Zebra Brasileira

Tradução: Zeugma

Revisão: Zeugma


Volume 1

Capítulo 6: Família

Os pássaros cantando já anunciavam o amanhecer de um novo dia, enquanto sons metálicos e o arrastar de objetos ecoavam pelos corredores estreitos do apartamento dos irmãos.

Ícaro montava uma mochila com itens básicos — alimentos, carregadores, mudas de roupa e documentos. Já Rafa enchia uma pequena mala com brinquedos, peças de suas invenções e cadernos de desenho e anotações.

— Rafa, já terminou de arrumar suas coisas?
Ainda nãooo… Que droga, por que temos que sair assim de repente, mano?
— Eu já disse, vamos ver o tio Ricardo.
— Eu sei, mas por que levar tanta coisa?
— Porque não vamos voltar pra casa por um tempo…
Por quê?! — o grito desafinado ecoou pelo quarto.
— Eu te explico depois. Só termina de se arrumar.

O tempo passou e, enfim, juntaram tudo o que precisavam — e podiam — e se encontraram diante da porta do apartamento.
Com o coração apertado, olharam uma última vez para trás e partiram. Ícaro sabia que, dependendo do que acontecesse, talvez jamais voltassem ali.

Enquanto desciam as escadas, alguns vizinhos subiam e fofocavam:

— Você ouviu que o segurança tá no hospital? Parece que ele passou mal durante a noite, menina!
— Não acredito… O Arthurzinho? Coitado… Deve ter comido algo estragado.

Ao se cruzarem nas escadas, apenas se cumprimentaram com um leve aceno de cabeça. Ícaro desviou o olhar ao ouvir o nome do segurança, lembrando do dia anterior. Já as mulheres encaravam as malas com estranheza, mas engoliram suas perguntas.

Ao chegar ao térreo, viram o esperado: a guarita estava vazia. Ícaro puxou a manga da camisa para baixo e apressou o passo, puxando Rafa junto.

Vamos, Rafa, o ônibus já vai passar — disse, tentando disfarçar a ansiedade.

Sentados na parada, Rafa bocejava enquanto caía de sono no ombro do irmão, babando um pouco sobre ele.

— Não dormiu direito esta noite? — perguntou Ícaro.
— Não… é que saiu um capítulo novo do Homem Corvo, e eu queria comentar com meu amigo… — respondeu, entre bocejos.
— Ah, entendi. É bom que você esteja fazendo novos amigos.
— É, eu acho…

Rafa adormeceu no ombro de Ícaro.
Dorminhoco mesmo… — comentou ele, sorrindo de leve.

Ao entrar no ônibus, Ícaro tomou cuidado para não acordá-lo, mantendo-o abraçado no colo. Enquanto o veículo seguia pelas ruas, seus batimentos aumentavam de forma constante. A incerteza do futuro ocupava seus pensamentos.

Algumas horas depois...

— Ei, Rafa, acorda! Já estamos chegando na casa do tio.
Ah, eu dormi?! — murmurou, com o rosto amassado e o nariz escorrendo.
— Parecia um bebezinho…
— Eu não sou mais criança! — bufou, limpando o rosto.
— Sim, senhor! Mas agora vê se desce e anda, porque já tá pesadinho.
Eu não sou pesado, não… — respondeu, franzindo a testa.

De mãos dadas, seguiram juntos até o destino: a casa de seu tio Ricardo.

O sol já estava alto, os pés doíam e a fome começava a apertar. Após uma longa caminhada, chegaram ao endereço.

— Faz tempo que não vejo o tio… será que ele ainda lembra de mim? — perguntou Rafa, ansioso.
— Se bem me lembro, da última vez que nos vimos você ainda usava fralda — comentou Ícaro, com um sorriso de canto.
Mentira! Eu já parei de usar faz tempo…
— Eu sei, eu sei. Tenho certeza de que ele lembra de você. Ele te adora.
— No meu aniversário de oito anos ele me deu um boneco de pelúcia do Homem Corvo! Espero que não fique bravo porque eu perdi…
— Ele vai entender. — Ícaro bagunçou o cabelo de Rafa. — Vamos logo, tô morrendo de fome!

Os dois se aproximaram da porta.

Toc, toc, toc...

— Será que ele não tá em casa? — sussurrou Rafa.

Toc, toc, toc.

Já tô indo! — respondeu uma voz ao longe.

Ícaro e Rafa se entreolharam, sorridentes.

O som de passos apressados se aproximou e a porta se abriu, revelando um homem alto, de barba curta e falhada, cabelos parcialmente grisalhos e óculos retangulares. Vestia uma camisa social listrada e, na boca, um cigarro pela metade.

Ao ver os dois, seus olhos — antes serenos e um tanto sem vida — brilharam. Antes que percebessem, ele já havia pegado Rafa nos braços e o erguido no ar.

Cadê meu menino corvo?!
Hahaha! Tio! — ria Rafa, girando no ar.
— E aí, tio — disse Ícaro, envergonhado.
— Há quanto tempo não vejo meus meninos! Ao que devo essa honra? — perguntou, colocando Rafa no chão.
— O mano quer falar com você! — disse Rafa, alegre.
Hmmm... — Ricardo coçou a barba. — E o que esse rapaz quer com um velho como eu?
É…
— Bom, seja o que for, vocês devem estar com fome. Entrem! Vou preparar algo pra vocês.
— Simmm! — gritou Rafa, correndo para dentro.
— Tudo bem, então… — Ícaro entrou e fechou a porta.

A casa de Ricardo era modesta, construída há décadas pela família. A madeira antiga rangia sob os passos, e o ar tinha cheiro de poeira e café. Fotos antigas cobriam as paredes — entre elas, duas chamavam atenção: rostos idênticos, seu pai e o tio, sorrindo como se o tempo nunca tivesse passado.

Ao ver o rosto do pai, Ícaro estremeceu. Seu olhar não conseguia se afastar da imagem daquele que mais respeitara. A voz do homem que moldou seu caráter ecoava em sua mente, trazendo lembranças dos bons momentos juntos.

— Pode ficar à vontade, Ícaro. Deixa suas coisas em qualquer canto e senta aí, você parece cansado.
Ah, s-sim… valeu, tio.

Os irmãos deixaram os pertences num canto da sala e se sentaram no sofá próximo à mesa de jantar.

— Ei, Rafinha, quer brincar um pouco antes de comer? Ainda tenho uns brinquedos de quando eu e seu pai éramos pequenos. Deve ter algo que você goste!
— Sim!

Rafa e Ricardo foram até outro cômodo, enquanto Ícaro permanecia olhando as fotos. Seus pés batiam no chão no mesmo ritmo do coração acelerado. Os estalos dos dedos eram o único som que quebrava o silêncio.

Pouco depois, Ricardo retornou e se sentou em frente a ele. Tragou o cigarro devagar, o olhar firme — o mesmo olhar do pai de Ícaro.

— Então... vai me contar o que aconteceu?
— Tio… aconteceu uma coisa.
— Imaginei — respondeu Ricardo, olhando pela janela. — Você tá com o mesmo olhar do seu pai quando fazia besteira grande.
É… dessa vez é bem sério.
— Bom... — ele apagou o cigarro no cinzeiro, suspirando. — Então, vamos ter nossa primeira conversa de adultos.

Os olhos de Ícaro se fixaram em Ricardo. Era impossível não ver o pai ali — afinal, eram quase idênticos.

Eu… — engoliu seco — preciso da sua ajuda. Preciso que me ajude a encontrar um morador de rua.
— Um morador de rua? — Ricardo arqueou as sobrancelhas.
— Sim. Você é zelador, deve conhecer gente que possa ajudar. Eu posso desenhar o rosto de—
— Espera, Ícaro — interrompeu. — Por que você quer encontrar essa pessoa?
— Não posso dizer... — desviou o olhar.
— Ícaro, se você não me contar, não posso te ajudar.
— Eu sei, mas… não dá.

O silêncio tomou conta da sala por alguns instantes. Então, Ricardo quebrou-o de repente:

Me mostra o braço. — Sua expressão ficou séria.
— O quê? P-por quê? — Ícaro se levantou, nervoso.
— Me mostra, Ícaro.
— Acho que mudei de ideia, vou chamar o Raf—

Antes que terminasse, Ricardo se aproximou e agarrou seu braço com força, puxando a manga. O número em seu antebraço brilhou por um instante: 21.

Ícaro rapidamente puxou o braço de volta, cobrindo-o.
— N-não é o que você tá pensando! Me escuta, tio, por favor!
— Eu suspeitava... — disse Ricardo, acendendo outro cigarro e sentando-se novamente.
O quê?
— Quando você chegou, seus olhos entregaram tudo. Você tá tomado pela culpa e pela incerteza. Eu conheço bem esse olhar — afinal, vejo ele todos os dias no espelho. Senta aí.

Ícaro obedeceu, ainda receoso.

— Escuta, Ícaro, o que eu vou te dizer agora é algo que a PAZ — não, o governo inteiro — tenta encobrir. — Ele tragou o cigarro. — Você já ouviu falar de Azar Espontâneo?
— Azar espontâneo? Nunca ouvi.
— É algo que ouvi de outros zeladores há alguns meses. Mas todos que falaram sobre isso foram visitados por agentes da ARCHADEA... e nunca mais abriram a boca.
— A ARCHADEA?! Mas por que eles se envolveriam com zeladores? Não são uma empresa de tecnologia medicinal e inteligência artificial?
— Tem muita coisa que você não faz ideia, garoto.

Ricardo se levantou e começou a fechar as janelas.

— O que vou te contar já levou muita gente pro caixão. Eu não queria te envolver nisso, mas agora já é tarde — disse, lançando um olhar rápido para o braço de Ícaro. — Você lembra quando comecei a trabalhar como zelador?
— Sim, foi quando meu pai morreu…
— E lembra o motivo que eu te dei pra isso?
— Se não me engano, foi pra continuar o legado dele — respondeu, coçando a cabeça.
— Isso foi só fachada. Meu objetivo sempre foi entender como meu irmão morreu.
— Mas ele morreu por causa de um dos moradores de rua que cuidava! O homem se suicidou num atentado… o que mais há pra descobrir? — Ícaro respondeu, incomodado.
— Isso é o que a PAZ contou a todos. Mas eu conhecia meu irmão — ele nunca deixaria algo assim acontecer debaixo do próprio nariz.
— Tá dizendo que o homem que matou meus pais…
— Não foi o único culpado. — Ricardo o interrompeu.

As palavras ecoaram dentro de Ícaro como um choque. Algo que sempre estivera à sua frente, mas que ele nunca percebeu.

— Você lembra do que falei sobre o Azar Espontâneo? Eu acho que foi isso que aconteceu com o assassino do seu pai e da sua mãe.
— Não… como assim? — Ícaro começou a tremer.
— Calma. Respira e continua me ouvindo.
T-tá… continua.
— Depois que entrei na PROTEGE como zelador, tentei fazer contatos e descobrir o máximo possível sobre os bastidores do sistema. Foi assim que ouvi falar desse fenômeno. Pessoas comuns se tornando zebradas do dia pra noite, sem motivo aparente.
— Isso foi o que aconteceu comigo — murmurou Ícaro, olhando o próprio braço, pálido.
— Imaginei. E você acha que esse morador de rua é o responsável?
— Não tenho certeza, mas... espera. Agora que você falou isso…

Ícaro olhou atentamente para a própria mão, aproximando-a do rosto. E então viu — quase imperceptível — uma pequena ferida circular, perfeita demais para ser natural. Exatamente igual à de Nataniel.

Não… não pode ser. — Ícaro se levantou bruscamente, tropeçando e caindo no chão.
— O que foi, Ícaro? — perguntou Ricardo, aproximando-se.
— É igual à dele… essa marca.
— Que marca? Não vejo nada.
— É pequena, quase invisível. Mas tem uma ferida na minha mão, igual à que vi no pescoço de um dos moradores do prédio em que eu trabalhava, antes dele morrer por ser um PC…
— Entendo… esse morador de rua tocou em vocês dois então, presumo.
— No Nataniel eu não sei, mas ele agarrou minha mão com força. Eu nem senti nada diferente… como ele fez isso?!
— Por enquanto o método não importa — disse Ricardo, tragando fundo. — O que importa é que o termo Azar Espontâneo está errado. Existe alguém capaz de transferir azar de forma arbitrária.


Ele olhou diretamente para Ícaro.


— E essa pessoa... deve ter sido a responsável pela morte dos seus pais.

 

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