Volume 1 – Arco 2

Capítulo 7: A Missão

Diego ainda estava encostado na parede, assustado com a situação. Estava a uma esquina de distância da pessoa que mais tinha medo no mundo. Não o vira naquela manhã e nem no dia anterior desde que os policiais apreenderam o homem de sobretudo — ou ao menos assim supôs.

Nesse momento seu pesadelo estava logo ali, e Rafaela estaria diante dele a essa hora. Logo ouviria a voz debochada e nojenta do tio reclamar enquanto ameaçava dar um tiro na garota. Entretanto, para alguém tão nojento e detestável, até que Elizel estava bastante quieto. 

Agachado, Diego engatinhou devagar até a esquina e olhou com cautela pelo corredor. Para seu grande alívio, Elizel não estava mais ali parado. Quem cumpria esse papel era Rafaela, agora agachada, o ouvido encostado na porta. 

A garota seria pega assim que alguém resolvesse sair da sala. Outra possibilidade para ser flagrada seria caso alguém chegasse pelo elevador, que ficava bem frente a entrada da sala, se deparando com uma menina ruiva.

— Ficou maluca? Sai daí! Volta para cá! — murmurou, tão baixinho que mal podia ouvir sua própria voz.

Ela fez um gesto para o rapaz se aproximar. Diego fez que não com a cabeça e inclinou o corpo para trás. Porém se assustou quando ela o chamou mais uma vez num volume que ele julgou alto de mais.

— Vem logo!

— Shiu!

Assim que ela fez menção de falar outra vez, o rapaz engatinhou rápido e desengonçado até ela e tampou a boca da menina. Com a outra ele fez um sinal de silêncio. Rafaela afastou sua mão e se aproximaou um pouco mais, dando de sentir o hálito de cerejas. 

— Podemos falar, contanto que seja baixo. É complicado eles nos ouvirem estando aí dentro. Também é complicado para nós. Ah! Para com isso, está tudo bem. Tentar ouvir para ver como eu estou certa.

Diego não ficou muito confiante por ter de pôr a orelha na porta. E se assim que o fizesse, alguém abrisse? Apanhariam não apenas Rafa, como ele também. 

Seria muito melhor se saíssem dali quanto antes. Entretanto, a menina parecia tão determinada a provar seu ponto que, pelo visto, só sairia dali quando Diego colocasse o ouvido na porta. 

Pressionado para ir logo embora, o rapaz fez.

— Qual o nível de infestação, diretores? — perguntou uma voz rouca, que Diego conhecia muito bem. 

— Pois, saiba que não temos uma estimativa conclusiva sobre isso — respondeu outra com sotaque português carregado. — Mas temos as variações, sendo do nível zero ao dez. 

— Não sei se entendi, professor Augusto. Está me dizendo que não sabe?

Diego voltou a olhar para Rafaela, preocupado.

— Eu estou ouvindo! 

— Consegue ouvir o que estão falando?

— Sim, é óbvio. Ouvi meu tio falar com alguém chamado Augusto sobre... Nível de infestação...

— Ótimo! Isso é excelente. Fica desse lado e vai me sussurrando tudo que for ouvindo. 

Ela se levantou e puxou da mochila às costas duas pinças. Os dois trocaram de lugar, ela ficando na frente da maçaneta e o rapaz perto de uma daquelas mesas que decoravam a entrada de todas as portas dali. Então a moça começou a mexer de um lado para o outro com as pinças na fechadura.

— Por favor, Diego! Ouça e me fale. Eu cuido aqui, fique tranquilo.

O rapaz se aproximou para ouvir, porém sentiu um grande receio de esbarrar na mesa ao seu lado. Essa mesa em específico tinha um jarro, do qual Diego pegou e pousou no chão, logo ao seu lado, para não ter o azar do objeto quebrar ao cair no chão.

Preparado para ouvir, começou a sussurrar todas as palavras chaves que captava.

— Senhol Elizel — disse uma outra voz, velha e com tom de clemência. — Não estamos zombando de você. Acledite, plecisamos da sua ajuda. Não tem mais ninguém pala fazel essa missão…

— Eu sou um Dragão Negro! Não vou tolerar que me empurrem uma missão de nível tão baixo! Se quiserem mesmo tapar buraco, chamem outro. O preferido dos senhores não está disponível? Ele adoraria perder o precioso tempo cuidando de um problema desses.

— Ora, pois! Não vê que esta missão é de extrema importância? — falou Augusto, um tanto irritado. — Se o senhor for bem sucedido, trará grandes benefícios para nossa sede e, consequentemente, para sua reputação. Que devo lhe lembrar, não anda nada bem desde o último incidente a dois anos atrás.

— Não preciso do seu lembrete, senhor Augusto!

— Já basta, os dois — disse uma terceira e última voz. Essa era calma e serena, mas firme o suficiente para todos se calarem por alguns segundos. — Elizel, reconsidere. Você está subestimando a gravidade da situação. 

— Subestimando a gravidade?” São vocês que me mandam para fora do nosso território, fora de nossa jurisdição, para conseguirem um pouco de material para seu estoque!

— Não se trata de uma disputa de interesse ou uma briga por uma rivalidade do passado...

— E do que mais poderia se tratar, Nebeque? Porque mais outro motivo os senhores, tão ocupados atrás de suas mesas, decidiriam passar por cima das normas por aquele povo?

— Porque são pessoas, Elizel. Desesperadas. E podemos ajudá-las...

— Ah! Faça-me o favor! Aquela vila tem a própria associação a quem recorrer, Nebeque! O senhor só vai pôr nossa sede em mais problemas.

Elizel estava falando cada vez mais alto, e por algum motivo Diego parecia sentir sua fúria dentro de si. Era como se a velha sensação de veneno estivesse preenchendo seu abdômen mais uma vez.

Ele parou de prestar atenção na conversa que ia se seguindo lá dentro por um instante, pois começou a ouvir um barulho estranho, de cascos no chão. Não vinha da sala e nem dos corredores, já que o rapaz olhou para os lados e não viu nada. 

— Eles pararam de falar? — perguntou Rafaela, com os olhos deslumbrados.

— O quê? Ah! Não. Ainda não.

Balançando a cabeça, o rapaz voltou a prestar atenção, repetindo tudo em sussurros como combinado; embora ainda sentisse a sensação estranha no abdômen ficar cada vez mais forte.

— Infelizmente, todos sabemos que a Flor-de-lis prefere se ocupar mais com a própria burocracia do que ajudar seus afiliados. Elizel, você, de todas as pessoas, sabe como é ruim viver assim…

— Isso é loucura! Vão deixar que ele tome essa decisão? Professor Augusto? Professor Kim?

— Pois — começou Augusto. — Também não fui favorável à ideia, tenho de admitir. Se a organização soubesse disso, nos renderia uma enorme dor de cabeça. Entretanto, fui convencido a concordar por conta do lucro no material que iremos receber. Diria ser um empreendimento totalmente custo-benefício. Fora, claro, a questão de ajudar as pessoas como o diretor Nebeque bem apontou.

— Sim, é veldade — disse a voz mais velha, que Diego imaginou ser o diretor Kim. — Ficamos meio leceosos, senhor Elizel. Mas tente entendel, se conseguilmos essa vila como afiliado, os nossos telitólios iliam fical ainda mais foltes, né? Podelíamos ter um estudo de campo ainda melhol com os novos alunos.

Um grande silêncio repleto de reflexões tomou o ambiente por detrás daquela porta. Nesse silêncio, a sensação estranha novamente tomou de conta. O barulho das aumentou e depois parou de repente. E Diego sentiu um estranho ar quente a sua volta, como se um ferro em brasa estivesse a centímetros de sua cabeça.

Quando recebeu mais um olhar de cobrança vindo de Rafaela, o rapaz voltou a sua tarefa. 

Para a surpresa de Diego, Nebeque voltou a falar com seu tom sereno e calmo, como se nenhuma das grosserias de Elizel tivesse lhe atingido.

— Como amigo e professor, digo que é o único capaz de cumprir essa missão. Nem mesmo o comandante Vinícius estaria aos seus pés, já que ele tem a tendência de… Digamos: Chamar mais atenção do que deveria. — O diretor deu uma risadinha do fundo da garganta. — Fora isso, garanto que sua reputação vai melhorar entre os opulentos.

Após mais alguns momentos de silêncio, Diego olhou para trás na intenção de checar se estava realmente imaginando coisas. O arrepio na nuca lhe dizia para sair dali quanto antes. Tudo que viu foi o elevador fechado, e mais ao lado, a porta de emergência. O jarro de porcelana continuava do seu lado, são e salvo.

Dando de ombros, parou de ligar para a estranha sensação. Se convenceu de que era apenas alguma dor de barriga idiota, talvez um sintoma dos venenos do tio, e voltou a prestar atenção no lado de dentro.

— Vou com a Lidja. Não preciso de auxílio.

— Ora! Isto é um absurdo — reclamou Augusto, seu sotaque mais carregado que nunca. — Não há como resolver uma infestação mediana sem auxílio de uma equipe minimamente qualificada!

— Eu sou mais que qualificado…!

Então, repentinamente, o jarro ao lado do rapaz quebrou. Foi como se algo tivesse caído sobre ele. Olhou assustado para Rafaela, que tinha uma expressão entre a surpresa e a curiosidade, depois ele rezou para que o barulho não tivesse sido notado.

Para sua infelicidade, os dois viram a maçaneta ser forçada para abrir, porém graças as habilidades da ruiva isso não aconteceu de imediato.

A menina se levantou, pegou em sua mão e o levou em direção ao elevador. Assim que chegaram na frente, um disparo fez Diego levar um susto tão grande que soltou um palavrão muito alto. 

Antes que pudesse ver Elizel sair pela porta, Rafaela o puxou para as escadas de emergência, e os dois começaram a pular os lances com muita rapidez.

Descendo com velocidade como se suas vidas dependessem disso, os dois pulavam lances de escadas com facilidade, depois viravam a esquerda para assim pular outros.

— Ele está vindo atrás? — perguntou Rafaela, que não demonstrava nenhum cansaço aparente.

— Não sei!

Continuaram descendo até finalmente chegarem em uma porta indicando que ali era o quarto andar. Rafaela segurou o rapaz para que ele não continuasse a descer.

— Que foi? Cansou?

— Seu tio é um opulento, Diego, e ele ouviu sua voz. — O rapaz fez uma expressão que indicava confusão, pois não havia entendido o termo. A meina tentou explicar brevemente: — Isso significa que ele é um caçador nato. Um dos melhores, na realidade. Agora, pense um pouco, ele iria atrás de você no segundo andar ou iria caçar você de andar por andar?

— Eu… Eu não sei! Como eu vou saber como que funciona a cabeça dele? Acho que… Sei lá! Ele iria direto para o segundo andar. Não é para lá que estamos tentando ir?

— Certo. Então vem!

Ela segurou sua mão mais uma vez, abriu a porta e entrou no quarto andar. Os dois estavam agachados. Diego não estava satisfeito de ser conduzido daquela maneira.

Encontravam-se em um corredor que ia de uma ponta a outra do prédio, iluminado por duas janelas, uma em cada extremidade. Logo ao lado de onde saíram estavam dois elevadores, um deles indicava já estar no segundo andar. Diego ficou aliviado.

— Para onde estamos indo? Ele já desceu!

— Conheço outra saída aqui na biblioteca. Me segue.

Eles continuaram agachados, passando por diversas estantes com alguns livros. Se aquilo fosse a biblioteca, certamente era ainda mais sem graça do que a de sua casa. A única coisa interessante ali era um globo em miniatura no meio do caminho.

Na parede, no meio do corredor, havia uma grande porta branca, que dividia as prateleiras encostadas na parede. Rafaela parou logo ali e empurrou a porta com cautela. Assim que os dois entraram, a visão que Diego teve o deixou boquiaberto.

Não mais estavam em um pequeno corredor com livrinhos aqui e ali, estavam dentro de uma enorme e monstruosa biblioteca. Havia livros e prateleiras em todos os lugares que era possível colocar. Inclusive, Diego estranhou, haviam alguns exemplares pendurados no teto, paredes e até no chão.

Conforme foi se esgueirando pela biblioteca, ainda agachado e atrás de Rafaela, notou haver três níveis superiores decoradas com sacadas ornamentadas. Tudo era sustentado por colunas que brilhavam em dourado.

Eles poderiam acessar os andares superiores por escadas grandes e robustas cobertos por um tapete vermelho, e ele queria muito isso, porém a menina continuava a arrastá-lo para cantos mais obscuros, embora não menos impressionantes.

Diego teve a impressão de que aquele lugar parecia mais um coliseu do que uma biblioteca. No meio havia um grande círculo sem nenhuma estante de livros, apenas cadeiras e mesas onde alguns jovens se sentavam ali, em silêncio, para poder desfrutar de seus estudos.

Talvez pudesse ser comparado a um grande labirinto que devesse ser explorado. De qualquer forma, com toda certeza, Diego estava ansioso para voltar ali o mais rápido que pudesse, por mais que a ideia fosse estranha até para si mesmo.

Teria se divertido mais em apenas observar, se não tivesse visto uma figura familiar, bem no meio do salão, falando com o que parecia a bibliotecária. Ela apontou para um canto e a figura prosseguiu por ele, bem na direção que Diego e Rafaela iam.

— Meu tio está aqui!

— É verdade — respondeu ela, com um ar indiferente de surpresa. — Você se enganou, pelo visto.

— Mas como? Eu vi que o elevador estava no segundo andar já.

— Sim, é verdade. Mas reparou que o outro elevador estava nesse andar?

 — Não… Eu não... Espera, você viu isso e não disse nada?

Rafaela apenas sorriu e continuou. Virando por prateleiras enormes que quase tocavam o teto, os dois chegaram a um dos cantos da grande biblioteca. Estavam de frente para uma prateleira integrada a parede como varias outras. Rafaela parou ali e disse:

— Fique de olho no seu tio.

— E se ele vier para cá, sua maluca? O que eu faço?

Ela não pareceu ter ouvido e logo começou a mexer em uma tabuá ao pé da estante. Diego, espiando por entre algumas prateleiras, observava o tio andar de um lado a outro.

Em determinado momento, Elizel parou por um segundo e olhou para cima. Então dilatou as narinas com os olhos fechados. Pelo visto captara algo. Assim que abriu os olhos, ajeitou seu chapéu fedora e começou a ir em direção aonde Diego estava, a expressão firme e decidida.

— Ele ‘tá vindo! Ele ‘tá vindo, Rafa!



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