Volume 1
Capítulo 14: Segunda Página do Diário (1)
Fazia quase um ano que eu tinha chegado nesse mundo e estava vivendo na toca dos ratos, éramos 11 crianças órfãs ou abandonadas pelas famílias, vivendo por conta própria, por isso fazíamos o que fosse preciso para continuar sobrevivendo. Olho de peixe, como era chamado o nosso líder, era o mais velho e quem botava a ordem no local, ele me ensinou muita coisa.
Primeiramente: órfãos não tem nome nem sobrenome, apenas apelidos. Por isso começaram a me chamar de “Deco”, que no dialeto local significa algo como “desnutrido”, apesar de que eu não era a única criança desnutrida ali.
Segundo: ninguém se importa com órfãos, então teríamos que trabalhar. Mesmo que seja em situações de alto risco e sem nenhuma segurança, ou mesmo roubar para garantir que ninguém dormiria com fome, desde varrer quintais, carregar mercadorias, limpar estábulos, e até esvaziar latrinas, eu fiz no decorrer de um ano.
Terceiro: os mais velhos são responsáveis pela segurança dos mais novos. Como Olho de Peixe era um ano e meio mais velho que eu, ele era o líder, depois dele tinha uma menina, chamada Flor de Pedra, ela era chamada assim por que sua família tinha lhe abandonado em um local árido, onde cresciam apenas uma espécie de planta com o mesmo nome. Eu era o terceiro mais velho, e ajudava nosso líder a conseguir alimentos, enquanto Flor de Pedra cuidava dos mais novos.
Quarto: quando um dos ratos, ou seja, um de nós fizesse 14 anos, se fosse menino, ou 15 se fosse menina, iria em busca de uma vida melhor, e o segundo na hierarquia assumiria o posto de líder. Geralmente os meninos buscavam entrar no exército, em algum grupo de aventureiros ou de bandidos, até mesmo tentavam entrar em algum monastério visando os benefícios da carreira religiosa, enquanto as meninas, optavam por serem empregadas domésticas em casas de pessoas mais abastadas, ou até se submetiam a serem concubinas de homens ricos ou prostitutas, embora houvessem relatos de algumas que conseguiram se juntar a grupos de aventureiros também.
Não era um bom destino para ninguém, pelo menos eram poucos os relatos de alguém que saiu da toca dos ratos e se tornou alguém de sucesso. No último ano, tivemos apenas a visita de 3 antigos moradores, um soldado que havia sido um dos ratos e saído há 5 anos, e que vinha visitar o seu antigo lar anualmente, trazia sempre roupas, cobertores, comida, e algumas moedas, aquele era um dia de festa. Uma empregada que trabalhava para um nobre, ela vinha mensalmente trazer restos de comida e lenha, e um ajudante do templo, que trazia remédios, duas vezes por ano, impedindo que as crianças morressem por doenças de baixa periculosidade.
Quando conseguíamos algo bom, tentávamos fazer com que aquilo rendesse ao máximo, era difícil saber quando conseguiríamos novamente, os mais novos por serem mais vulneráveis deveriam sempre comer a melhor parte da comida, eu já até tinha me acostumado a comer restos de pão mofado que era descartado no lixo da padaria, eu os recolhia quando voltava de algum trabalho que Olho de Peixe conseguia para nós.
Além de Olho de Peixe e eu, também tinha outras duas crianças que faziam o trabalho pesado, eram Caniço, um menino magro que seguia a gente para onde fôssemos, e Lilás, uma menina com os olhos e cabelos coloridos da mesma cor que seu nome, que ajudava Flor de Pedra nas tarefas de casa, Lilás seria a responsável pelas crianças em breve, já que em poucas semanas, Olho de Peixe faria 14, e iria em busca de se juntar a um grupo de aventureiros. Flor de Pedra ficaria no comando por cerca de um ano, e eu faria 14 mais ou menos na mesma época em que ela faria 15, então ficaria com Lilás a tarefa de cuidar das crianças mais novas pelos próximos três anos.
Apesar de não ser a vida dos sonhos de ninguém, estávamos satisfeitos com o que tínhamos, todos acreditavam que era uma situação temporária, mas eu nem mesmo tinha pensado no que faria quando chegasse a minha hora de sair, até mesmo havia me esquecido da forma que cheguei aqui, e como não lembrava de nada de antes de chegar, era como se não faltasse nada, estava perfeito.
Mas eu não tinha me esquecido da promessa daquela menina, Zita… Me levar para algum lugar… Será que ela toparia levar os outros ratos?
Um dia ao chegar de um trabalho extremamente nojento e desgastante, vi a toca dos ratos cercada por soldados do castelo, eu sabia quem eram porque sempre os via desfilando com suas armaduras brilhantes, capas coloridas, montados em cavalos lindíssimos. Havia até uma carruagem parada ali, próximo ao amontoado de madeira e pedra que chamávamos de lar.
Não era comum soldados desse nível por aqui, eles geralmente ficavam passeando em torno do castelo e pelas áreas nobres, nas áreas mais pobres os soldados responsáveis pela patrulha usavam couraças com fechos de metal, mas andavam a pé, e no subúrbio apenas alguns poucos mercenários andavam, sem armadura, apenas com armas velhas, extorquindo as pessoas, eram mais um bando de bêbados do que soldados. Então o que exatamente os soldados do castelo estavam fazendo na toca dos ratos?
Caminhei lentamente por entre os cavaleiros de armadura que estavam enfileirados na entrada, por mais que eu estivesse muito nervoso, andava devagar para que as minhas pernas trêmulas não me fizessem cair.
Ao passar pela porta notei todos os olhares se voltarem para mim, além de todas as crianças que moravam na toca, haviam duas outras figuras, em pé, um cavaleiro com uma armadura reluzente e capa azul celeste, e uma garota que usava um belíssimo vestido rosa decorado com cristais, ela estava sentada graciosamente na única cadeira que tínhamos.
Eu parei dois passos após passar pela porta enquanto tentava entender o que acontecia, até que reconheci, era Zita, a menina que eu conheci no dia em que chegamos, ela veio cumprir a promessa…
— Olá André! — Disse ela sorrindo.
Eu não consegui responder, apenas sorri, ela realmente lembrou do que tinha me prometido, apesar de que eu nem mesmo lembrava o seu rosto.
— Eu vim lhe fazer um convite — Zita continuou — Em cinco dias fará um ano da nossa chegada, e o palácio fará uma festa para comemorar, alguns até mesmo irão se despedir, eles vão treinar suas habilidades em outros lugares mais apropriados…
Eu continuava em silêncio, apenas parado, sorrindo… Ela se levantou e deu dois passos à frente, estendeu o braço em minha direção, abriu a mão com a palma para cima e sorriu.
— Eu serei uma dos que vão se mudar, então não sei quando poderemos nos ver, mas te garanto, cumprirei minha promessa, só espere até que eu esteja poderosa o suficiente!
No mesmo instante, labaredas começaram a surgir na palma da sua mão iluminando toda a sala, eu não fui u único a ficar maravilhado com aquilo, ela tinha poderes, poderes de verdade, conseguia fazer fogo com as mãos, e não se queimava…
— Que lindo! — Exclamou Lilás.
A chama foi lentamente diminuindo, até que Zita fechou a mão, extinguindo totalmente a fonte de luz e calor do ambiente. No mesmo instante ela continuou falando.
— Então, eu queria te convidar para a festa, não precisa se preocupar com nada, conseguirei roupas e transporte para você…
Eu estava muito feliz, apenas sorri e concordei com a cabeça. Se ocorresse tudo certo eu ainda conseguiria trazer comidas deliciosas para os outros.
— Infelizmente… — Zita olhou para os demais — Não posso estender meu convite a todos, só tenho autorização para levar uma pessoa para dentro do castelo.
— Tudo bem! — Respondeu Flor de Pedra — Um de nós participar de uma festa já é o suficiente…
Por mais que eu quisesse levar todos, eu deveria agradecer pela oportunidade de conseguir comida para todos, e as comidas do castelo deveriam ser deliciosas…
— Se é assim, então me despeço, em cinco dias alguém virá busca-lo, vou esperar por você.
Após isso, Zita fez menção de me abraçar, mas eu recuei, evitando-a, quando ela chegou mais perto entendeu o significado, eu tinha passado o dia inteiro limpando uma latrina e o meu cheiro não estava muito agradável. Então ela recuou um pouco, pegou os dois lados do vestido, pôs um pé frente ao outro e baixou a cabeça, era uma saudação feita comumente pelas jovens de classe, em nem sabia como responder, apenas saí da frente da porta para que ela e o cavaleiro saíssem.
Enquanto saíam, em direção à carruagem, eu fiquei na porta olhando, ainda em silêncio, os outro se apertavam para ver a saída da nossa ilustre visitante, e enquanto a carruagem se dirigia para o castelo, Zita acenou algumas vezes se despedindo.
— Você é mesmo um mal-educado! — Gritou Flor de Pedra — Não deu uma resposta sequer! Ficou apenas em silêncio!
Eu cuspi três moedas de cobre bem no meio da sala, limpei o canto da boca e respondi:
— Seria estranho alguém com boca cheia de moedas na frente de um cavaleiro real! Não precisa de muito para pensarem que sou um ladrão…
Puxei mais duas moedas do bolso e joguei próximo à três primeiras.
— Então essa foi a solução que encontrou para se livrar das extorsões da patrulha do bairro? — Riu Olho de Peixe, que vinha entrando.
Como em vezes anteriores tínhamos sido abordados por mercenários bêbados que extorquiram todo o nosso pouco dinheiro, eu tive a ideia de esconder, uma parte das modas na boca, se fosse preciso eu até engoliria, depois era só tomar muita água até vomitar. Mas se eu tirasse as moedas da boca, ou até mesmo tentasse engoli-las frente à um cavaleiro real, ele poderia achar que eu estava roubando.
Enfim, tudo tinha dado certo, eu consegui manter minha pele e as moedas a salvo, e ainda havia sido convidado para uma festa no castelo. E como a festa era em 5 dias, ainda dava de limpar muita latrina.