamou Hikki, debatendo-se enquanto tentava afastar o invasor. Suas mãos desajeitadas agarravam o pequeno corpo, mas a criatura estava firmemente presa como um parasita.
— Agora, Garta! Fuja! Fuja! Eu cuido das ameaças! — berrou a criatura, sua voz carregada de uma bravura exagerada.
Garta estreitou os olhos, reconhecendo imediatamente o ser.
— Pare com isso, Koza — ordenou, cruzando os braços enquanto observava a cena.
A criatura congelou por um instante, olhando confusa para a guardiã.
— O quê? Por que não está fugindo? Ou pelo menos me ajudando? — rebateu Koza, os olhos esbugalhados confusos.
— Porque o Hikki não é uma ameaça. Ele é só um completo idiota, — respondeu Garta, o tom seco arrancando um riso de Caio.
Koza soltou, ainda tentando entender.
— Me larga, seu sapo imundo. — Hikki finalmente conseguiu remover a criatura do rosto. Agarrou com ambas as mãos, afastando-a de sua cabeça. Ele segurou Koza com os braços estendidos, como se temesse que a criatura saltasse de volta.
A criatura tentou argumentar:
— Garta, eu ouvi esses dois. Eles vão...
— Eu já resolvi isso, Koza — encerrou a guardiã. — Não precisa se preocupar, os traidores terão o seu castigo após tudo isso acabar.
— Espera aí, senhorita guardiã — disse Caio, um tom preocupado —, não está me incluindo nisso, não é?
Garta estabeleceu os olhos frios em resposta. Não disse nada, sua expressão e sua aura poderosa deixava tudo claro. Caio deu um passo para trás, derrotado com os ombros para baixo.
— Então está resolvido? — se perguntou Koza. Em seguida, olhou para frente, vendo o rosto imaturo de Hikki que ainda o segurava com os braços esticados. — Rapaz, pode me aproximar mais de você? Preciso lhe dizer algo, mas é segredo.
— Hã? Tá bom — aceitou Hikki, curioso.
Quando Koza se viu próximo do rosto dele, sacudiu a pata dianteira com força e velocidade. A pata cruzou o ar rápido, e se chocou com toda a força na bochecha esquerda de Hikki. Um belo tapa que ecoou um satisfatório estalo. Hikki imediatamente se desequilibrou para o lado e soltou a criatura. Levou suas mãos ao rosto marcado em vermelho.
— Seu imbecil! — berrou Koza, enquanto o rapaz soltava um grito de dor e retomava o equilíbrio.
— Ai, ai, ai... — lamentou-se Hikki, massageando a bochecha em dor.
— Não reclama não, você mereceu — reprimiu Garta.
Hikki permaneceu em silêncio, mastigando a dor e a vergonha. Seu rosto ainda ardia pelo tapa, mas ele manteve os olhos baixos, tentando recuperar um mínimo de dignidade. Koza, por outro lado, se virou satisfeito, com o sentimento de tarefa cumprida.
— E então? Me diz qual é o plano? — perguntou a criatura, em direção à guardiã.
Garta hesitou, respondeu sincera, já se preparando para agir com os olhos voltados à fortaleza:
— Eu vou entrar lá e dar uma surra no Aldren até ele chorar e implorar ajoelhado — declarou ela, confiante.
Koza piscou algumas vezes, atordoado pela simplicidade brutal da resposta.
— Tá falando sério? — perguntou ele, incrédulo.
Garta nem se deu ao trabalho de responder, deixando seu olhar convicto falar por ela.
— Pelo jeito, tá. Aff, não vai funcionar, garota — resmungou Koza, balançando a cabeça. — No momento que você ameaçar o Aldren, ele vai ordenar uma matança no campo de trabalho. Faz parte do trato dele com o Hui, pelo menos até o início do ritual.
— Trato? — Garta se mostrou pouco intrigada.
— Não esqueça que Aldren e Hui são duas cobras ardilosas — respondeu Koza. Respirou fundo antes de continuar. — Para evitar uma traição mútua, eles adicionaram essa parte no acordo. Usam a magia de Anima para manter contato constante entre suas mentes até que o dadivar começasse.
— A mesma magia que fazia Hui e Bernard compartilharem seus pensamentos — acrescentou Hikki. — Claro que isso foi antes de Hui usar isso para tentar manipular Bernard e eles se separarem. Não foi à toa que Aldren demandou que a conexão cesse assim que iniciarem o dadivar. Desse modo, Hui não poderá influenciá-lo.
— Então, não é possível ameaçá-lo sem antes impedir Hui — refletiu Garta, torcendo o nariz enquanto assimilava a informação.
— Ou então... — Koza instigou os olhos, sua voz em tom resoluto. — Iniciar o ritual.
— Mas isso significaria a morte de Celina... Sem contar que despertaria Lux. Você não está pensando em... — Garta interrompeu a frase, a incredulidade evidente na voz.
— Não — garantiu Koza, balançando a cabeça. — Não é isso. Na verdade, o dadivar só funcionaria completamente com a entrega, o sacrifício de toda a magia de um guardião. Mas, e se o sacrifício não for de um guardião? E se a magia entregue no ritual for menos do que o suficiente? Se o ser sacrificado tiver apenas uma fração do poder de um guardião? O ritual iniciaria, mas não finalizaria.
— Eu não estou entendendo — disse Garta, inclinando a cabeça, confusa.
— O que o sapo boa gente aí tá dizendo, — interrompeu Caio, o tom conflitante com as palavras leves, — é que ele se sacrificaria para começar o ritual e cortar a comunicação entre Hui e Aldren.
Garta virou-se bruscamente para Koza, seus olhos arregalados em surpresa.
— Mas, Koza... isso...
— Não se preocupe — disse ele, levantando uma das patas como se pedisse calma. — Para um familiar como eu, nascido da magia, isso não seria uma morte definitiva. Quem sabe, um dia, a deusa de Tera esteja de volta para me dar uma nova vida benevolente.
— Tem certeza disso? — perguntou Garta, sua voz hesitante.
Koza ergueu o focinho minúsculo, o orgulho transbordando em seus olhos e a honra irradiando dele.
— Eu nasci para isso. Para proteger o povo de Tera. — A criatura finalizou com um leve aceno de cabeça, positivo e determinado.
Apesar da convicção dele, Garta ainda parecia abalada. Mas antes que ela protestasse, Koza mudou as preocupações.
— Mas ainda não seria o suficiente para parar o Aldren — continuou a criatura. — Teremos que assegurar que Celina não venha a ser usada como sacrifício. Além disso, qualquer outro guardião seria alvo do Aldren para completar o dadivar.
— Até mesmo a Garta? — perguntou Hikki, elevando sua preocupação.
— Não — respondeu Koza, hesitante, como se ainda deixasse as possibilidades em aberto. — Acho que não. Eu demorei para entender isso, mas Aldren escolheu a Garta para ser a tal Deusa do novo mundo dele, por um motivo. Acredito que seja pelo fato de estarmos em Finn, isso facilita o alinhamento da magia com você, garota. É quase como um curso natural que a magia de Lux e do ambiente seguiria até achar o seu corpo.
Ele deu uma pausa, observando atentamente a reação de Garta antes de prosseguir.
— Por isso, acredito que a melhor solução seja você deslocar a Celina com sua magia de Finn.
— Quer que eu a esconda? — perguntou Garta, tentando colher mais informação.
— Exatamente. — Koza assentiu com um gesto enfático. — Mas só depois do meu sacrifício. Assim, Hui e Aldren não terão comunicação e qualquer possibilidade de rastreá-la juntos.
— E para onde eu mandaria a Celina? — perguntou Garta, esperando a instrução.
— Deixe que a própria magia de Tera em Celina guie o seu deslocar. Ela retornará para o lar de sua magia — respondeu Koza, convicto. — Depois disso, o resto é com vocês. Derrotar Aldren é a prioridade, mas sob nenhuma circunstância deixem que outro guardião seja morto. Isso finalizaria o dadivar à Lux, e a traria de volta.
— Entendi — concordou Garta.
—E, outra coisa — restabeleceu Koza. — Não menosprezem o Aldren.
— Pode deixar, — respondeu Garta, sua determinação plena. Deu uma última olhada para a fortaleza, o vento balançando levemente seus cabelos enquanto ela respirava fundo. — Esse imperador fajuto vai ter o que merece.
— Ah, se não se importarem — Caio interrompeu, erguendo a mão com casualidade —, eu vou aguardar aqui. Alguém precisa ficar no barco.
Ele sorriu com uma confiança claramente fabricada, como se tentasse justificar sua escolha.
— Covarde... — murmurou Hikki, sem disfarçar o desprezo. Garta cruzou os braços, deixando claro que concordava.
— Não, ele tem razão — interveio Koza, com um tom estimado — Quanto menor a ameaça sobre Aldren, menos ele se comunicará com Hui, e melhores chances teremos. Na verdade — ele olhou diretamente para Garta, com resolução nos olhos —, eu sugeriria que você finja estar inconsciente.
— Isso é mesmo necessário? — Garta estreitou os olhos, claramente desgostando da ideia.
— É crucial — insistiu Koza, firme.
Garta soltou um suspiro pesado e revirou os olhos, como se já estivesse se arrependendo de concordar com aquele plano. Ela se virou para Hikki e o encarou com uma expressão séria.
— É bom você me carregar direito.
— Pode deixar, irmã, eu vou — respondeu Hikki, baixando a cabeça no desejo de ser útil, enquanto se posicionava para carregá-la. Ele deixou os braços à disposição, como uma reverência exagerada.
Garta se aproximou, ajustando-se nos braços do irmão, seu corpo relaxando deliberadamente, como se estivesse realmente inconsciente. Era uma posição desconfortável, mas ela se manteve com uma expressão de irritação controlada.
— Engraçado — comentou Hikki, com um sorriso nostálgico, enquanto a levantava. — A última vez que tentei te carregar, eu era uma criança e não aguentei com o seu peso.
— Não tem nada de engraçado nessa situação — respondeu Garta, irritada, mas mantendo o corpo imóvel.
— Olha — começou Caio, observando a cena com os olhos estreitos em malicia —, com certeza vai funcionar. A Garta parece uma garota completamente indefesa assim.
— Cala a boca! — rosnou Garta, abrindo os olhos para lançar um olhar mortal para ele. — Se um de vocês falar sobre isso para mais alguém, eu vou quebrar todos os seus dentes. Vamos logo, Hikki! O que está esperando? Isso é humilhante.
— Tá bom, tá bom — assentiu Hikki.
Ele ajeitou a posição dela nos braços, assumindo um rosto mais sério à medida que caminhava em direção à entrada da fortaleza. Cada passo aumentando a tensão deles.
O vento soprou uma última vez nas costas dos dois, enquanto avançavam lentamente pela passagem estreita que levava à fortaleza. Koza os seguia com seus passos pequenos, enquanto Caio observava de longe, já preparando a embarcação para qualquer eventualidade.