Volume 1

Capítulo 37: Tormenta

— Ela havia sido capturada por um grupo de bandidos, provavelmente iriam vende-la como escrava — disse Edgar frente à grande janela do quarto principal daquele forte. De lá, era possível observar os muros leste fronteiriço de Albores.

— Já fazem mais de sete anos e você continua se apegando a isso. Me diz uma coisa, foi aí que você fez um pacto com esse tal deus? — perguntou a mulher impressionada e curiosa.

— Exatamente, Runa. Só assim conseguiria derrotar aqueles bandidos e salva-la.

— Você não acha que, depois de salvar essa mulher, ajudar o império de Albores a invadir Taemar não é um pouco contraditório? — Perguntou a mais velha sentada sobre a poltrona aveludada em seu traje oficial refletindo o mesmo uniforme do homem.

— Não. Helm me prometeu que não deixará nada acontecer com ela e sua família.

— Não acha que está confiando muito nele? Quer dizer, você sabe que o Helm não é de Taemar, não é? Ele vive pulando de cidade em cidade vendendo informações e tentando subir na vida assim. Não é o tipo de pessoa mais confiável.

— Por isso me certifiquei de mandar o Oskar com ele. Esse cara não machucaria nem uma mosca sem motivo.

— O que me impressiona nessa história inteira, é você não ter aceito o emprego no bar do seu amigo.

— Aff. Não seja leviana. Aquele bar nem era dele.

— Mas podia ser... — respondeu ela descontraída.

A grande porta dupla do cômodo esbanjador foi aberta para a entrada de um oficial do exército alborenho. Interrompeu a conversa despreocupada deixando o ambiente imediatamente sério.

— Tudo pronto para partimos — disse o soldado chamando a atenção dos dois superiores.

                                               ***

Edgar e Runa se locomoveram com as carroças militares e as tropas de Albores até o ponto estratégico assegurado antes da montanha leste.

Havia um paredão natural diante deles que impressionava o homem vindo da cidade litorânea. O sol da manhã era bloqueado por aquela montanha de pedra ao passo que Edgar, montado em seu cavalo, ficava boquiaberto com a imensidão.

— É impressionante, não? — perguntou Runa. Cavalgando ao lado do homem, eles se misturavam em meio as tropas que caminhavam para serem engolidos pela montanha.

— É sim... — Edgar ficou maravilhado ao ver o túnel escavado na rocha sólida. — Isso é impressionante.

Adentraram a caverna artificial. Tochas alocadas à parede do túnel guiava o caminho para as centenas de homens que marchavam por ali. Com as cores de Albores, vermelho e amarelo, os soldados carregavam espadas, mosquetes e bandeiras.

“Essas armas não são um pouco demais para uma anexação pacifica?” Edgar ficou pensativo ao ver tantas armas e barris de pólvora serem transportados nas carroças que dividiam a estrada com eles.

— Aí, presta atenção. — Runa percebeu o seu colega distante. — Após esse túnel, estaremos em território inimigo. Olhos abertos.

— ... — Ele não respondeu apenas balançou a cabeça com intuito de tirar os seus pensamentos dela.

Um barulho do lado de fora do túnel foi tão poderoso que estremeceu o chão, nada que fosse muito notável em meio ao barulho e a vibração vinda dos diversos pares de pés marchando por ali, mas o suficiente para deixar Edgar ainda mais desconfortável.

Foram poucos minutos caminhando por dentro daquela escavação. Já era possível ver a luz do sol que indicava o fim da marcha como um portal que levava à outra cidade.

Edgar fechou os olhos sendo ofuscado pela variação de luminosidade ao deixar o túnel para trás. Quando voltou a ter para si a visão, observou um enorme campo à sua frente, a marcha continuava pela estrada recém aberta em meio as plantações de algodão para o leste, mas antes disso, um acampamento montado ali era o destino daqueles dois a cavalo.

Tendas vermelhas rodeavam uma fogueira em brasas, e vários soldados movimentavam-se de um lado para o outro levando caixas, barris e suprimentos para as centenas de soldados que passavam ao caminho à diante.

Antes de descer do seu cavalo, Edgar observou mais uma vez a paisagem e se impressionou com o tamanho dos campos floridos que só terminavam ao encontro das montanhas.

— E aqui estamos, o objetivo. — disse Runa amarrando o seu cavalo na estrebaria improvisada a céu aberto esperando o mesmo do seu colega. — Não é à toa que Albores está interessado nessa cidade, olha quanta terra para plantio tem aqui.

 Antes que Edgar viesse a responder, um barulho estremeceu o chão novamente, o mesmo sentido anteriormente, mas dessa vez muito mais próximo e perceptível. Era sem dúvidas uma explosão.

— O que foi isso!? — Edgar se assustou mais que os cavalos após colocar os pés no chão.

— Haha! — Gargalhou um homem se aproximando à distância. — Vocês da cidade pequena sofrem com qualquer barulhinho.

— General. — Runa cumprimentou o superior responsável por aquela operação com todo o protocolo respeitável.

— Bem vindos a Toesane. — O velho homem, sorridente em sua farda, desdenhava de tudo ao redor. — A futura cidade que vai nos trazer a prosperidade.

— Se me permite, senhor. Por que todos esses soldados e armas? — Edgar foi direto ao ponto.

— O quê? — estranhou o general. — Isso é uma guerra, filho. O que você esperava, confete, música e dança? Hahaha.

— Não senhor, não foi isso o que eu...

— Você deve ser o Edgar. — interrompeu o superior. — Fui alertado quanto a você. É o seguinte, não sei o que se passa nessa sua cabeça, mas Albores está prestes a se tornar um verdadeiro império, faltam apenas a anexação de duas cidades. Duas cidades que estavam prestes a se unirem, por isso estamos realizando duas operações de uma só vez. Não podemos baixar a guarda agora, você me entendeu?

— Eu entendo que Taemar e Toesane, juntas, poderiam causar algum problema, mas nós somos muito mais fortes do que elas, poderíamos fazer isso mais pacificamente e...

— Pacificamente? Você vive no mundo dos sonhos? Ambas estão resistindo como nenhuma outra cidade anexada até agora. Vou repetir para ver se você entende: Não podemos baixar a guarda.

— Mas...

Edgar foi interrompido mais uma vez, novamente o barulho da explosão estremecia o chão. Quando se deu conta, o general já havia dado às costas para eles.

— Me tragam o relatório quando tiverem terminado com as bobagens — disse ele adentrando a maior tenda do acampamento.

— Droga... — Edgar baixou a cabeça tendo os olhares misericordiosos de Runa para si. O rapaz voltou-se curioso: — O que será que são esses barulhos?

— Acho que vem dos fundos das tendas — complementou Runa.

Edgar seguiu a intuição da mulher. Ambos deram a volta nas construções improvisadas do acampamento e logo foram surpreendidos.

— O que... é isso? — perguntaram-se ao ver um grande cilindro de metal escuro maciço sobre rodas sendo rodeado por dois soldados.

 — Um canhão... — sussurrou Runa.

— O quê?

— Eu não achei que eles realmente tivessem conseguido fazer uma coisa dessas.

— O quê? O que é isso?

— Isso é... — Runa engoliu seco ao observar os dois homens prestes a disparar mais um imenso projétil de destruição em massa. A explosão veio, em seguida, a explicação: — Uma arma.

Após a explosão que incomodou os ouvidos dos dois, o projétil cristalino foi arremessado ao ar e sobrevoou os campos floridos até se perder de vista no céu azul em direção a cidade distante dali. O barulho de mais uma explosão foi trazido como um sussurro pelo vento, o projétil havia acertado o seu alvo.

— Aquele é...

— O centro de Toesane — completou Runa tão boquiaberta quanto o rapaz. — Estão atacando a cidade sem qualquer distinção entre civis e militares.

Quando ela se deu conta, Edgar já estava se aproximando da tal arma de destruição em massa.

— Vocês dois, parem com isso! — ordenou ele furioso.

Os soldados não lhe deram ouvidos, afinal, continuariam a seguir as ordens de um superior, e não o de um simples informante.

— Se ponha no seu lugar, turvo de merda! — respondeu o soldado à altura da irritação.

— Eu mandei parar... — Edgar se preparou para dar um belo soco de direita no militar raso.

Foi impedido prontamente.

— Para, Edgar. — Runa agarrou com força o braço trêmulo do homem.

— Me solta! Me solta! Eu vou...

— O que está acontecendo aqui? — O general surgiu vindo da tenda após ouvir a confusão.

— Esse turvo enlouqueceu — respondeu o soldado alvo do soco não dado.

A mulher continuou a segurar Edgar com toda a sua força, usou a inteligência para despistar as suspeitas do superior:

— Me desculpe senhor, só ficamos um pouco impressionado com o poder dessa arma. — Runa caminhou em direção ao estábulo com Edgar sobre o seu domínio, tirando-o de vista.

— Eu estou trabalhando com crianças, por um acaso? Voltem ao trabalho! — ordenou o general.

— Sim, senhor — assentiu Runa.

Ela finalmente conseguiu arrastar Edgar contra a sua vontade até os cavalos, distantes de qualquer outra pessoa.

— Você ficou maluco, Edgar? — pressionou ela levando o rapaz baixar a cabeça — Poderíamos ter sido...

— Eles estão matando gente inocente... Eu fui tão idiota.

— Do que você...

— E se estiver acontecendo a mesma coisa em Taemar? E se estiverem matando pessoas, a torto e a direito, por lá também, Runa?

— Eu não sei. Não acho que...

— Eu fui tão idiota, droga! — Edgar se puniu socando a própria perna. — Foi por isso que me mandaram ser o informante da invasão de Toesane e o Helm da invasão de Taemar. Não queriam que eu intervisse ou prejudicasse a operação após ver minha própria cidade sendo destruída.

— Te mandaram para longe, para não atrapalhar na invasão de Taemar?

— É claro. Isso é tão óbvio agora. Nesse exato momento devem estar invadindo Taemar, tão brutalmente quanto aqui, e eu não posso fazer nada... — O rapaz arregalou os olhos preocupado ao se lembrar de algo. — A não...

— O que foi?

— Foi o Helm que deu a sugestão de me mandar para Toesane, ele comprou o general superior com uma conversa de que seria melhor para os planos.

— Você acha que o Helm...

— Eu... — Edgar se apressou para montar em seu cavalo. — Eu preciso ir.

— Espera. O que você vai fazer?

— Vou voltar. Se tiver uma pequena chance de salvar ela, mesmo que mínima, eu vou tentar.

— Vai para Taemar? — Runa se surpreendeu e pensou rápido. — Eu vou junto com...

— Não. — Negou veemente sobre o cavalo. — Por favor, não. Você não tem nada a ver com isso.

— Mas...

— Diga para o general que eu desertei — interrompeu em despedida. — E, Runa, se cuida.

Partiu a galope arrependido, em direção a montanha. Rapidamente alcançou o túnel se movendo como o vento ao desviar dos soldados marchantes em direção oposta.

Atravessou a Capital e os seus muros em questão de horas. Quando chegou ao território de Taemar, já era noite. Ainda na estrada sobre as montanhas que levavam até o litoral, seu cavalo pediu arrego exausto.

Dali, de cima das enormes pedras que cercavam a cidade litorânea, já era possível ver as luzes distantes de uma guerra em curso, o fogo consumia parte dos distritos centrais e só cessavam com as margens das águas marítimas.

Edgar desmontou do cavalo e suspirou consternado com o rosto iluminado pelas chamas. Seu coração entristecido o açoitava com a vontade de chorar.

— Não... Não... — se puniu sabendo que aquilo era, quase que exclusivamente, sua culpa. — O que foi que eu fiz?

Foi traído não só por aqueles que confiou, mas por si mesmo ao se ver tão incapaz de fazer algo. Distante de poder algo, sentiu o frio da solidão noturna.

Em segundos, seu ombro ficou pesado. Imaginou que o cansaço estava cobrando o seu preço, mas nunca antes havia sentido algo assim. Suas pernas dobraram e ele só pode acertar o chão com o próprio rosto.

Adormeceu.

— Vou cobrar o meu primeiro favor. — disse a voz, já conhecida por ele em meio ao breu.

Edgar não via ou sentia nada, mas não estranhou mais do que alguns segundos, já tinha estado naquele lugar, se é que dava para chamar de lugar.

— Você está brincando? Justo agora? — retrucou o homem sem direção.

— Eu disse que não tinha hora ou local para minhas cobranças, meu emissário.

— Certo. Fala logo, tenho coisas a fazer.

— Não lembrava de você ser tão assertivo — provocou a voz atiçada.

— O que você quer? Dinheiro?

— Dinheiro? Hahaha... Não me faça rir assim. — No breu continuava. Tudo parecia um sonho, talvez fosse um sonho. — Eu quero que mate uma pessoa.

— Só pode estar brincando...

— Ah... Qual é, Edgar. Não é como se você não tivesse matado antes. Aliás, você é praticamente um profissional nisso.

— Fu... — Suspirou fundo mostrando o seu descontentamento. — Quem é essa pessoa?

— Você já a conhece, seu nome é — a luz surgiu junto com a resposta — Petrica Vellsan.



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