Volume 2

Capítulo 93: Décima Nona Página do Diário (2)

— Se nos separarmos agora vamos chamar atenção. — Eu disse para Finii.

— Não vamos nos separar, mas você precisa ficar com a chave porque quando eu morrer não terá que perder tempo procurando em meu cadáver.

— Já disse que ninguém vai morrer!

Finii me olhou nos olhos, e disse como se contasse a coisa mais feliz que lhe aconteceu:

— Eu nunca tive direito de decidir nada na minha vida, desde minha infância fui escrava. O horário para acordar e dormir, o que fazer ou não, até a comida que me sirvo ou com quem me deito, nunca pude exigir ou recusar. Por favor deixe que pelo menos a minha morte seja da minha escolha.

Palavras fortes que me acertaram em cheio. Duas horas antes eu estava tentando salvar pessoas de uma vida de escravidão, e agora havia uma pessoa na minha frente exigindo o direito de pelo menos morrer como alguém livre.

Não consegui lhe convencer a viver, podia ver em seus olhos que aquele era o seu desejo verdadeiro. Me faltaram palavras para ajudá-la. Apenas a segui em silêncio pelos corredores enquanto fingia inspecionar o local, me perguntando como reagiria qualquer outro dos meus irmãos se estivessem ali com ela.

— Você tem que ter cuidado ao entrar no escritório. — Ela explicou — Achar a entrada do porão é fácil, o problema e se for pego. Existem muitos guardas aqui, e o magistrado tem uma arma mágica muito perigosa, dizem que ela pode cortar praticamente qualquer coisa e somente alguém com muito poder pode usá-la.

Olhei incrédulo para ela.

— Uma coisa assim existe de verdade? É tipo um relíquia divina?

— Não é tão forte quanto uma relíquia, mas nas mãos do magistrado pode ser mais perigosa. Aquele cara é um louco sádico qua mataria você e seus irmãos caso descubram alguma coisa.

Parei um pouco repassando a rota de fuga que observei, poderia ser necessária.

— O único motivo para ele ter deixado vocês vasculharem a mansão é porque acha que não vão encontrar nada. Mas não esperava que eu fosse te ajudar.

— Aaah… Obrigado. Eu acho…

— De nada! — Ela sorriu mais uma vez.

Andamos mais um pouco, enquanto Finii me explicava mais alguns detalhes do funcionamento do local. Até que ela decidiu que estava na hora. Eu só não sabia de quê.

Finii perguntou a uma das criadas, que também era escrava, onde estava o magistrado. Segundo essa criada o magistrado estava no seu escritório cuidando dos assuntos da cidade. Finii pareceu muito feliz com a informação, e me puxou pelo braço.

— Vamos! — Ela disse apressada — Esse é o momento perfeito.

— Mas se tenho que entrar por baixo da mesa do escritório, não seria melhor esperar até ele sair?

— Não. — Ela explicou sem se virar — Se você entrar lá sem o magistrado estar lá dentro vai acabar chamando atenção. Não se preocupe, vai dar certo.

Chegando à porta do escritório, Finii pediu que eu esperasse o magistrado desviar a atenção e entrar de fininho, segundo ela haviam alguns vasos de plantas grandes onde eu poderia me esconder facilmente.

Então ela chutou a porta, no sentido literal. Meteu o pé direito e entrou de cabeça erguida, foi ali que entendi a intenção dela. Mas era tarde para voltar atrás, a aposta estava feita e vidas estavam em jogo.

Ela deixou a porta aberta, fiquei olhando de uma posição que não podia ver ou ser visto pelo magistrado. Finii caminhou até a estante de livros e derrubou alguns, me dando a oportunidade para entrar e me esconder enquanto o magistrado a encarava tentando entender suas ações.

A partir dali fiquei apenas assistindo o desenrolar.

— O QUE ESTÁ FAZENDO? — O magistrado gritou com Finii.

— Estou me rebelando! — Ela disse girando uma mecha de cabelo por entre os dedos.

— Está louca? — O magistrado moderou o tom — Não faça nada que me desagrade, não pense que por esses moleques estarem aqui algum de vocês será libertado. Lembre-se que eu posso matá-los também, e como estamos pertinho da fronteira, não tem nem chance daquela rainha falsa me pegar.

— Mas é tarde magistrado. — Finii disse derrubando mais alguns livros — Eles já descobriram onde estão os escravos aprisionados. Inclusive eu vim aqui porque o rapaz que eu estava acompanhando já até saiu do local, e em breve eles chegarão com mais pessoas.

— Está blefando!

— Estou? — Ela caminhou até o centro do escritório — Estou preparada morrer, mas me diga magistrado, o senhor também está?

— Não faça brincadeiras esúpidas! — Ele disse em tom agressivo.

— Não é brincadeira. Eu o deixei sem opções, revelei o seu segredo e agora mesmo estão vindo aí com reforços. Você vai me matar e assinará sua sentença de morte. Escravidão é crime punível com morte no Reino do Leste.

O magistrado tirou do bolso um objeto marrom-dourado fino e cilíndrico com algumas inscrições em alto-relevo. Ficou alguns segundo girando entre os dedos como se tentasse intimidar Finii com aquilo.

De supetão ele parou e apontou uma das extremidades para a garota à sua frente, um som sibilante ecoou quase imperceptível. Da ponta do objeto se formou um chicote escuro, se movendo como se esivesse vivo. Era daquilo que Finii falava, a arma mais perigosa no local.

— Você sabe o que é isso? — Ele perguntou.

— Sim. O chicote negro, uma arma mágica que pode cortar aço como se fosse manteiga.

— Não sente medo?

— Não, na verdade estou preparada para isso desde o dia em que matou meus pais e trouxe a mim e a minha irmã para esse inferno.

— Você fala muito para uma escrava.

— Não sou mais uma escrava, desde que matou minha irmã eu apenas esperei momento certo para morrer também. Essa é a minha escolha.

— Escravos não têm escolha.

— Já disse, eu não sou uma escrava.

O homem rangiu os dentes, era possível ver que ele estava contrariado. Matá-la significava dar o que ela desejava, qualquer outra opção não seria viável.

— Antes de morrer quero que saiba que isso é decisão minha e não sua. — Ele disse.

— Sua decisão apenas calha de ser a mesma minha. — Ela respondeu.

O chicote negro do traficante de escravos estalou partindo Finii ao meio. Ela morreu de pé, com um sorriso no rosto e mostrando os dedos do meio em ambas as mãos. Seu último ato em vida foi de liberdade e repúdio a quem lhe fez tão mal.

O cadáver se abriu ainda de pé, deixando vazar as partes internas. Em dois segundos o que restou dela estava espalhado no chão do escritório. Finii agora não era mais uma escrava, mas uma pessoa importante na minha memória.

Continuei lá, segurando a vontade de partir para cima daquele balofo miserável, queria vingar a morte de Finii, mas isso colocaria tudo a perder e faria seu sacrifício ser em vão. Segurei a vontade de chorar, respirei fundo mantendo o cuidado para não fazer barulho.

O magistrado agiu como se matar uma pessoa partindo-a ao meio fosse um ato corriqueiro, apenas saiu do escritório e começou a exigir que alguém aparecesse para fazer a limpeza do local. Queria que Shiduu estivesse ali, mas não tinha a oportunidade de procurá-la, então me restava apenas a opção de desfazer meu erro de horas antes.

Aproveitei que ele estava fora e corri para a mesa do escritório. Não foi difícil de achar a entrada para o porão secreto. Dei uma última olhada para o cadáver de Finii e entrei pela porta horizontal, encontrando uma escada em pedra descendo em espiral.

Lá em baixo era mais amplo do que eu esperava. Segui pelo corredor largo que havia ao final das escadas, passos largos e silenciosos. Em ambos os lados pessoas acorrentadas me olhavam assustadas, diferentes características físicas e faciais indicavam várias origens.

Conforme avançava um mau cheiro invadia meus sentidos e me instigava repugnância, mas persisti e cheguei à porta, tentei abrir com a chave e não deu certo, era a porta que Finii havia falado. Chutei a tranca algumas vezes até quebrá-la, reforçando a sola do pé com rancor, não era momento para ser discreto, empurrei a porta com o ombro e entrei.

A luz do ambiente era boa o suficiente para ver tudo que havia ali, mas isso a única coisa boa no local. O mau cheiro se tornou mais forte, e a cena que vi me fizeram por o almoço para fora. Aquilo não poderia ter sido feito por um humano.



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