Volume 3
Capítulo 147: Uma Tarde Fria e Um Mar Calmo
Dias a fio em alto mar.
Shiduu estava começando a ficar enjoada de olhar para os lados e ver apenas água. O mar era azul, o céu era azul, o barco era azul…
O capitão era um cara esquisito que não falava muito. Às vezes deixava o barco navegar livremente enquanto deitava no convés, tomando sol e assobiando. Isso fazia Shiduu se perguntar se estavam na direção certa ou o barco estava navegando em círculos.
Como não tinha muita coisa para fazer, Shiduu passava o tempo excessivamente livre dormindo ou treinando com Valmir. Ou namorando, quando Felipe não estava fazendo uso de seu segurança.
Isso era outra coisa que ela não entendia, por que um dos heróis precisaria de um segurança? E por que precisaria de um segurança em alto mar?
Depois de muito tempo convivendo com eles ela percebeu que Felipe apenas precisava de alguém para conversar. Quando ele estava sozinho, acabava encarando o horizonte como se estivesse em transe. E Shiduu já tinha visto aquele olhar perdido, era o mesmo que Deco costumava mostrar quando estava sozinho.
Pensar demais poderia levar uma pessoa à depressão.
Para a felicidade de Shiduu, aquele não seria o dia em que a mente genial de Felipe cederia sob seus próprios pensamentos.
Como se brotasse nomeio do mar, uma montanha começou a surgir no horizonte. Deveria ser o tão sonhado destino que Felipe buscava. Um lugar que, segundo o herói da sabedoria, abrigava os deuses.
Shiduu não acreditava que os deuses, seres conhecidos apenas pelas histórias contadas ao longo de gerações, estariam ali em carne, osso e divindade. Talvez fosse aquele lugar apenas uma espécie de templo onde seria mais fácil se comunicar com os deuses.
Até anos atrás, pouco antes dos heróis surgirem, ela sequer acreditava que os deuses realmente existiam. Agora, apenas duvidava um pouco.
O barco se aproximou da ilha naquele mesmo ritmo lento e entediante, aportou em um trapiche simples, feito com tábuas velhas e desgastadas. Havia lodo e cheiro de maresia. Mas os três viajantes desceram até terra firme.
Shiduu percebeu que o capitão não havia descido, e quando se virou para perguntar se ele desembarcaria, viu que não havia mais ninguém na embarcação. Ela achou estranho, mas aquele cara não era normal, ninguém com a mente sadia toparia fazer uma viagem tão idiota e arriscada.
Por algum motivo o barco parecia bem mais velho, e havia um pássaro pousado acima da cabine do capitão. Ela percebeu que não havia nenhuma ave marinha durante a viagem, e mesmo assim, aquele pássaro não era comum em litorais.
Talvez isso fosse por causa da ilha, um local sagrado deveria ter suas peculiaridades.
Mas não havia muita beleza no local. Uma praia estreita, de areia escura, cercada por rochas polidas pelo intemperismo natural, e uma longa escadaria entalhada na montanha que representava quase toda a ilha.
Não haviam plantas ou animais, nenhuma casa ou qualquer coisa que aparentasse ser uma habitação, nem mesmo haviam ondas no mar de águas escuras.
Então ela percebeu que seu corpo estava diferente. Seus movimentos eram mais curtos, e tudo ao redor parecia maior. Olhando para o lado ela viu um velho negro e barbudo com cabelo grisalho trançado da mesma forma do cabelo de Felipe. Até a jaqueta amarela era igual…
Aquele era Felipe, não havia dúvidas. Só ele usaria uma jaqueta tão esquisita.
— O que aconteceu com você? — Shiduu perguntou a Felipe.
— Eu que pergunto. — Ele respondeu — Tenho certeza de que você é a Shiduu, mas a aparência é de uma criança.
Ambos se viraram para Valmir, ele permanecia igual. Nenhuma alteração física era perceptível, ao menos.
— Que foi? Eu estou estranho também? — Valmir perguntou.
— Não, está normal. — Shiduu respondeu — E isso que é estranho, sabe, eu encolhi e o Felipe envelheceu.
— Estamos na morada dos deuses. — Felipe disse, com a calma de sempre — Eu já esperava que algo estranho acontecesse.
— Estamos em um mundo onde a magia é real, qualquer coisa estranha será normal. — Valmir adicionou.
Shiduu achou melhor se convencer de que aquele era a melhor resposta, por mais que fosse insatisfatória.
Um movimento à frente chamou a atenção dos três. Uma silhueta parecia se aproximar por entre as sombras das rochas, se aproximando dos três.
Era uma garota de aproximadamente dez anos de idade. Usava um vestido amarelo e estava descalça, seus cabelos castanho-escuros levemente ondulados pendiam sobre os ombros, até a altura da cintura. Sua pele era parda, e seus olhos, de uma cor tão escura quanto a noite.
— Olá, sejam bem-vindos à morada dos deuses. — Ela disse —Estávamos esperando vocês.
— Quem é você? — Shiduu perguntou.
— Não acredito! — Felipe deu um sorriso alegre — Você não mudou nadinha!
— Conhece ela, chefe? — Valmir perguntou.
— É muito bom revê-lo também, Felipe. — A garota disse.
— É uma velha conhecida, por mais que nunca tenhamos nos encontrado pessoalmente, eu sou um admirador da inteligência dela. — Felipe respondeu.
— Mas você acabou de dizer que ela não mudou nada. — Valmir retrucou.
— Tinha visto apenas uma foto.
— Alguém me explica o que está acontecendo… — Shiduu esfregou as têmporas.
— Calma criança, logo tudo será explicado. Tudo ao seu tempo. — A garota disse a Shiduu — Mas o tempo não é tempo, é tudo apenas um conceito humano, por isso que aqui cada pessoa tem a aparência que sua alma reflete.
— Eu não entendi o que ela disse. — Valmir comentou.
— Criança? Você é a criança aqui! — Shiduu reclamou — Quem é você mesmo?
— Oh, sim. Desculpe por não ter me apresentado corretamente. — A garota se aproximou de Shiduu e ofereceu um aperto de mãos — Meu nome é Maria, nos conhecemos há muito tempo, por mais que não lembre.
— Você mesma acabou de dizer que tempo é só um conceito humano.
— Talvez eu ainda seja humana…
— Maria? — Shiduu estreitou os olhos — Nunca conheci ninguém com esse nome!
— É um anagrama. — Felipe explicou — Mude as letras de posição e terá…
— Miraa…! — Shiduu mudou a expressão de desconfiança para espanto.
A garota sorriu gentilmente, e enquanto esperava Shiduu se recuperar do choque, acenou para Felipe, e depois para a grande escadaria de pedra que levava à montanha.
— “Ele” o aguarda.
— Muito obrigado. — Felipe fez uma mesura e seguiu pelos degraus de pedra, Valmir o seguiu.
Mesmo após Felipe e Valmir saírem, Shiduu permaneceu em choque por mais um tempo.
— O que significa tudo isso? Vai me explicar ou continuar com esses enigmas idiotas? — Shiduu reclamou.
— Não. Vou te explicar tudo direitinho. — Maria disse.
Shiduu a encarou com um olhar sério por alguns segundos.
— Você me olhou da mesma forma quando te achei no meio do deserto, sabia? — Maria deu um sorriso gentil — Shi-Du, a última do clã do oásis, aquela que escolhi para ser minha sucessora…
— Sucessora?
— Vou explicar melhor lá dentro. Vamos, entre. — Maria caminhou em direção à escadaria enquanto acena para Shiduu a seguir — Em breve a escuridão chegará, e não vamos querer estar aqui fora.