Volume 1 – Arco 3

Capítulo 11: A Lealdade Do Cachorro

Diego estava em uma intensa luta contra o sono pela manhã, após mais uma chata e entediante aula de História da Estratégia. Comparado ao dia anterior, cheios de aventuras e reviravoltas, hoje estava sendo um dia particularmente chato para o rapaz. 

A maior diversão que teve até ali foi esbarrar sem querer em um garoto da sua turma, que usava um cabelo tigela que cobriam os seus olhos. Agora tudo que tinha de aturar seria a próxima aula: Primeiros Socorros com a Prof. Borstmann.

Após passar pela porta em formato de coração, Diego se sentou ao lado de Tiago, como agora estava fazendo sem se incomodar, esperando pela aula começar. 

— Não vai querer dormir nessa aula, Murdock.

— Já disse para me chamar pelo nome! — sibilou de sua mesa, os dentes serrados. — E por quê? Ela não pode ser tão ruim quanto a Rúnica.

Quando a professora entrou na sala, o rapaz achou ter entendido o que o amigo estava tentando dizer. Ele teve de apertar os olhos para entender o que estava vendo.

A Prof. Borstmann tinha chifres ondulados na cabeça — muito ondulados, parecidos com tranças. No lugar de orelhas humanas, haviam orelhas grandes e pontudas, como as de um cavalo. Ela usava um vestido muito colorido, deixando visível que uma de suas pernas eram peludas e esguias, e que no lugar dos pés haviam cascos.

De toda a estranheza que isso causava, Diego ainda se incomodava com a cor exageradamente forte e variada de suas vestes. Seu cabelo, longo e liso, era repleto de manchas coloridas semelhante as de um arco-iris. Seus olhos eram muito verdes e seus dentes muito brancos.

— Bom dia, meus amores! — sorriu a professora, radiante. — Ah! Então você é o Diego. Tô tão feliz de te conhecer, os professores me falaram muito de você. Mas acho que todos aqui te conhecem, né. Então não vou te incomodar com mais perguntas e apresentações, tá? Eu prometo!

Diego se sentiu aliviado por perder mais tempo com toda aquela atenção para cima dele. Na verdade, estava conçando a acreditar que algumas pessoas ali até se irritavam quando ele ganhava qualquer atenção que fosse; positiva ou negativa.

— Muito bem, meus amores, essa aula é para que vocês conheçam o eu interior de cada um, sentir empatia e se conectar com o seu parceiro. — Então ela começou a bater palminhas. — Vamos, meus amores, façam duplas.

Enquanto a maioria dos alunos bufava e reclamava, Diego tirou a sorte grande. Era um dos poucos alunos que com toda certeza já estava com um parceiro confirmado: Ele e Tiago.

Assim que ia se virar para falar com o amigo, sentiu alguém tocar seu ombro. Era o garoto com os cabelos sobre os olhos que mais cedo havia esbarrado sem querer. Ele mal abria a boca, tudo que fazia era olhar para baixo e brincar com os dedos. 

Diego tomou a iniciativa.

— Ahm… Quer fazer dupla? — O garoto pareceu ter tomado um susto. Então balançou a cabeça, timidamente. — Desculpa, mas é que eu já vou fazer dupla com o…

— O que foi, Fabio? — perguntou Tiago, com um tom ligeiramente agressivo. — Quer falar alguma coisa? O que está fazendo aqui? O que você quer?

Parecia um interrogatório. Diego não entendeu o motivo do loiro estar sendo tão ríspido com alguém tão tímido. Seja lá qual fosse a razão, jamais permitiria que tratassem mal uma pessoa que não merecia.

— Ei, qual o problema? Não precisa bater nele.

— Não estou batendo nele, só quero saber o que ele quer dizer.

— Ele só veio pedir para fazer dupla comigo… Que bicho te mordeu?

— Eu conheço ele, Murdock, e sei que está aprontando alguma coisa. Se não, nem teria te chamado. Fala logo, Fabio!

O rapaz recuou alguns passos com o tom de voz mais agressivo do loiro.

— Calma aí, Tiago. Eu vou fazer dupla com ele.

— E me deixar sozinho?

— Se você vai continua desse jeito, eu prefiro.

Tiago abriu a boca para falar, mas se calou. Encheu as bochechas, o cenho franzido enquanto olhava insistente para os dois. Então levantou a mão para a professora colorida.

— Sim, meu querido?

— Professora eu acredito que a atividade seria muito mais proveitosa se feita em trios ao invés de duplas.

De repente todos se calaram e voltaram sua atenção a Tiago, que agora estava em pé, o olhar determinado mirando a professora.

— Oh, querido — disse com surpresa. — O que lhe deu essa inspiração tão maravilhosa?

— Entendo que esse exercício segue a regra das equipes de caçadores mirins, que formam uma equipe de dois. Mas não estamos totalmente preparados para entrar em uma missão mirim apenas com o suporte de uma pessoa…

— Tá me chamando de fracote? — perguntou um rapaz de ombros largos, sentado ao lado de uma das gêmeas. Pelo visto seu par já estava completo.

— Ninguém está chamando você de fracote, querido. Por favor, senhor Nebeque, continue. 

— Como ia dizendo. Alguns de nós não tem tanta capacidade para enfrentar os nocivos em dupla. Eu estou incluso nisso. Então julgo que um exercício muito mais proveitoso se seja entrarmos em sintonia em trios e não em duplas.

— Excelente ideia! — comemorou a professora. — Começar pelo mais difícil vai tornar as coisas ainda muito mais fáceis para quando vocês forem em dupla! Bem pensado, senhor Nebeque. 

Tiago fez um gesto com a cabeça que não enganou Diego. Pelo visto a professora entendera tudo errado, mas o resultado seria o desejado pelo loiro:

— Trios! Isso, vamos fazer trios meus amores! 

Todos começaram a reclamar. Até imploraram para ser um trio de quatro. Também afirmaram que era má ideia, já que duas pessoas na sala iriam ficar sobrando. Mas não teve jeito.

— Três já está bom, meus amores. E aqueles que ficarem sem equipe, podem fazer o exercício comigo. Não é maravilhoso?

Toda a sala se reorganizou para fazer o trio. Nem todos acharam uma má ideia, como Neto — o rapaz que havia identificado a cicatriz de Diego como produto de um peculiar nocivo do tipo cachorro. Ele teve a oportunidade de fazer trio com às duas gêmeas cobiçadas.

O garoto de ombros largos, no entanto, não gostou nem um pouco de perder sua parceira. Soltou um olhar tão furioso para Tiago que até mesmo Diego se contorceu em sua cadeira. 

— Muito bem, os que vão ficar comigo vão ser o Sanches e o Igor. Sentem-se aqui do meu lado, meus amores. Isso. Obrigada. Agora todos procurem no rosto do seu parceiro encontrar o ponto de ligação em comum. Antes de iniciar uma batalha, devemos conhecer nós mesmos e também o nosso companheiro. Só assim vamos poder trabalhar em sincronia. 

Diego estava entre Tiago e Fabio, mas nenhum dos dois parecia procurar ponto de ligação nenhum. O loiro fuzilava o tímido rapaz com olhos de desconfiança. O da cicatriz até tentava se por entre os dois, porém só faziam silêncio. Fabio ficou tão acuado que se encolheu em seu lado da mesa. 

Ficou obvio que nenhum deles estabeleceria conexão nenhuma daquele jeito. Antes que Diego pudesse dar um basta na situação, alguém explodiu de raiva ali perto.

— Deixa de ser gay, cara! Não precisa dessa aproximação toda para cima de mim, não! — dizia o aluno de ombros largos. — Eu tô bem na tua frente!

— Mas seus olhos são muito escuros — respondeu Dani, e com ele também estava Lauro. — Como é que eu vou ver seu interior se não me aproximar de seu rosto?

Ofendido, o rapaz empurrou Dani, o fazendo cair de costas sobre os braços de Lauro. Toda a sala começou a fazer barulho.

— Acalmem-se, meus amores!

Enquanto a professora tentava apaziguar as coisas, Tiago acabou se distraindo por um segundo. Nesse momento, Fabio cutucou Diego e lhe estendeu a mão, dizendo baixinho:

— Pega.

Pelo visto, o seu amigo loiro não estava totalmente incorreto. 

Pegou das mãos do tímido rapaz um papelzinho embrulhado, acompanhado de uma flor branca, que dizia:

Querido Amante-De-Portas,

Espero que o Fabio tenha entregado essa carta a tempo. Preciso da sua ajuda, por favor. Venha só você, é urgente. E a proposito, sei que ficou quieto com relação à conversa que nós dois ouvimos (você sabe aonde). Peço que continue sem falar para ninguém. Confia em mim.

Atenciosamente, Raposa.

PS: Você sabe onde é ponto de encontro, sim?

— Isso é da Petterson?

Diego tomou um sustou ao perceber, tarde de mais, que Tiago estava olhando. Amassou rapidamente o papel e pôs no bolso. 

— É. Ela precisa da minha ajuda.

— Não vá!

— O quê? Por quê? Ela falou que precisa da minha ajuda!

— A Petterson é uma problemática. Não é atoa que todos chamam ela de Raposa. Ela nem assiste aula!

— Estou começando a achar que ela está certa, Tiago. — E apontou para a confusão que estava acontecendo ali: A professora tentando separar Lauro de pular em cima do outro rapaz.

— Você não pode ir, Murdock. Ela é problema!

— Para de me chamar assim! Eu vou e ponto final!

 

D

   I

      N

          G

D

   O

      N

         G

 

Era hora do almoço.

Enquanto Diego se levantava para ir em direção ao banheiro e nenhum dos dois tentou lhe impedir. Tiago estava muito ocupado lançando novos olhares ameaçadores a Fabio. Ao menos nesse sentido, o loiro não estava errado, mas estava errado sobre Rafaela. Tinha de estar.

Ela pediu por sua ajuda, coisa que ninguém em toda sua vida tinha feito. 

Ainda segurava a flor branca na mão enquanto se encaminhava até as portas do banheiro. Assim que entrou, viu que muitos outros dos seus colegas também tiveram a ideia de ir lá depois da aula.

Teve de esperar todos saírem para poder chamar Rafaela, que deveria estar por trás daquele molde, nos dutos do teto. Enquanto esperava, ouvia algumas piadinhas a respeito de sua nova reputação: Cachorro ou vira-lata. Só não revidou os insultos com socos e pontapés por medo de pegar mais alguma advertência.

Quando todos saíram e foram logo para o refeitório, Diego subiu pela porta da cabine do banheiro e empurrou a moldura do teto. Para sua surpresa, não viu ninguém e nem os pisca-pisca estavam acesos. 

Ele pôs a moldura de volta no lugar e desceu. Foi até a frente da piada e tirou o papelzinho do bolso para analisar. 

— Espera aí. E se não foi ela que escreveu? 

Então alguém entrou no banheiro. Diego escondeu o bilhete no bolso antes se virar e ver que era aquele rapaz de ombros largos que havia causado confusão.

— Ah. Então você tá aqui. O vira-lata, né?

— O que você quer?

— Nada — respondeu, dando de ombros. — Mas aquele seu amigo é engraçado. O quatro-olhos. 

— O nome dele é Tiago!

— Ui! Vai se irritar agora? Pelo visto os cachorros são os melhores amigos mesmo. — Diego nada respondeu. — Mas enfim. Aquele seu amiguinho me fez sentar com dois idiotas hoje. E eu ganhei uma advertência por culpa dele!

Diego franziu a testa e apertou os punhos. Se controlava para não perder a cabeça.

— Cara feia para mim é fome, cachorro! — O garoto foi até a pia e começou a lavar as mãos. — Você pode tá famosinho porque brigou com os Baderneiros agora, mas você não me impressiona. É que nem todos os outros, só quer os holofotes.

Ninguém gostaria de chamar atenção daquela maneira, pensava o rapaz. Resirando fundo, pensou por um instante no problema que daria se arrumasse outra briga. Enquanto refletia, teve uma nova iluminação.

— Ah! Entendi — disse com ar de riso. — Você tá com raiva por ter saído de perto da Sheila.

— Era a Selena! E e-eu não estou com raiva por isso!

— Sim, sim. Já entendi tudo. Olha, eu também não era muito fã delas, mas agora que eu sei que às duas preferiram o Neto do que você...

— Ela se sentou com aquele palito porque seu amiguinho quatro-olhos abriu a boca!

— Acorda! Ela te deu um toco depois de ver essa sua cara de mula.

— Cala a boca!

Diego foi atacado pelo rapaz, o fazendo recuar, surpreso com a ação. Sua intenção não era iniciar uma nova briga, mas ali estava. 

Seu oponente se aproximou mais uma vez e desferiu outro soco, acertando o seu peito. A força do golpe lhe fez cambalear para trás e cair de bunda no chão, batendo com as costas na parede. Tentou reprimir a dor que sentia pressionando a mão contra o peito.

— Isso é para você aprender a ficar quieto, cachorro! — Ele fez um sinal de vitória com os braços estendidos para cima.

O recém-caído ficou enfurecido. Se levantou depressa e investiu contra seu oponente.

Diego conseguiu desviar para a retaguarda do garoto e lhe dar um soco nas costas, jogando o feioso para o rumo da pia, onde ficou de frente para o espelho. O rapaz da cicatriz aproveitou a oportunidade e empurrou a cabeça dele contra o vidro.

— E agora? — gritou. — Dá para ver essa cara feia?

No segundo que ia desferir um soco na nuca do rapaz, resultando em alguns bons cortes em seu rosto, Rafela entrou pela porta comendo despreocupadamente um pedaço de torta e tomando suco de maçã.

— O que vocês estão fazendo? — disse, de boca cheia, o olhar deslumbrado.

Aproveitando a distração, o garoto feio se desvencilhou com uma cotovelada no nariz do rapaz. Diego caiu no chão, zonzo de dor. 

Sem ninguém para lhe segurar, correu em direção a saída, onde estava a ruiva.

— Melhor ficar aqui, Kisley — disse ela, se pondo como obstaculo. — Penso que temos de conversar.

— Sai da frente, vaca! — E tentou dar um soco nela, o que foi um grande erro. 

Diego recuou para dentro de uma das cabines quando viu o corpo do tal Kisley ser arremessado igual um projetil contra a parede. Supôs que aquela habilidade — ou segredo como costumavam chamar — calharia não só para se livrar de Elizel, como também para se livrar de qualquer outra encrenca.

— Sinto muito, Kisley, mas você vai me ouvir. — Ela se aproximou do garoto enquanto tomava o seu suco, ainda despreocupada e com os grandes olhos amarelos. — Tá, primeiro: Fique quieto sobre o que aconteceu aqui dentro. O Diego já tem muitos problemas na cola dele. E segundo: por favor, seria bem inconveniente se você andasse por aí falando sobre o meu segredo.

— Ficou maluca? Cof! O que vai fazer? Pode até ser mais forte que eu, mas não pode me matar, sua vaca!

— É verdade. Acho que te matar me traria muitos problemas. Mas acredite, posso fazer pior do que isso. Como por exemplo: Posso espalhas o que você faz com as suas meias. Ou talvez espalhe para todo mundo os segredos da sua família, principalmente do seu primo. Ou quem sabe eu dê com a linguá nos dentes e fale para as meninas frias o que você andou dizendo sobre elas para seus amigos. 

Conforme Rafaela falava, com simplicidade, como se estivesse falando como estava o seu dia, Kisley ia mudando de cor na mesma velocidade que um semáforo de trânsito.

— C-como… Como você…? Sua…!

— Vaca. Eu sei, você adora me chamar assim. Mas eu particularmente prefiro que me chame de Raposa. — Ela tomou mais um gole do suco. — Agora, por favor, saia. E faça o que eu pedi ou então serei obrigada a matar algo muito pior do que sua vida: Sua reputação.

Ofegante, pasmo e catatônico, Kisley saiu do banheiro. Até mesmo Diego ficara preocupado, pesando se Rafalea não poderia conhecer algum segredo seu. Ela já sabia sobre o seu tio, sobre a suas aventuras no quinto andar. Será se ela sabia dos sonhos também?

— Alô? — disse ela, estendendo a mão para o rapaz. Diego se espantou, mas aceitou a ajuda para se levantar, ainda pensativo. — E então, gostou do cravo branco?

— Ahm… Ah! Sim, a flor na carta? Eu achei… Estranha, no mínimo.

— É verdade, flores são bem estranhas. Agora toda vez que eu enviar uma carta para você, vai ter um cravo branco. É engraçado, porque eles significam paz e ordem. Entendeu? Vai ser minha marca registrada.

Diego ficou um tanto decepcionado com a falta de urgência da menina. Na mensagem dava a impressão de ser uma situação de emergencia.

— Hm… Mas o que é que você queria? 

— É verdade, quero algo de você! Mas eu primeiro preciso saber se contou aquela informação para mais alguém. Aquela conversa no quinto andar.

— Não. Eu não contei.

— Perfeito! — Ela bateu palmas enquanto dava pulinhos alegres. O copo de suco que segurava caiu. — Aquela conversa é muito importante para o que eu vou ter que fazer e seria muito chato se alguém soubesse. Mas Diego...

Ela jogou o copo na lixeira, depois se virou para pedir a coisa mais estranha que o rapaz já ouvira alguém pedir:

— Você pode me dar suas orelhas?



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