Volume 1 – Arco 8

Capítulo 59: O Cartão

Faltavam poucos dias para a grande final. Ela seria realizada um dia antes da grande reunião que aconteceria no Craveiro com a presença de todos os Executivos e também do Representante Fiscal da Organização em pessoa. Isso era um grande evento, e deveria ser nele que Rúnica iria revelar toda sua podridão.

Entretanto o plano não ocorria tão bem assim. Desde que Margô ficara com raiva dos garotos, Diego e Tiago não fizeram mais nenhum esforço em tentar fazer planejamentos. Afinal de contas nem sabiam onde ficava armazenada o tal do Elixir do Ingênuo. 

O rapaz da cicatriz passara boa parte do tempo ocupando sua cabeça com outras questões que lhe assombravam. Uma dela era as provas. Tinha de tirar boas notas para ao menos ter uma espécie de exceção e não ser expulso do Craveiro. E quando se dizia expulsão isso era referente ao mal desempenho do rapaz, outra preocupação.

Faltava muito pouco para o fim do ano letivo e o rapaz ainda não tinha corado. Sua Hagar Selar permanecia escura e fosca como do primeiro dia que esteve ali. Já tinha desistido de ficar pingando gotinhas de sangue nela todos os dias; isso apenas feria o seu dedão.

O Prof. Nemo tentou lhe confortar, dizendo que possivelmente na final do torneio ele iria despertar o seu poder, pois estaria sobre pressão, e conseguiria a tão desejada cor, assim passando de ano; lembrando que para passar de ano era apenas necessario corar, as notas eram irrelevantes, embora causassem boa impressão.

Já Diego tinha sérias dúvidas de que isso fosse acontecer. Um mar de azar insistia em cair sobre ele, sempre se metendo em confusões e problemas. Tudo isso era demais para uma criança de onze anos. 

Logicamente, se fosse apenas isso talvez ele pudesse superar. Acontece que não era. Além dessas preocupações, uma nova havia lhe surgido recentemente.

Ao conversar com Leo, um garoto meio-lobo, descobriu que tinha o cheiro de um nocivo. Existiam algumas possibilidades para aquilo. Uma delas era que o rapaz tinha se encontrado com um nocivo duas vezes no Craveiro e isso ele podia ter certeza que não era coisa da sua imaginação.

Mas para seu desagrado, a última vez que viu o nocivo frente a frente, perto o suficiente para talvez lhe colocar algum cheiro detectável pelo nariz afiado de Leo, foi no dia do baile, depois do incidente no beco. Ou seja, uma coisa pelo visto não tinha ligação com a outra.

Tentou conversar com Tiago sobre isso, mas o rapaz não pareceu ficar nem um pouco preocupado.

— Talvez ele esteja enganado — respondeu com simplicidade.

— Ah, não! — Diego começou a ficar irritado. — Lá vem você de novo me falar que eu não vi nocivo nenhum. Acha que eu iria mentir sobre um negócio desses?

— Calma, não estou dizendo que você não viu um nocivo, mesmo eu achando que tenha sido coisa da sua cabeça. O que quero dizer é que eu também estava lá e vi como você ficou. Sua pele ficou meio avermelhada e seu corpo ficou quente. Parecia que saia vapor de você. E os seus olhos… — Ele deu uma leve pausa, encarando seu amigo nos olhos, depois desviando o olhar.

— O que tinha meus olhos, Tiago?

— Eles ficaram escuros — completou depois de um tempo. — E não é querendo te adular, mas você tava bem assustador naquele dia.

— Minha aparência ficou estranha?

— Sua… Aura, eu acho. Era como se você não fosse mais você. Tivesse perdido o controle. Se tornou agressivo, irritado. Mal te reconheci, pensei que fosse algum outro valentão, ou sei lá. 

Após uns minutos de reflexão, Diego ficou impaciente novamente.

— Tá, e o que isso tem a ver com o Leo ter se enganado?

— Nocivos tem um cheiro muito característico. São podres. Todo mundo consegue sentir. E bem, eu não senti isso em você. Acredito que o que ele sentiu não foi exatamente o cheiro de um nocivo, mas o cheiro de alguém perigoso. — Ele deu enfase no “alguém”, porque não queria dizer “uma coisa”. — Nocivos são predadores, querendo ou não. 

— Quer dizer que eu era uma ameaça tão grande quanto um nocivo?

— Talvez. Ele é um Lupin, consegue pressentir o perigo apenas com os instintos afiados dele. Então deve ter sentido você.

Resumidamente, Tiago não acreditava em hipótese alguma que Diego tivesse qualquer relação com algum nocivo. Na verdade, nunca acreditou nisso. Apenas tinha a vaga ideia de que aquilo que Leo havia sentido não passava de um instinto animal, onde a presa reconhece o predador.

“Que bobagem”, pensou Diego, no refeitório, sozinho, matando um dia de treinamento que considerava desnecessário. “Não sou uma ameaça nem se quisesse. Se fosse assim o Golias também teria medo de mim. A menos que eu não seja ameaça suficiente para ele. Não, não. Isso tem alguma coisa a ver com meu tio. Ele que me dava aqueles venenos estranhos e controla um nocivo. O que isso tem a ver comigo, exatamente? Será se…”

— Posso me sentar com você, Jovem Diego?

Quando ele levantou a cabeça quase ficou cego. Era Faramir, com toda a sua brancura, parado em pé, na sua frente, com um leve sorriso no rosto. Seus cabelos brancos e ondulados como nuvens, junto de sua pele albina, ressaltavam e muito seus olhos azuis e penetrantes da cor do céu.

— Pode. Eu acho.

O Balthazar se sentou graciosamente e ali ficou. Não trouxe bandeja com ele, o que significava que não veio até ali para fazer companhia e sim para tratar de algum assunto.

— E aí, o que foi? — Quis saber, o olhar desconfiado.

— Fiquei sabendo sobre o problema que está tendo com a sua amiga, a senhorita Rosa.

— Ah, ficou foi? E então?

— Você quis tirar o Jovem Tiago da competição para protege-lo. Isso é muito nobre da sua parte, querer ajudar um amigo. 

— Pois é, mas parece que o diretor não enxerga isso como proteção. Ele acha que eu estou subestimando a capacidade dele. Bom, se é o que ele acha, então eu devo estar mesmo errado. Passei o ano inteiro ao lado dele e nunca vi ele bater em uma planta que fosse.

Faramir riu. Seu sorriso era muito simpático, tinha covinhas nas bochechas, e os leves pés de galinha que apareciam abaixo dos olhos mostrava que seu sorriso era autentico.

— Sabe, ainda acredito que foi na melhor das intenções. Mesmo assim, concordo com o diretor. Você está mesmo subestimando seu amigo. Não precisa me olhar dessa maneira, deixa eu tentar me explicar. — Ele apoiou os cotovelos em cima da mesa, aproximando seu rosto triangular. — Subestimar as pessoas nunca é uma coisa boa. Seja amigo ou inimigo. Quando se protege muito um aliado, um amigo, acabamos criando um sentimento ruim neles. Talvez eles até fiquem com raiva da gente por nunca deixarmos eles tentarem.

— Mas e se ele falhar? 

— Nunca se deve pensar assim. Mas, se ele falhar, será uma falha dele. Ele vai aprender com isso e evoluir. — Faramir encarou Diego nos olhos e deu um leve sorriso. — Sabe, você me lembrou algo, algo que conversei com meu irmão. Se lembra daquela vez em que você brigou com ele na minha frente, aqui no refeitório? Algumas horas antes de vocês brigarem eu tive uma conversa com ele.

Diego tentou disfarçar seu embaraço comendo. Sabia do que se tratava a conversa, pois Rafaela havia lhe contando.

— Naquele dia ele estava zangado comigo por eu não ter finalizado o Laerte nos primeiros minutos. Eu respondi-lhe que aquele não era meu oponente. Não era o meu adversario.

— Como assim? Se estava em cima do ringue era obvio que era o seu adversário.

— Não — riu Faramir. — Não é, não. Não temos adversários no ringue, não existem inimigos no Craveiro. Nossos reais adversários são os nocivos, os monstros. E é por isso que temos os torneios, não para criar inimizade com os outros, mas sim para treinarmos, ficarmos mais fortes, juntos, e assim lutarmos com os nossos verdadeiros adversários. Agora, pense comigo, acha que alguém ficaria feliz em perder uma luta em menos de um minuto?

— Eu sei que eu não — respondeu o rapaz, com um tom de raiva na voz. — Se eu perdesse nos primeiros minutos, todo mundo ia falar mal de mim. Ia ser horrível. Já até consigo imaginar os apelidos que iriam me dar.

— Então — continuou. — Não se deve humilhar os nossos colegas. Isso só vai trazer prejuízo para eles. Por isso prefiro ajuda-los. Quando mostramos cordialidade e gentileza, as pessoas ficam felizes. Não se deve mostrar as pessoas o quanto elas são ruins, mas sim o quanto são capazes de crescer.

Diego fez uma breve pausa para pensar.

— Nesse caso, é para apoiar o Tiago?

— Exatamente.

— E quanto a Margô? Ela está realmente irritada com a gente e isso é culpa minha. Acabei colocando meu nariz onde não fui chamado e deu nisso.

— Sabe, Jovem Diego, quando queremos ajudar muito uma pessoa acabamos por vezes a nos intrometer onde não devíamos. — Ele se aproximou um pouco mais do rapaz. — Quando você estiver no ringue e por acaso for enfrentar a Margô, use o seu músculo mais forte.

— Meus braços?

— O coração. — Ele colocou o dedo indicador no peito do rapaz. — Nunca se esqueça disso. — E deu um sorriso. Por fim se levantou e começou a andar em direção aos elevadores. — Agora, já vou indo, Jovem Diego. Tenho de ir falar com o diretor mais uma vez.

— Tá bom — disse meio encabulado. — Ah! Espera!

— Pois não?

— Naquele dia, da luta com o Laerte. Você fez um simbolo estranho na sua mão, com o seu sangue. Daí uma chama azul saiu e atravessou o Laerte. O que foi aquilo? Como fez?

— É um Ritual. Estudamos isso no terceiro ano. Aquele era o mais fácil, porém mais perigoso. É só desenhar um círculo na palma da sua mão com sangue e invocar um segredo. Ele vai sair com mais potência que o normal. Simples, não é?.

Diego apenas balançou a cabeça afirmativamente, embora tivesse parado na parte do “invocar um segredo”. O rapaz não conseguia fazer isso, já que não tinha nenhum poder. Achava que aquilo poderia lhe ajudar a corar, porém, estava errado.

Se despediu do bem-visto rapaz e voltou a seu assento. Entretanto, assim que ia devolver sua bandeja, viu que na cadeira onde Faramir estava sentado tinha um cartão. Diego o pegou e verificou que se tratava daqueles cartões de entrada para alunos independentes, igual o da Rafaela.

Olhou a volta para procurar Faramir, mas o rapaz não estava mais lá. Deu de ombros, guardou o cartão no bolso de trás e foi direto para a cantina, afim de deixar lá sua bandeja. Entregaria aquele objeto depois, quando o visse novamente.

Isso, claro, caso o rapaz não descobrisse alguma utilidade para aquilo.



Comentários