Volume 2
Capítulo 100: Vigésima Página do Diário
O que vi foi a pior cena possível, um ato de tamanha crueldade que somente o pior do ser humano seria capaz de realizar, e somente o mais puros dos seres seria capaz de resistir.
Um corpo infantil estava preso à parede por espinhos de ferro que atravessam os membros. Sem lábios, pálpebras e as pontas dos dedos, ao longo de sua pele eu observei havia cortes profundos e marcas de queimaduras recentes. As feridas abertas e ferimentos mal suturados parecia uma forma intencional de deixar cicatrizes.
Atrelado à visão grotesca havia o mal cheiro do lugar, o fedor de coisa podre e esgoto pareciam me rasgar os pulmões. Desviei o olhar do pequeno corpo preso à parede, e ao meu lado vi uma mesa, onde haviam bandejas com incontáveis equipamentos cirúrgicos misturados com instrumentos de tortura, cobertos de sangue coagulado, onde moscas voavam em volta e pousavam de vez em quando.
Vi ainda, no chão, uma mistura de sangue e dejetos humanos, provavelmente do ser pendurado à parede, pela sujeira em suas pernas esquálidas dava de perceber. Haviam sinais de moscas, ratos e larvas rastejantes, inclusive algumas larvas caíam de ferimentos abertos no abdômen do pequeno ser.
O que me segurou de cair de joelhos foi unicamente o nojo do piso do local, mas meu estômago não foi capaz de conter o almoço, senti toda a comida em digestão voltar pelo esôfago, e deixar aquele gosto ruim de bile na minha boca, além da queimação do ácido estomacal.
Me aproximei do pequeno ser, suficiente para atestar que ainda estava vivo, o que me surpreendeu totalmente. Ser capaz de sobreviver àquela situação toda só podia demonstrar uma resistência física e uma persistência invejáveis.
— Vai… me… machucar… também..? — A voz fraca e sem força daquela criança quase me fez chorar.
— N-não! — Respondi imediatamente — Estou aqui para te ajudar.
Os olhos sem pálpebras me encaram de forma assustadora enquanto eu me esforçava em tirá-la daqueles espinhos de ferro.
— Sou Deco. — Disse a colocando no chão cuidadosamente —E você?
— Brogo…
— Apenas espere, eu vou te tirar daqui… desse lugar… desse… inferno!
Ela acenou com a cabeça concordando.
Fiquei alguns segundos sem saber o que deveria fazer, não era de esperar que ela estivesse viva. Em minha mente buscava uma forma de tirá-la dali sem chamar atenção. Mas tudo me dizia que era impossível.
Se não poderia somente fugir dali levando aquela criança, eu teria que forçar a saída, me jurei para mim mesmo que não a deixaria a mercê daqueles monstros sádicos.
— Se pelo menos Shiduu estivesse aqui…
Mas apenas fugir não era o certo, quem ousou causar tamanha dor a um ser humano teria que pagar, e ser preso não seria o suficiente. Um monstro como aquele teria que ser o exemplo para que outros não tentassem fazer o mesmo.
— Monstros. Merecem. Morrer…
Ouvi passos vindo do corredor, logo em seguida reconheci a voz do líder da caravana de escravos. Algo no fundo da minha alma gritou que era uma obra do destino. Ele precisava ser punido, e eu estava ali apenas para isso. Por algum motivo, em meio a tudo aquilo, eu sentia vontade de sorrir.
Quando estavam perto da porta o suficiente para eu atacá-los, meu corpo se moveu tão rápido que parecia não haver gravidade, deixei minhas pernas me guiarem e senti quando avancei em direção ao chefe do tráfico de escravos. Mesmo que não pudesse ver a mim mesmo, sei que a minha expressão era de puro ódio naquele momento.
As pessoas que não pude salvar, a morte de Finii, a criança presa à parede. Tudo isso movia minha alma em direção ao puro ódio. Senti meus sentidos se despertarem ao máximo, como se eu pudesse ver e ouvir tudo. Era como se tudo, de repente, se movesse mais devagar.
Quando o maldito me viu, deve ter compreendido que descobri o seu passatempo secreto, e sabia que não ficaria barato. Imediatamente ordenou que os guardas me capturassem, e sacou seu item mágico, o chicote negro.
— Ainda ousa me atacar? — Meu ódio aumentou — Agora sim vou te matar…
Deixei meu ódio se elevar ao máximo, como se antes eu o estivesse mantendo sob controle e agora deixasse ele me controlar. Pelos próximos minutos eu fui guiado pelo meu rancor, e tudo de ruim em mim aflorou. Uma sensação maravilhosa.
Com um giro rápido no ar desviei dos guardas, e dei três passos pela parede, correndo e ignorando a gravidade, tendo como destino a minha presa, quando toquei o chão mais uma vez, a cabeça dele já estava nas minhas mãos, e seu corpo a uma distância de, pelo menos, cinco metros.
Olhei para a face onde estava estampada uma última expressão de terror, aquilo me encheu de prazer. Soltei a cabeça no chão e depois pisei em cima, esmagando completamente os miolos do maior chefe de tráfico de escravos.
Mas não foi o suficiente, e antes que os dois guardas se virassem na minha direção, eu já estava entre os dois. Com o impulso que dei, foi fácil atravessar ambas caixas toráxicas com as mãos nuas. Um passo para trás e seus corações estavam pingando sangue enquanto pulsavam fora de seus corpos.
— Ma-ra-vi-lho-so!
Shiduu estava certa quando disse que a vida humana é uma coisa frágil, matar era fácil, o difícil era ter a coragem para tal ato. Mas naquele momento eu não tinha motivo para deixar sequer um vivo. Meu desejo de matar era o que me guiava pelos corredores da mansão.
Tudo que se movia e tinha aparencia humana era um alvo em potencial. Aos meus olhos eram apenas bonecos que mereciam ter suas partes separadas. Eles eram frutos podres que precisavam ser extirpados da face da terra, e eu era o ceifeiro.
Usando o Rancor, não para criar armas, mas para aumentar a minha capacidade física. Em vez de manifestá-lo fora do corpo, eu apenas o usei dentro de mim para me deixar mais forte, mais rápido, mais resistente, e anular quase totalmente a sensação de dor.
Eu não pensava, nunca sequer tinha treinado para fazer aquilo, era mais como se o poder estivesse me usando. E eu estava gostando.
O caminho que percorri ficou marcado por uma trilha de corpos destroçados, sangue e vísceras espalhados, cabeças decepadas, membros retorcidos como roupa velha ou pano de chão, pedaços de vísceras e cérebros ficaram grudados em minhas roupas enquanto eu esmagava os crânios das minhas vítimas como se fossem de papel.
A gritaria que se instaurou pela mansão era música aos meus ouvidos. As pessoas correndo na minha frente tentando se salvar eram um tipo de balé fúnebre que alimentava o meu espírito. Todas aquelas mortes que meu poder causava pareciam tapar o buraco em minha alma, como se descontar o meu ódio nelas fizesse os meus traumas deixarem de existir.
A cada morte ficava mais difícil encontrar a próxima vítima, um jogo de gato e rato que eu adorei. Andando lentamente pelo corredor principal eu bucava que era o próximo que deveria morrer, até que o cheiro de medo me atraiu para o lado.
Atrás de um grande vaso de plantas estava uma mulher agarrada com uma criança, pela aparência deviam ser mãe e filho. Duas presas pelo preço de uma. Peguei o vaso com a mão esquerda e o arremessei longe. Levantei a mão direita e deixei o rancor se acumular.
A mulher se agarrou à criança em uma tentativa fútil de protegê-la, uma ação totalmente inútil. Ninguém pode ser protegido. Finii não foi protegida da escravidão. Brogo não foi protegido do traficante de escravos. Surii não foi protegida de uma vida de crimes. Aquelas crianças sem nome não foram protegidas de uma vida de escravidão. Eu não fui protegido… então todos deveriam morrer…
Senti algo prender minhas mãos, eram os chicotes negros do traficante, mas quando me virei para atacar meu oponente, vi que era Brogo quem estava me prendendo. Seu rosto deformado esboçava uma expressão de tristeza e dor, dos seus olhos sem pálpebras escorriam lágrimas.
— Pare… por favor… — Ela disse — Não seja como eles, nem pior…
Meu corpo tensionou, meu rancor se desfez, minhas pernas vacilaram. Só então me dei conta de que minhas ações estavam causado o sofrimento que tentei evitar, na minha tentativa de salvar vidas, eu as ceifei. Sem distinção, homens e mulheres, crianças e adultos, todos a quem eu encontrei pelo caminho estavam mortos.
Shiduu finalmente chegou, e vendo a mim, coberto de sangue fresco, e a quantidade de mortos espalhados pelos corredores, entrou em pânico, gritando:
— O QUE VOCÊ FEZ? MATOU ATÉ PESSOAS INOCENTES?
O choque da ralidade me feriu por dentro tanto quanto eu feri aquelas pessoas. Pior que o gosto amargo de vômito ainda preso em minha garganta era o gosto de podridão que parecia se impregnar a todo o meu corpo. Mais do que a sangue e suor, eu fedia a morte e desumanidade.
Eu me odiei, me recriminei por tal ato, excedi os meus limites, quebrei todas as possíveis expectativas que Miraa tinha em mim como filho, desonrei o Reino do Leste. Caindo no chão sem forças, senti meu estômago apertar, mas não havia mais nada que pudesse pôr para fora.
Fiquei lá, cercado de cadáveres, sujo de sangue, de cabeça baixa e boca aberta, saliva amarga escorrendo e pingando no chão. Minha consciência parecia se esvair, mas meu corpo insistia em permanecer rígido.
Eu me odiei.
Aquele foi o meu pior crime. Um pecado marcado na minha alma, que carregarei para a eternidade.
Um pecado que me perseguiria e me traria muita dor ainda.
Nota do Autor:
A você que chegou até aqui, meus agradecimentos. Espero que esteja gostando e continue lendo.