Volume 1
Capítulo 1
— O que diabos você está fazendo? Tentando me espiar?¹
— Você poderia me dar um copo de água?
Esta conversa que parecia obviamente incompatível, foi o primeiro encontro entre a funcionária japonesa, Izumi Tamano, e aquele que mais tarde seria conhecido como o maior e mais forte Rei do Reino Sagrado de Yohk’Zai, Huuron.
~*~
Banhos são bons.
Banhos são relaxantes.
Não importava o quão cansada ela estivesse quando chegasse do trabalho, assim que entrava no banho, metade disso era esquecido.
Nem as reclamações do seu chefe, nem a pressão do trem lotado podiam se equiparar aos poderes dos banhos.
Aahh, banhos eram realmente sublimes.
Embora seu quarto estivesse tão bagunçado que ela não conseguia nem mesmo encontrar espaço para passar por ele, Izumi nunca falhou em limpar o banheiro.
Da mesma forma hoje, a banheira estava polida a ponto de brilhar, cheia de água quente e refrescantes sais de banho aromáticos. Izumi estava se deleitando na banheira.
A sensação do calor escaldante ao qual sua pele estava gradualmente se acostumando era tão boa que ela não conseguia aguentar.
Em outras palavras, havia valido a pena, para a mulher, ter vindo para casa com sua face enterrada no cachecol naquele terrível clima frio.
Com seu livro² favorito em uma mão, levou um gomo de mikan³ a sua boca.
O suco em sua boca era um delicioso equilíbrio entre doce e azedo, e foi no momento em que engoliu a fruta com semente que tudo que isso aconteceu.
Rangido
Enquanto se perguntava sobre o que seria esse som, um vento quente soprou com um rugido.
Pegas pelo vento, as páginas do livro que estava segurando foram viradas.
“Ahh-, apesar de eu não ter nem ideia de em qual página estava!”
O fato de que ela ainda estava pensando em coisas tão sem importância poderia ser uma forma de escapismo.
Porém, quando Izumi, a “corajosa” e de “nenhuma” forma sensível, mulher que sempre teve sua mente somente em livros, olhou na direção da causa, a janela do banheiro no lado norte do aposento, havia uma pessoa envolta dos pés à cabeça em panos azuis claros, com exceção apenas de seus olhos.
“UMA MÚMIA?” Izumi pensou inicialmente, mas ao redor daqueles olhos levemente inclinados havia uma pele jovem e o mais importante de tudo, a cor do tecido era azul.
Enquanto olhava atônita para esse intruso, os olhos dele a olharam de volta com um brilho afiado.
Primeiro aqueles olhos encararam diretamente a face de Izumi, então de forma lenta se moveram para baixo, parando novamente em seu peito, mais uma vez seguiram para ainda mais abaixo… quando chegaram aos seus pés, o intruso inclinou a cabeça, antes de retornar seu olhar para a face dela, encontrando com seus olhos.
Nesse ponto, Izumi finalmente se lembrou de que estava no banho, completamente nua.
— O que diabos você está fazendo? Tentando me espiar?
— Você poderia me dar um copo de água?
— Água?
— Sim. Eu não tive um gole durante o dia todo. Seria de grande ajuda se você pudesse me dar um copo.
O homem olhou para a água quente que enchia a banheira e engoliu em seco.
É claro, Izumi estava sentada na banheira e assim, se aquilo foi por vê-la nua ou se foi realmente por causa da água, era algo que ela não podia dizer.
Mas bem, mesmo que o homem realmente só quisesse água, pedir por um copo da água para alguém que havia acabado de se banhar poderia torná-lo um pervertido, no fim das contas.
Era suposto a mulher gritar “KYAAA” ou “MOLESTADOR!” nessa situação?
A face do homem estava coberta, mas se não fosse por um pano azul muito usado e sim uma meia-calça ou uma balaclava⁴ ou talvez um capacete, então Izumi teria provavelmente gritado sem dúvida.
Porém, a atmosfera única do homem a conteve.
— Hum, água, certo?
Tendo dito isso, entretanto, ela não podia dar a ele da água na qual havia se banhado.
Izumi pegou o copo que usava para escovar os dentes e o encheu com água após abrir a torneira.
A água fria fluiu para dentro do copo e o encheu.
Por volta do momento em que o copo ficou cheio até a borda, a mulher se virou.
O olhar do homem estava direcionado para a bunda de Izumi.
“Talvez eu realmente devesse gritar.”
Após limpar sua garganta com um ‘ahem‘, o homem ergueu a face quando de repente percebeu o que estava fazendo. Quando os olhos meio abertos de Izumi encontraram seu olhar com desdém, o homem rapidamente abaixou os olhos. Enquanto usava seu livro para discretamente proteger seu peito, Izumi se levantou.
— Aqui está.
— Desculpe-me por isso.
Conforme esperado, com exceção das pontas de seus dedos, a mão do homem também estava coberta por aquele pano azul.
Não, não eram apenas suas mãos. Seus ombros e quadril também estavam envoltos em um grande pano azul claro. Sim, era como se ele fosse alguém viajando por um deserto com um camelo.
Izumi, que estava olhando para a vestimenta do homem, percebeu que sua bochecha estava sendo acariciada por um vento quente e seco e direcionou seus olhos para o que estava atrás dele.
“O que diabos?”
Izumi arregalou os olhos e assimilou o cenário que se espalhava atrás dele.
Não era um deserto. Mas apesar de não ser um deserto, era possível dizer com um olhar que a terra estava seca e que esse terreno desolado continuava ao longe.
Grama escassa e um sol abrasador. Não havia uma única árvore, nem mesmo qualquer edifício. Nessa grande expansão com nada para bloquear sua visão, o horizonte distante era visível.
— Humm
O homem havia bebido a água num gole só, com apenas o pano ao redor de sua boca abaixado e um fio de água escorrendo pelos seus lábios. Izumi timidamente o chamou.
— … O que foi?
O homem secou a boca.
— Onde você está?
— Zaharya. Há algum problema?
O homem inclinou a cabeça confuso e diretamente devolveu o copo.
— Você me salvou. Desculpe-me por pedir isso, mas você pode me dar outro copo?
— Hahh. Claro.
Quando ela fez o que lhe foi pedido e encheu o copo com água, o homem mais uma vez o secou com um gole. Ele pareceu bebê-la como se fosse um delicioso vinho dos céus e Izumi sentiu que ele realmente não havia bebido água durante o dia todo.
— Hum, e então, o que você está fazendo nessa tal de ‘Zaharya?’
— Eu fui abandonado aqui.
— Entendo…
— Isso não é engraçado.
— Hum, desculpe. Eu só queria tentar dizer isso.
O homem olhou para Izumi friamente e de forma obediente, a mulher se desculpou.
— Você tem algum recipiente para água? Eu irei enchê-lo.
— Ah, isso seria de grande ajuda. Você pode encher isso?
O que o homem entregou para ela foi um saco esfarrapado que parecia ser feito de couro curtido.
Quando Izumi o pegou, a areia que o cobria caiu dentro da banheira.
Ela lentamente o moveu para que não caísse mais areia, então enxaguou seu interior antes de enchê-lo com água.
Após encher o saco que comportava mais água do que o esperado, Izumi se virou de volta para o homem.
Nesse momento, foi a vez dela lançar ao intruso um olhar frio.
O olhar dele estava mais uma vez direcionado para sua bunda.
— Ah, umm… Desculpe.
Rapidamente se virando para não olhar mais para o corpo nu de Izumi, o homem recebeu o saco.
Sua pele um tanto bronzeada de sol havia ficado apenas um pouco vermelha.
— Não se preocupe. Já é tarde demais para isso. De qualquer forma, você foi abandonado, certo? Você tem comida?
— Sim, eu tenho alguns biscoitos duros, carne e frutas secas também. Eu estou bem quanto à comida.
Isso parecia ser um cardápio que te deixaria incrivelmente sedento.
— Ahh, então… Eu já posso fechar a janela? Já faz algum tempo que a areia tem sido soprada para dentro, sabe?
— Si-, sim… Ah-, por favor, espere!
A grande mão do homem agarrou sua mão quando ela tocou na moldura da janela.
— Eu gostaria de te agradecer.
— Não, tudo bem. Foi apenas água afinal.
— De onde eu venho há um ditado que diz que as coisas que você recebe sem retribuir acabarão te atrapalhando, entende?
— Ahh. Como essa coisa de não existe almoço de graça? Mas mesmo que você queira me agradecer… Você pode?”
Izumi olhou para o homem com atenção.
Que tipo de retribuição você poderia receber de uma pessoa abandonada numa terra deserta?
— O que você acha disso?
O homem tirou o pano que cobria sua face.
— Oh? É bonito.
Olhando para a face do homem novamente, suas feições finas e bem definidas transbordavam uma masculinidade selvagem.
— É uma honra receber seus elogios.
O homem de ouvidos aguçados que captou seu elogio acidental, lhe lançou um sorriso.
Sua boca estava inclinada em um sorriso que parecia cínico. Ele podia ser mais velho do que a impressão que ela teve de seus olhos vívidos.
— Por favor, aceite isso.
Após tirar as pedras azuis que decoravam suas orelhas, o homem as colocou sobre a palma de Izumi.
Elas emitiram um ruído refrescante quando o homem colocou sua mão sobre a dela.
— Esse é um brinco feito de lip’se.
— Oh-, nã-, não, tudo bem. Eles parecem ser muito caros. Eu não vou aceitar um presente tão extravagante! Tudo o que eu te dei foi água, sabia?”
— O que você está dizendo? Aquela água salvou minha vida. Se você considerar o valor deles, esses brincos ainda podem estar longe de serem o suficiente.
— Bem, eu acho que se você pensar sobre isso dessa forma, você está certo, mas…
— Nossa troca está completa. Me desculpe por perturbar seu banho.
O homem unilateralmente terminou a conversa de uma forma que manteve Izumi em silêncio.
— Então… Eu irei aceitá-los. Ah-, espere um minuto!
Izumi o chamou para pará-lo quando ele estava prestes a fechar a janela.
O homem ergueu uma sobrancelha, como se perguntasse ‘O que?’.
— Água, só isso é o suficiente?
Uma pessoa abandonada não estaria sempre precisando de mais?
— Sim, parece que já saí do deserto. Há uma cidade oásis ao leste. Se eu continuar andando, provavelmente chegarei lá em algum momento. Eu estive sob os seus cuidados.”
~*~
Após a janela se fechar, o cenário no banheiro voltou ao normal.
Uma parede laranja, um piso branco, uma banheira amarela, um chuveiro, um espelho e uma estante com itens de banho, além de uma esponja pendurada nela.
Era o cenário do banheiro ao qual ela estava acostumada.
No meio de tudo isso estavam apenas aqueles brincos que tinham um brilho incomum, vendo isso, Izumi caiu em si.
O que diabos foi isso? O que acabou de acontecer?
Ouvir o som feito pelos brincos em sua mão a deixou com uma sensação desconfortável, como se tivesse despertado de um sonho, porém ela não estava dormindo.
Izumi encarou fixamente os brincos. Eram pedras escuras engastadas em uma base de ouro bem feita. A área que parecia uma agulha curvada mostrava que esse era um brinco de gancho e as manchas escuras na seção do gancho lhe deram uma forte sensação de realidade.
Lentamente, uma estranha ansiedade penetrou dentro dela a partir das pontas de seus dedos.
Quando Izumi jogou os brincos para longe na borda da banheira, eles flutuaram.
Ela rapidamente se secou, colocou suas roupas, enrolou seu cabelo molhado numa toalha e se apressou para dentro do genkan.⁵
Colocando um par de sandálias, ela foi até a parte de trás da casa.
Ali estava a janela do banheiro.
O cenário ao seu redor não era, obviamente, uma terra desolada. Só havia uma simples parede de blocos de concreto e a cerca da casa vizinha aparecendo sobre o muro.
Entre a parede de concreto e a parede da sua casa havia um pequeno caminho coberto por cascalhos.
Enquanto observava seus arredores com cuidado o suficiente para não perder nem mesmo uma formiga, ela andou de forma lenta para frente até ficar diante do banheiro e então escancarou com força sua janela.
Da banheira cheia de água quente, subia o vapor que enchia o aposento.
Em seu campo de visão enevoado, Izumi encontrou uma pedra azul brilhante, em seguida, ela se inclinou sobre a janela. Suas pernas haviam perdido a força.
O que estava acontecendo afinal?
Nota(s):
1 – Aqui a frase original era: “The heck are you? A peeper?” Ela quer dizer: ‘O que diabos é você? Alguém que espia?’ Mas para traduzir o sentido do que está sendo expressado, eu achei melhor mudar a construção da frase, pois em português não há um bom termo que exprima o sentido de “peeper”.
2 – Na tradução o termo usado é ‘tankubon’, que segundo da definição da Wikipédia é: “Tankōbon (単行本, lit. livro/volume independente) é um termo da língua japonesa para um livro que é completo em si próprio e não é parte de uma série, embora a indústria de mangá use o termo para identificar compilações (brochuras) de capítulos que possam fazer parte de uma série. O termo pode ser usado para um romance, um trabalho não ficcional, um livro de economia, um livro de dicas de beleza, um livro com fotografias, um catálogo com amostras de livros anteriores para exibição, etc, em formato capa dura. É mais específico do que o hon simples”. Eu simplesmente traduzi para livro para melhor compreensão.
3 – Mikan é uma fruta cítrica de origem japonesa muito semelhante à nossa tangerina ou mexerica. Na versão traduzida está ‘fatia’, mas como é dito a seguir que ela engoliu com semente e tudo, eu suponho que gomo seja uma tradução melhor.
4 – Touca de Esqui, aquela máscara preta de tecido que cobre a face inteira, menos os olhos e a boca, também usada por criminosos.
5 – O Genkan (玄関 Genkan. ) é a área de entrada tradicional para casas e prédios japoneses constituída de uma varanda, ou uma sala, com um tapete onde deve-se retirar os sapatos. A função principal do genkan é evitar que as sujeiras da rua que ficaram no sapato entrem dentro da casa, ou qualquer edifício.