Volume Único
Capítulo 1: Stolgiforme

Era uma noite de lua nova.
Ele estava deitado na grama alta, encarando o céu estrelado. Mas não se mantinha parado por escolha própria, o rapaz estava confortável demais naquela grama para tentar sair. Tudo o que o observador fazia era observar aquela penumbra celeste cheia de pontos grotescos e brilhantes. E no canto do seu olho, enxergou um ponto ainda mais grotesco e ainda mais brilhante, afastado das outras e, ainda assim, cintilando.
O observador de pássaros sou eu.
Não é a primeira vez que sou incapaz de me levantar da clareira para escapar do tormento de observar — apesar de ser minha função. E mesmo assim, uso do pouco esforço que ainda me resta para mover o pescoço. Preciso ver o que há nos meus arredores. Queria que aparecesse alguma ave que me justificasse ali.
Talvez um stolgiforme.
Por um instante, pareceu que aquela solitária emitiu um brilho laranja, talvez como uma forma de me chamar atenção para o monstro que se aproximou pela escuridão sem emitir som. Infelizmente, assim que tentei correr, meus pés deslizaram sobre a grama como em um um congelado. Foi quando olhei para aqueles olhos. Olhos escuros, profundos e, de certa forma, infinitos.
Um mar negro de brilhos convidativos.
Gritei, esperneei e chutei — meu peito retumbando tal como um tambor. O monstro se aproximou. Ele estava coberto de uma plumagem cinza e marrom, suas patas tinham três dedos cada uma e eram finíssimas, apesar de longas, maiores que o tamanho de seu torso. Suas asas, quando abertas, faziam o vento mudar de direção, e seu bico, na escuridão da noite, parecia mais um sorriso. Quando enfim deitei a mão na frente da boca, ele grasnou ao ponto de fazer meus tímpanos sangrarem. E quando me vi sem escapatória…
O observador de pássaros acordou.
Vilarejo da Solha das pedras, no condado de Dourado Marinho. Só mais um dia acordando fora da minha cama. E como de costume, estava suando frio e tremelicando de forma patética. Desta vez, não acordei por conta do pesadelo e, sim, pelo alvoroço ornítico no andar de baixo. “Provavelmente eles estão com fome”, pensei. Do jeito que meus companheiros estavam, não me dariam o luxo de apanhar um casaco primeiro.
Sem mais delongas, desci as escadas do moinho até a sala do andar principal. Como mencionado anteriormente, eu, o observador de pássaros, vivo de forma humilde. Minha sala não era grande coisa; tinha uma mesa de jantar repleta de gaiolas e potes em um canto com algumas cadeiras; em minha esquerda, uma poltrona de leitura reclinada na frente da janela e ao lado da escada, uma estante de livros adjacente a uma mesa de escrita. Minha cozinha, se é que posso chamá-la assim, apenas um caldeirão cercado por cortinas improvisadas e um calço para evitar que meus companheiros se machuquem.
E falando neles, são as criaturinhas pequenas e amedrontadas encolhidas na poltrona, olhando fixamente para a estante enquanto tremem e gritam como se fosse o fim do mundo. São eles: Martin Jr., a cacatua; Marx, o corvo; Weber, o papagaio-de-bico-largo; Durkheim, o noitibó-orelhudo e Bourdieu, o pombo-branco. Apesar do trabalho constante que me dão, são impagáveis. O que fazer se não me atentar ao que os incomoda?
Olhando com um pouco de atenção, notei um livro fora do lugar, e quando me abaixei para pô-lo no lugar, vi as marcas de dente no pé da estante.
“O maldito rato se escondeu aqui dentro de novo…”
E, de novo, deve ter sido coisa do maldito gato da vizinha. Um gato gordo com uma coleirinha azul que de tão mimado não consegue nem pegar um simples roedor. Só mais motivos para eu reclamar com aquela mulher… mas de que adiantaria? Ela nem acreditou quando eu avisei que mataria o bichano se ele devorasse mais uma das minhas codornas. “Bom, talvez eu tenha uma certa culpa por ele ser tão gordo.”
Quem eu quero enganar? Eu não faria mal ao animal, mesmo que quisesse muito. De todo jeito, tive que varrer o chão e arrumar algo para distrair meus pássaros do fedor de rato impregnando minha sala. Garanti de limpar meu chão de tábuas velhas, jogando a poeira para dentro das rachaduras com o resto da terra e sujeira. Com isso fora do caminho, apanhei meu equipamento e fui com meus companheiros para um passeio no bosque. Sei que um ovo cozido não os acalmaria por completo, então recorri a um costume nosso.
Assim que abri a porta do moinho, meus colegas saltaram para cima dos meus ombros, enfileirando-se como em um galho. E logo fui apontado pela virada de pescoço confusa de Marx que tinha algo de errado. Seguindo seu bico astuto, percebi que se tratava da minha horta. Mais uma vez, não era grande coisa, apenas complementos para minha comida visto que observador de pássaros não possuiria os meios necessários para ter o que chamam de uma vida longe da fome. Haviam plantas que encontrei selvagens em minhas caminhadas. Só mais um dos pontos positivos de explorar os arredores. Infelizmente, com a chegada do outono, minha colheita havia se enfraquecido. O que não foi putrefeito por conta do clima frio parou de crescer e mofou.
Do jeito que minha sorte tem estado, talvez este inverno seja mais um onde passarei por dificuldades. Solha das pedras não possui um agronegócio extenso, o que temos é para consumo local. E o que não pode ser consumido no outono é importado do condado vizinho, Badejo. Ou seja, extremamente caro. Não é para o meu… bico. Meus mantimentos de longe eram suficientes para alimentar minhas aves e a mim. De qualquer forma, posicionei minha bengala e enrolei meu cachecol para aquecer meus companheiros e me joguei na mata.
O caminho da montanha já fora mais belo, com mais verde, mais animais curiosos e mais um sentimento de vida. Hoje em dia, todo esse cinza e fuligem é apenas um reflexo oco de uma glória passada. Entretanto, isso não se dá apenas pela estação onde as folhas caem — só acentua a aparência medonha desse lugar.
“Não… Isso é tudo culpa das pessoinhas ignorantes que tenho o desprazer de coabitar nesse vilarejo.”
Veja bem, meu moinho é afastado do centro, beirando os limites territoriais, então não necessariamente coabito, mas sou obrigado a vê-los dia sim, dia não. E são essas pessoas que deveriam assumir a culpa pela destruição do meu bosque. Há alguns meses, me lembro bem: duas viajantes passaram por Solha das Pedras, se perderam na mata e quando um membro da igreja foi procurar, voltou clamando intervenção divina contra o demônio que faz das árvores seu baluarte. Depois disso, Imperador, o vilarejo no condado vizinho, enviou paladinos para guardar todo o perímetro e instaurou uma inquisição contra a floresta. Nunca ouvi tolice maior.
“Demônios? Na minha floresta? Me poupe.”
Vago por essas árvores há tantos anos que é como se tivesse nascido nelas. Com certeza teria encontrado algum acontecimento paranormal ou profano em meus passeios. Dito isso, a solução que a igreja encontrou para descercar a floresta do vilarejo foi começar incêndios controlados.
O que os tolos não perceberam ainda é que isso não afastou demônio nenhum, só a flora local. Tornaram meu trabalho ainda mais difícil, mas por que se preocupar com a dor do próximo? Pimentão no bico dos outros é refresco.
De qualquer forma, não consegui encontrar nenhuma ave ou inseto até o ponto onde subi na colina. Não eram só as zonas afetadas pelas queimadas, a fuligem também afastou os animais. Sem outra opção, tive que chegar até um ponto mais íngreme. Tinha um bom panorama do topo das árvores do outro lado da floresta — e, consequentemente, também da fumaça. Consigo ouvir o canto das aves. Nessa estação, a maioria está estocando comida ou migrando para um lugar mais quente e favorável às suas necessidades, contudo, eu esperava ter a sorte de poder catalogar pelo menos uma até a chegada do inverno.
Com minha luneta em mãos e o caderno aberto em meu colo, deixei meus companheiros vasculharem os arredores em busca de algum material de estudo. Pensei que seria mais um dia de má sorte devido à neblina obstruindo a visão do céu, mas abri um sorriso largo e apanhei meu lápis de carvão para rabiscar freneticamente em uma das páginas.
— Olha aqui, Durkheim — disse, e meu companheiro alado olhou para cima. Apontei num amontoado volumoso e branco cortando o nevoeiro. — Ali tem noitibós-de-nuvem. São tipo primos seus, sabia?
Como esperado, ele não reagiu. Os outros estavam ciscando por aí, e como não se meteram em nenhuma confusão até então, decidi tirar um momento para focar em minhas anotações:
“Noitibós-de-nuvem, uma espécie celestial de pássaros. Medem quase 16 vezes o tamanho de suas contrapartes mais comuns, e surpreendentemente, têm uma habilidade de voo igual, senão melhor. Seguem o ciclo migratório das chuvas, ou seja, partem durante tempos mais secos como o verão e o outono, mas retornam durante a primavera e o inverno. De fato um dos mais esbeltos pássaros de grande porte que temos em Solha das pedras.”
Mais à direita, numa segunda instância, notei uma ninhada de bolotões celestes. A maioria das pessoas nunca prestam atenção neles, muito pelo fato de serem quase imperceptíveis se olhados de relance. São como bolas de pelo enormes ,contudo, me abstenho de falar mais sobre por não serem da minha perícia.
Enquanto escrevia em meu caderno mais algumas anotações sobre o clima e o voo dos meus objetos de estudo, minha atenção voltou ao papagaio. Ele pareceu querer me contar algo.
— O que você tem aí, Weber? — pergunto, ao que ele me responde apenas com uma virada de pescoço, tendo um galho disforme em seu bico.
Agora, encarecidos entusiastas, peço que adquiram essa característica quanto antes se buscam seguir o meu ofício. Entendam, pois nem tudo é verdadeiramente o que parece ser. Há certas coisas, especialmente na natureza, que quando dadas a devida atenção, se mostram totalmente diferentes do que eram inicialmente.
Apanho cuidadosamente o graveto de meu assistente e o examino. Talvez tocando em uma bifurcação específica ou em uma dobra e…. voilà. O graveto começou a se remexer de um lado para o outro com suas patas e antenas. Seu disfarce não passava de uma habilidade genética feita para se misturar com o ambiente. Infelizmente para o bicho-pau, ele também era uma ótima fonte de proteína. O parti em dois com respeito e dou os pedaços de recompensa à Weber.
Ao olhar a minha frente para verificar os outros, o susto repentino me levou ao chão. Meu coração disparou em pânico e da minha boca escapou um som vergonhoso. Tudo isso por culpa do par de olhos vermelhos e cintilantes, com um bico avantajado e pontudo que, de canto de olho, lembraria um sorriso macabro… Foi só eu me levantar e acalmar meu peito para entender que apenas se tratava de uma borboleta-coruja.
“Inseto maldito, não me assuste assim! Vou te transformar em petisco…”
Para os interessados no ofício, tenham em mente que a interação com animais, nojentos ou não, é quase inevitável. Um coração forte para esse tipo de coisa é indispensável.
Então um estrondo balançou a montanha. Olhei para o mar de nuvens acima da minha cabeça e senti o cheiro da fumaça se erguendo de um ponto mais ao leste do vilarejo, mas não foi esse o motivo. Procurei mais atentamente e, entre a neblina, senti os pelos nos meus braços se arrepiarem. Quase não pude acreditar, uma raridade das maiores. Rasgou os céus a uma velocidade abismal, ultrapassando os mil quilômetros por hora. Parecia um canário gigante, de crista alongada e garras pretas. Quando deu um rasante, formou-se um anel atrás de si, liberando uma onda estática que dobrou o ar ao redor.
— Impossível…. um pássaro trovão!
Nunca pensei que veria um. Rabisquei o mais rápido que consegui para preservar a memória fresca do evento mítico, só que logo percebi também que meus colegas de campo estavam… incomodados, para dizer o mínimo. Marx era o mais inquieto, grasnando de forma irritante em meu ouvido na tentativa de me fazer sair dali de uma vez.
— Mas o que houve? Já estão com fome?
O que meu caro colega estava tentando me alertar fora algo que não considerei por estar tão eufórico com o vislumbre de tal espécime. Encaixei minha luneta no olho e enfim reparei que era tarde demais. O ar vibrou a minha volta, os animais da floresta mais ao topo correram e alvoroçaram em pânico, e um feixe de luz ofuscante tomou minha visão. Nem sei o que passou pela minha cabeça para que eu tenha me esquecido do óbvio: pássaros trovão andam em bando. Ali perto havia pelo menos 12 deles, cada um avançando atrás do primeiro em uma formação em V. E na retaguarda veio a ressalva de lampejos, acertando o solo antes mesmo do som do impacto chegar em meus ouvidos.
— Merda, merda…. — Reuni minhas coisas para debandar dali rápido, mas não consegui ignorar as garras de Weber me puxando os cabelos. E depois Martin, puxando meu braço direito, e então Durkheim, o esquerdo e assim por diante, até que eu olhei para cima.
A junção de fuligem ascendendo aos céus, neblina e energia estática tão próximas umas das outras provocaram uma reação agravante à atividade das cumulonimbus, ou, nos termos mais comuns: uma garoa.
“Droga, onde deixei minha bengala? Esquece, sem tempo para isso.”
Uma chuva me mataria nas minhas condições atuais, e não gosto nem de imaginar o que aconteceria se eu me perdesse dentro da mata… De todo modo, assobio para chamar meus colegas e acelero colina abaixo.
Talvez pela adrenalina ou então pelo coração taquicárdico, mas tive a impressão de ter escutado um bater de asas extra. Muito mais baixo que o de uma ave normal, mas ainda assim… nada. Não foi nada.
O céu escureceu, as árvores balançaram de um lado para o outro e o vento rugiu como uma fera. Em instantes, uma tempestade torrencial caiu em minha cabeça. Tive que proteger minhas aves dentro da roupa para que elas não saíssem voando.
— Droga, cadê a trilha?! Estava bem aqui!
Continuei cambaleando no caminho durante algum tempo. Tinha de encontrar alguma pista, qualquer lembrete visual de onde eu estou, o que não demorou muito. Por mais que eu odiasse essa rota, ainda era melhor do que ficar perdido na chuva. O cemitério. Não é usado há bastante tempo, então não tem tido manutenção. Sei que seguindo ao sul toda vida eu estaria perto do riacho e, mais em cima, o moinho. Reluto, porém, firmei na lógica e chutei o portão de metal. De novo, ouvi aquele bater de asas mais lento, o que me paralisou ali mesmo para contar quantos bicos tenho comigo.
— Um, dois, cinco… todos aqui.
A adrenalina se perdeu, meus medos atenuaram e pude enfim respirar fundo. Não sabia nem que horas eram.
O pior já tinha passado, só não podia olhar para o lado, olhar para a lápide. Para aquela lápide.
Ao meu redor o ar gelou e meu peito doeu, não sei se foi pela queda repentina de pressão ou outra coisa. E para variar, eu olhei... “Collins Paloma”, o nome inscrito. Por quantos anos mais esse nome vai me trazer essa melancolia? Deitei minha palma em cima do epitáfio já gasto pelo tempo, incapaz de esconder a tristeza em meu rosto. Dei mais um passo. O motivo de ainda estar ali, quem me inspirou quando ninguém mais entendia, quando todos chamaram de tolice. Você morreu antes mesmo de eu entender o quão importante você era.
De repente, Martin Jr., a cacatua, berrou de dentro das minhas roupas. Recentemente ele pegou minha mania de cantarolar Daisy bell. Sim, é tão irritante quanto dá para imaginar. Mas foi por esse grito repentino que não perco minha vida ali mesmo.
Olhei para trás, virando-me de frente para o resto do cemitério e quase caí mais uma vez. Em cima de uma delas, um pássaro medonho, de olhos esbugalhados e penetrantes, uma estatura abismal e, de algum jeito que não consigo descrever, desproporcional — tinha 1,30 de altura, mais ou menos, mas boa parte do seu tamanho vinha das patas finas e alongadas. Ele, ou melhor, aquilo estava com o pescoço esticado na minha direção e abriu o bico como se pronto para pegar um roedor distraído. Creio que o nome popular desta ave seja: coruja. Um nome que não extrai todo o sentimento de ver este pássaro de perto.
Não sei como não morri ali pelo susto, só sei que o golpeei com meu livro e saltei por cima dele. Após isso, passei pelo portão e subi o riacho até o moinho.
Quando cheguei, bati a porta com força atrás de mim. Isso assustou meus colegas o suficiente para voarem das minhas vestes, claramente frustrados e nervosos com todas essas desventuras de hoje.
Deixei que se acomodassem na sala e fui para a cozinha preparar o jantar. Antes, entretanto, passei na dispensa para alimentar minhas codornas no cercadinho suspenso. O plano inicial era fazer a comida, mas estava tão animado com tudo o que pude capturar naquele dia que corri para minha mesa de escrita para passar meus manuscritos para o meu diário.
“Sim, quando todos eles verem o trabalho da minha vida, vão entender que não era bobagem. Verão que eu não sou apenas um lunático por pássaros, verão que eu sou O lunático dos pássaros.”
Fiquei gargalhando em minha mesa até que de repente escutei algo curioso — e até mais raro do que um pássaro trovão! — uma batida na porta.
“Quem será que é? Eu não recebo visitas… garanti de deixar isso bem claro para eles.”
Pela forma como espancavam o cedro que protege minha residência da friagem, pareciam apressados.
— Já vai, já vai! — berrei para que essa interação social não resultasse em uma segunda na manhã seguinte com o carpinteiro e fui até a entrada para ver quem era.

— Demônio!
Tão rápido quanto abri, fechei.
“Sério? Aquela coisa me seguiu até em casa? Xô, xô… eu não quero visitas.”
Nem consegui pensar direito no que acabou de acontecer, só me sentei na frente da porta com os pensamentos em alvoroço. Barrei a entrada do possível demônio de penas que encontrei todo empapado do lado de fora e fiquei andando em círculos.
“Não é possível, será que os rumores eram reais? Havia mesmo um demônio na floresta? Será que eu o irritei? Será que… não. Num momento desses eu preciso pensar racionalmente, eu não sou que nem aquele reverendo covarde feito ovelha e nem como os lunáticos daquele vilarejo. Demônios não existem… não é?”
Quando espiei pela fresta, vi que a pobre ave estava a olhar para frente. Me senti culpado de fechar a porta com tanta força na cara dela, só que me escondi mais uma vez quando ela virou o pescoço na minha direção.
“Mas que droga… vá embora...”
Precisei de alguns minutos para me recompor. Eu sou um observador de pássaros, afinal! E do outro lado desta fina porta havia um pássaro pronto para ser observado. Não seria um rumor sem fundamentos que me impediria de ser um dos primeiros a catalogar corretamente uma coruja.
Hesitando, girei a maçaneta. Senti a friagem bater no meu rosto e meus dedos ficando molhados. Aquilo não tinha se movido um milímetro, e ainda estava ali, só me olhando.
— Boa noite? Em que posso ajudá-lo?
— Hoot.
— Está com frio?
— Hoot.
— Fome?
Acho que deu para entender.
O visitante me encarou por um tempo, virando ocasionalmente a cabeça em confusão quando eu tento me apresentar ou apontar para o vilarejo. E então ele deu um passo à frente, mas o barrei com meu pé. Infelizmente, isso só o fez fechar a cara mais ainda. Tenho certeza que pareci um coelho amedrontado, mas não seria prudente arriscar a integridade dos meus outros colegas… E eu estava morrendo de medo.
Eu perguntei se ele desejava entrar, ele corujou que sim em resposta. Eu balancei a cabeça em negação, ele em afirmação.
“Droga… ele é bom nisso.”
Sem opções, acabei cedendo e o deixando entrar. Porém, assim que o fiz, senti uma dor no peito e, ao ver o céu noturno, lembrei daquele pesadelo. Para piorar, pouco antes da coruja dar o primeiro passo para dentro de casa, tive a impressão de que ela estava sorrindo… Por tanto, sem pensar duas vezes, o interrompi novamente.
— Espera! Se você for um demônio, não vai poder entrar sem atender às minhas demandas.
Ele virou a cabeça.
— Primeiro: você não pode machucar a mim ou a meus pássaros de nenhum modo. Segundo: você vai precisar me deixar estudá-lo!
Perdurou-se um silêncio constrangedor entre mim e o visitante durante alguns longos segundos. Era tolice, não tinha como um animal selvagem me entender dessa forma, mas o stolgiforme deu sua resposta:
— Hoot.
“Acho que é bom o bastante.”
Com isso, ele virou meu novo colega de quarto junto dos outros. E uma vez que minha ansiedade cessou, fiquei eufórico como se tivesse presenciado uma revoada de pássaros legendários.
Corujas são raras, além de muito tímidas e pouco sociáveis com pessoas. O comum é que fujam no momento que um ser humano pise em algum lugar a alguns metros dela, sem contar que vivem num ecossistema muito específico. Mas não vou levantar meu ego desta vez, pois curiosamente, Solha das pedras é um dos poucos lugares no mundo onde há uma presença significativa dessas aves. Entretanto, as informações que falam a respeito delas são praticamente inexistentes. Em outras palavras, eu seria o primeiro a catalogar essas aves de rapina.
Assim que meu novo material de estudo entrou no campo de visão dos meus colegas, meu peito retomou a dor estranha, agora, forte a ponto de me fazer cair de joelhos. Olhando para a mesa, notei que os pássaros haviam se escondido. Sequer tinha percebido que eles pararam de cantar desde a batida na porta.
“Batida na porta? Como um pássaro poderia bater na porta?”
Ouvi o novato corujar mais uma vez, minha visão escureceu e meu corpo ruiu com fraqueza. Não é real, é só um sonho. É só um…
— Pruu, pruu — cantou Bourdieu, me lembrando que eu deveria ter posto o jantar há tempos. O que também me lembrou de que não comi nada desde que saí para a expedição.
“Talvez seja melhor comer algo primeiro.”
Enquanto na cozinha, não pude deixar de notar algo curioso: o visitante anda… feito uma pessoa? Bom, não é muito diferente dos outros pássaros, mas talvez por ter pernas longas, maiores até do que o próprio torso, cause essa impressão bizarra. De certa forma, é até engraçado ouvir suas garras afiadas batendo no chão. Garanti de secá-lo com uma toalha e ele esperou pacientemente pelo jantar ao lado dos outros, que ainda estavam um pouco assustados com sua presença. Ele é bem esperto para uma ave selvagem, nem dei sinal para que ele ficasse ali.
Mas fora isso, não pude fazer muita coisa. Depois do jantar, me senti mais cansado do que o normal e fui dormir. Claro, fiz questão de pôr meus companheiros em suas gaiolas esta noite, não sou louco de deixar o novato solto enquanto eles dormem..
Enfim… Me atirei na cama e fechei os olhos. Amanhã será longo.
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Era uma noite de lua minguante.
O observador de pássaros deitou-se na grama, encarando o céu carente. Ele, que não se deitou porque quis, só sentiu que deveria estar deitado ali, naquele lugar. Apesar disso, também estava confortável demais para tentar sair. Tudo o que o observador fazia era observar o céu, aquela penumbra celeste quase vazia e sem graça.
Eu sou o observador de pássaros.
Desta vez, no entanto, ele não tentou procurar algo nos arredores. Ele se contentou olhando apenas a lua, sem desejar ver outra coisa. E mesmo assim, seu nariz contorceu numa careta bizarra. A ausência das estrelas, mesmo que grotescas, tornou seus arredores ainda mais sombrios e solitários. Só então ele percebeu que, na verdade, o que observava não se tratava de um céu praticamente vazio, e sim os olhos aberrantes de um stolgiforme grotesco. Ele tentou gritar, tentou espernear e tentou fugir, mas….
O observador de pássaros acordou.
Paft!
De novo acordando fora da cama. Creio ter tido aquele pesadelo outra vez, ou talvez fosse o dèja-vù de ter sido acordado pelo som do alvoroço no andar de baixo. Se não fosse por isso, ficaria ali mesmo para dar atenção à minha lombar dolorida.
“O rato mais uma vez?”
Suspirei e me arrastei até as escadas. Pelo som das asas e os gritos de meus colegas, parecia que iria encontrar um pânico generalizado, mas quando pude ter uma visão mais clara da sala, vi somente todos eles estressados em um canto, piando e gorjeando dentro das gaiolas.
“Estranho, pensei ter ouvido algo batendo. Por que mesmo botei eles nas gaiolas?”
Para falar a verdade, não conseguia me lembrar muito bem da noite anterior, como se minhas memórias tivessem sido fragmentadas, sendo vistas por um vitral fosco e colorido.
Plaque!
E então, me lembro do trovão, do cemitério e de ter deixado um stolgiforme se abrigar na minha residência. Na mesma hora comecei a olhar em volta à procura do visitante noturno.
Instantes depois senti um vulto passar entre minhas pernas e outro por cima da minha cabeça, então os outros berraram ainda mais alto. Olhei para trás para ver o que havia acontecido, porém, ao fazê-lo, quase tropeço na ratazana medonha fugindo da ave de rapina sedenta.
— Wow! Esperem aí!
Corri atrás deles também. Rodamos em círculo ao redor da mesa, subimos na poltrona e por fim o rato se escondeu atrás da estante, fazendo a coruja dar de cara nos livros. Antes que eu pudesse verificar como o visitante estava, ele se levantou abruptamente e enfiou a cabeça de baixo do móvel, batendo as patas no chão para se forçar para dentro. Creio ter ouvido um som agudo de pânico vindo do roedor, quase tentaria interromper se não fosse o nervosismo.
Quando a coruja enfim tirou a cabeça dali, tendo no bico ensanguentado metade de um rato, um dos livros caiu da estante bem ao lado do meu pé. Aparentemente, isso bastou para fazê-la se assustar e voar de volta para perto da mesa com seu petisco.
“Que forma energética de começar a manhã.”
Suspirei outra vez, gemendo de frustração ao notar a bagunça da minha casa que já era bagunçada. Eu levaria horas para pôr tudo no seu devido lugar. Meus papéis se espalharam no chão, e até mesmo a terra e sujeira que cuidadosamente acumulei nas rachaduras foram movidas de seu lugar para o resto do cômodo. Não há como um futuro observador de pássaros renomado como eu viver nessa pocilga, o mínimo de decência seria ao menos organizar minha pesquisa. Me abaixei para pegar o livro caído, e estranhamente, a página aberta falava sobre strix, uma palavra da língua antiga que se refere a pássaros noturnos. Olhei mais uma vez para a coruja e aquilo clicou na minha cabeça.
— Stolgiformes….
Sim! Como isso nunca foi documentado? Folheei as páginas apressado até achar o glossário e…. Eureka!
O nome “stolgiforme”, na língua antiga, vem da junção das palavras stolas e strix. Stolas se referindo a vestimenta. Mas como o povo antigo associaria vestimentas a aves? Na hora teorizei que seria parte do mito de que já fora relatado contos de corujas falantes passando lições de direito aos viajantes que invadiam suas florestas, mas não, esses mitos são posteriores ao nome. Então suspeitei um envolvimento da cultura fragatana aborígene, num antigo conto que mencionava bruxas usando pele de animais como roupa para se transformarem.
Essa teoria fez algum sentido para mim e sem nem me vestir, fui para minha mesa rabiscar no meu diário. Aquilo talvez pudesse indicar algo, strix também poderia ser interpretado como bruxa. Dito isso, ainda senti algo faltando pois, apesar de haver contos sobre essas bruxas, Solha das pedras era longe demais do país de Fragata. Seria improvável a perpetuação de um mito de um país estrangeiro parando nesse vilarejo antes de encontrarmos o continente no novo mundo.
Olhei para o espécime que tinha à disposição. Ele se enfiou dentro do meu casaco para mastigar o rato. Sim, nojento, mas me fez rir com a ideia.
“Coruja vestindo roupa de gente. Andando feito gente…”
Agora fazia sentido. Eu me enganei em me afastar demais do habitat natural. A maioria delas vive por aqui, pois é onde se adaptaram melhor com o passar das gerações. Suspeito que a presença delas por aqui e esse jeito medonho de andar com suas patas talvez tenha trago alguma falácia sobre corujas falantes, como nos mitos que mencionei anteriormente. Vestimenta pode ser associado como uma forma de “humanizar” algo, de modo parecido ao qual vestimos espantalhos para afastarmos os corvos. Pássaro noturno com vestimenta se referiria às histórias de corujas com características antropomórficas, tal como andar em duas patas ou falar.
Ao terminar de escrever minha teoria e assinar meu nome — para que nenhum ladrão trate ela como autoral — me peguei ponderando mais uma vez sobre o visitante. Como pude me esquecer de nomeá-lo? Ele deve estar se sentindo deixado de lado ou até mesmo ignorado! Isso é inaceitável. Me levantei e fui em sua direção, carregando aquele mesmo livro que ele derrubou. Abri mais uma vez na página de antes, mas Strix seria um nome muito regressista, então mudei de ideia.
“Que tal Russeau? Ou então Plato? Não, não… ele precisa escolher.”
— O que acha de Stolas?
Com a menção do nome, a coruja soltou um grito agudo e irritado que acordou as codornas na dispensa.
“Okay, melhor não.”
— Que tal Stoppa? Ou então Menadel? Lechuza? — Fui ditando apreensivo, tentando achar algum que ele gostasse, mas nenhum pareceu chamar muito sua atenção.
Confesso que me frustrei um pouco. Talvez meu novo colega não compartilhe a mesma engenhosidade para nomes do que eu. Ao menos lidou com o roedor por conta própria, diferente dos outros.
“Quero dizer, eu lidaria com ele, mas sou um observador de pássaros, não sou um sacudidor de ratos!”
E falando nele, fiquei com medo do sangue manchar a minha roupa, então puxei o casaco e o joguei no balde. Infelizmente, as partes não comidas da ratazana já haviam o impregnado. Eu gostava daquele casaco. Bom, ao menos me deu outra ideia.
— Que tal… Ascálafo? — Desta vez, ele pareceu não reagir de forma agressiva. Para falar a verdade, ele só me lançou aquele olhar confuso mais uma vez.
“Ascálafo então”.
Soltei os pássaros e fiquei o resto da manhã com a coruja em minha mesa, fazendo questão de captar cada detalhe dela.
Ascálafo, um guardião, em homenagem à sua caça bem sucedida e a proteção do lar como consequência. Fora o que aconteceu de manhã, não tive tanto o que acrescentar no diário.
As horas passaram correndo no relógio, só percebi que já eram 4 da tarde quando fui obrigado a me levantar para pegar mais tinta para a minha pena.
— Maldição! Como já estou sem?
Cometi outro erro, e um dos piores numa situação como essa. Para o meu azar eu teria que ir até… a parte populada do vilarejo. Senti dores de cabeça só de me imaginar indo até lá. Porém, um especialista que se preze não pode entregar um manuscrito a lápis de carvão, aparentaria ser totalmente amador, rústico, incompleto. Inaceitável! Num só movimento enfiei a mão dentro da rachadura com terra para apanhar minha carteira — guardo ela ali para o caso de ladrões invadirem — entretanto, ela estava vazia. Sem nenhuma caravela sequer.
“É… isso não é bom. Em nenhuma situação isso é bom. Mas como? Eu jurava que ainda tinha alguns trocados para o inverno, no que foi que eu… “
Foi quando me lembrei da bengala importada que havia comprado de um caixeiro viajante na última vez que fui ao vilarejo. Ela foi um gasto necessário. Seu modelo era elegante e passava um ar de autoridade, apesar de eu não me lembrar em nada de como ela se parecia. Não sei se o ornamento do cabo era um leão ou um cavalo… acho que nem ao menos lembro onde enfiei ela nessa baiuca de moinho. Deixa para lá… não é só a tinta que me preocupa — apesar de ser vital. Creio já ter explicado, não possuo os recursos necessários para sobreviver o inverno esse ano. Minha dispensa já estava ficando vazia com duas codornas a menos produzindo ovos.
No ano passado eu tinha conseguido um prêmio em dinheiro num concurso de identificação do canto de pássaros. Aquilo me ajudou a ter um inverno mais tranquilo, só que o homem do evento foi levado à forca na primavera por práticas de ocultismo, então não poderia contar com ele novamente.
“Saco… vou ter que abrir a minha barraca.”
Se eu quisesse voltar às minhas pesquisas o quanto antes, primeiro deveria garantir a segurança alimentar das minhas aves. Sem perder tempo, apanhei meu cesto, corri até a dispensa e coletei o máximo de ovos que pude. Eles vendem mais enquanto estão frescos. Assobiei para chamar os outros, pus meu chapéu no Ascálafo e parti em direção ao vilarejo.
Não era a primeira vez que segui esse caminho e não será a última, mas não há um dia que eu não fique me pergunte:
“Será que isso é tudo para mim? É essa minha vida daqui para frente?”
Não me leve a mal, eu amo meu trabalho. Pássaros são tudo na minha vida. Só que… há vezes que mal tenho o que comer. Sem dizer a preocupação que me corrói por dentro toda vez que preciso arrumar um jeito de alimentá-los. Eles não tem culpa. Eu aceitei ser o provedor deles, é essa a minha função. Mas não são só eles.
“Odeio esse vilarejo. Odeio muito, muito.”
Não quero soar como um autoritário com complexo de superioridade, dizendo que meu estilo de vida é… melhor, entretanto, se a carapuça servir...
“Tolos. Eles não sabem de nada. São pessoinhas pequenas vivendo uma vidinha pequena num lugarzinho pequeno… não aceitam alguém como eu nesse mundinho pequeno deles. Simplesmente não há espaço, e quanto mais rápido isso for aceito, mais rápido você se torna um observador de pássaros.”
Senti minhas pernas pesadas. Ascálafo parou do meu lado e me encarou com aquele olhar bobo. A frustração na hora foi tamanha que chutei uma das pedras para longe.
“O que eu estou fazendo da minha vida?”
Sabe de uma coisa que eu sempre admirei nas aves? Sua liberdade. Voar para qualquer lugar se preocupando somente em seguir o bando e o ciclo. Isso soa utópico. Pode parecer pouco, mas para mim? Seria incrível. Não, só um pouco de respeito já seria o suficiente. Tipo: “Vejam! É o Simon! Como anda suas pesquisas acerca do ciclo migratório dos noitibós de nuvem?” E eu responderia: “Tudo nos conformes. Agora me deixe em paz, seu desocupado, não vê que estou trabalhando?”.
Um homem exigir um pouco de respeito é pedir demais? Às vezes eu penso que deveria sair daqui, seguir os pássaros, migrar para outro lugar. Talvez um lugar mais quente, onde meus caros amigos se sintam mais confortáveis.
Não… eu não posso simplesmente abandonar tudo. Para onde eu iria? Com que providências? Para alguém do meu calibre, essa foi uma das minhas piores ideias. Acabei tão imerso em meus pensamentos que quase derrubei o cesto. Tudo o que eu queria fazer naquele momento era gritar, talvez culpar alguém — provavelmente o gato da vizinha — mas nada saiu. Eu só não encontrei forças ou razão. Eu, eu não sei. Não sou um explicador de sentimentos.
Momentos antes de eu entrar em um colapso nervoso que, desta vez, me levaria a uma combustão espontânea, Durkheim saiu do bolso da minha camisa. A princípio, não dei muita razão, mas ficou difícil ignorá-lo em cima do meu nariz.
— O que foi agora?
— Chirp, chirp, chiirrp.
— Eu sei, mas…
Tentei interromper, mas fui cortado pelo cantarolar do noitibó. Ele estava certo, eu preciso pôr a minha cabeça no lugar. Vou pensar melhor a respeito quando voltar, mas por hora, preciso conseguir dinheiro. Que engraçado, ele que é o pássaro, mas sou eu na gaiola.
Não fiquei mais tanto tempo na trilha, também não houve muito o que comentar. Claro, ainda poderia falar de como a fuligem acinzentou mais ainda a colina, mas eu não quero voltar nesse assunto. Só digo que notório como que perto do vilarejo o acúmulo nem se compara à floresta. Como consequência, as pessoas que eu não escuto tossir como se tivessem a praga estão usando máscaras de couro medonhas.
Mais uma vez, não entendo como acreditaram que isso seria uma boa ideia. Solha das pedras só tem casas com telhado de palha. Tudo bem que as paredes são de concreto, mas esse é o pior tipo de construção para se ter perto de um incêndio. O pó residual gruda na palha e espalha o cinza quando o vento sopra. Acho que o único benefício disso é que, de fato, a temperatura aumentou significativamente. Nada que possa ser aproveitado, no entanto. Nem mesmo os mais resistentes dos meus pássaros suportam o ar áspero do vilarejo.
Se não fosse necessário, juro que não sairia do meu moinho até o próximo verão. Enfim… montei minha barraca com alguns trapos que deixaram jogados pela praça e esperei clientes. O processo não demora tanto, essas pessoas também estão estocando para o inverno. Se somente elas entendessem o quanto são parecidas com as aves.
“Não. Elas ainda são pessoinhas de mente pequena, longe de terem os cerebelos de um pássaro esbelto.”
— Boa tarde, senhor Paloma! Como tem ido? — perguntou Dalila, minha vizinha… Uma anã de tranças ruivas e braços largos. A mesma que não me leva a sério quando digo que o gato dela tem incomodado minhas codornas.
— Bem, senhora Dalila…
Ela pareceu esperar que eu fizesse a mesma pergunta, mas não estava com vontade de jogar conversa fora. Foi a primeira vez que falei com outro ser humano depois de… sei lá, dois meses? E definitivamente não seria benéfico falar com ela em específico.
Sei que a chamo assim, sei que ela também se chama assim, mas se tem prestado atenção, deve ter notado que o moinho não possui nenhuma outra construção próxima. Sendo curto e grosso, Dalila é a dona do moinho. Com os rumores de desaparecimentos perto da floresta, o pai dela deixou a construção em desuso por um tempo, e eventualmente foi parar nas mãos dela.
— Vejo que você voltou a vender seus ovos! Eles são uma delícia, sabia? Como faz para as cascas serem tão firmes e cheias de sabor.
“E lá vai ela de novo, falando sobre coisas desinteressantes…”
Enquanto ela estava tagarelando, aproveitei para melhorar a aparência da minha vendinha. Desenhei uma coruja o melhor que pude em uma placa e pus Ascálafo para ficar ao meu lado na cadeira.
Vez ou outra algum transeunte me atira a alcunha de lorde dos pombos e gargalha, só que não sou de me deixar ser movido por zombarias fúteis como essas. Eu sei mais do que eles, como por exemplo: que eles adoram os meus ovos.
— Mas diga, Paloma. Os paladinos do vilarejo vizinho têm te incomodado muito? Eles estão sendo insuportáveis com os moradores! Vou te contar, viu… Estou quase cogitando me isolar na floresta que nem você, senhor soberano dos pombos!
Ela riu, mas fechei o rosto e fiquei balançando a cabeça.
“Tola, ela acha que tem o que é necessário para viver em comunhão com a natureza.”
Sem nem perceber, acabei rindo com ela. Quem passasse para analisar, pensaria que somos apenas inquilino e locadora comuns. Ignorantes à verdade.
Após algum tempo, a senhora Dalila comprou algumas dúzias de ovos e foi embora — claro, fez questão de me falar todos os detalhes da vida pessoal dela enquanto contava as moedas. Apesar de eu não ir com a cara daquela mulher, posso dizer que ela me motiva algumas vezes. Ela me lembra de como minha mãe era. De como meu avô…
Minhas memórias ainda estavam embaralhadas de ontem. Lembro-me de ter visitado o cemitério, mas o que exatamente eu fui fazer lá? Queria poder apenas me focar na tarefa atual ao invés de divagar em pensamentos irritantes e sentimentalistas como esses.
Pelo visto, acertei em trazer meu novo assistente comigo. A princípio, as pessoas estavam evitando a minha barraca por medo do seu olhar penetrante. Não as culpo, afinal, stolgiformes não são comuns perto da vila. Foi só depois que a Dalila comprou alguns ovos que apareceram alguns moradores curiosos, perguntando se eram de coruja.
“Uma mentirinha nunca matou ninguém, não é?”
Apenas duas horas passaram e eu já tinha vendido quase toda minha cesta. Se as coisas continuassem desta maneira pelos próximos dias, talvez seja meu primeiro inverno confortável.
Só que nenhuma felicidade dura. Logo apareceram aqueles dois: o reverendo Roel e o Paladino.
Um é somente o que posso somente descrever como um velho decrépito, de rosto quase triangular por conta do maxilar largo, calvo e vestindo um robe longo. Ele trazia em seu peito o símbolo da igreja de Kadhur. Acredito que o paladino não seria diferente, porém, coberto dos pés à cabeça de aço cinza-fosco, com o mesmo símbolo pintado em seu escudo do tamanho de uma porta. Um rapagão grande, só que com metade do cérebro.
Pude notar que, no momento em que ele viu Ascálafo, sua mão não saiu do punho da espada na bainha. Sim, um homem forte desses com medo de um passarinho.
“Eu mereço…”
— Boa tarde, senhor Paloma. Vejo que voltou com sua barraca de… ovos.
— Bom, senhor reverendo, eu preciso ganhar dinheiro, né?
— Oh! Peço perdão pela pergunta, neste caso… — Ele pigarrou. Sua voz era sempre pacífica e parecia carecer de más intenções. — Eu só presumi que o seu trabalho como, qual era o nome? Lorde dos pombos?
— Observador de pássaros — corrigiu o paladino.
— Isso! Que seu trabalho estava pagando bem, senhor Paloma.
— E está, mas preciso de uns trocados extras para financiar minha nova pesquisa. E quanto a você, senhor reverendo? Como tem ido no templo do vilarejo Imperador? — respondi, tentando não atirar o que sobrou de minha cesta naquela cara triangular.
— Nunca estive melhor. Em minha última visita, o bispo me concedeu a missão sagrada de proteger nossa querida Solha das pedras.
Mesmo que sua voz fosse serena, ele definitivamente não conseguia esconder o tique nervoso na sua pálpebra inferior.
— Acho que ouvi algo sobre isso. A nova decoração no vilarejo combinou bastante com a igreja. Já recebeu a sugestão de trocar todas as vitrines e janelas por vitrais santos, reverendo? Ou então continuar no tema gótico e incendiar os telhados de todo mundo de uma vez só.
É, eu sei, eu devia ter ficado calado. Antecipei o saque da espada do paladino e recuei coagido, porém, o reverendo o interrompeu com uma mão no ombro.
— Nós não usamos violência, Sariel. Não é a vontade dos divinos.
— Os animais discordam — retruquei baixinho.
“Deveia ter segurado esse.”
É certo que o reverendo me olhou com nojo, como se eu fosse um inseto abaixo dele naquela hora. Acho que nunca tinha visto ele fazendo aquela careta antes. Um frio me subiu a espinha, e antes que eu pudesse me defender, Martin pulou do casaco e começou:
— Daisy! Daisy! Give me your answer, do! I’m half crazy, all for the love of you… — Sua voz estridente chamou a atenção de todos na praça. Irritante, mas uma distração perfeita e em boa hora.
— O que foi isso, Senhor Simon Paloma?
— Nada. Eu já estou de saída.
— Entendo, entendo. Lembre de trazer uma permissão da prefeitura caso queira abrir sua barraca outro dia.
Eu sorri, peguei minhas coisas e me preparei para voltar para o moinho. Por alguma razão, Ascáfalo não quis tirar os olhos do paladino que… estava fazendo o mesmo? Esquisito.
— Obrigado! Vou pensar a respeito. — Depois disso, decidi usar um pouco do dinheiro que consegui para comprar alguns mantimentos.
Devo notar que a coruja não parece ser afetada pela fumaça. Teorizo que stolgiformes tenham desenvolvido algum tipo de resistência ao calor com o passar das gerações, talvez algo nesse gênero, visto que meu colega novato sequer esboça preocupação ou dificuldades para respirar, enquanto meus amigos mais antigos mal querem sair de dentro do casaco.
Outra peculiaridade que tenho observado é que ele tem um certo fascínio por pedras preciosas e ervas medicinais. Acho que o vi analisando algumas bijuterias das barracas enquanto passeávamos pela feira.
Em um momento mais favorável, hei de adquirir algumas peças para ele. Aquela coroa com um rubi de fato ficaria superb como um adereço.
“Iriei anotar esses hábitos em meu diário mais tarde.”
Chegou-se o final da tarde e a maioria das barracas haviam fechado. O dia foi até mais produtivo do que supus. Comecei a apertar o passo para voltar para casa quando, ao longe, vi o que pensei ser algum tipo de fogueira no centro da praça. Chegando mais perto, encontrei o reverendo e o capacho de armadura ao lado dele. Pareciam estar pregando algo, só que estava difícil de dizer o que exatamente — talvez queriam mais dinheiro ou coisa do tipo.
— Irmãos! — o reverendo berrou, garantindo a união e a atenção de todos ao redor da fogueira. — Há tempos vocês já sabem que nosso lar, nossa casa, tem sido contaminada por estas malditas pragas. Sim, eles! Os demônios. Eles invadem a sua casa, roubam sua comida e tiram dinheiro direto de suas carteiras, mas o pior de tudo é que eles ameaçam o nosso estilo de vida pacífico. E infelizmente, seremos obrigados a bater de volta!
Ouviu-se um brado feroz que fez meus pássaros ficarem inquietos. Eu já sabia o que viria desse tipo de sermão público, foi o mesmo roteiro quando anunciaram a política de queimadas. Fiquei ali ouvindo com os outros moradores por algum tempo, o suficiente para que a lua subisse no céu e os lampiões fossem acesos. Eu deveria ter trago o meu, mas não imaginei que passaria tanto tempo ali.
Queria ir embora, mas não sou louco de sair no meio do sermão. É certo que viriam até o moinho com tochas e forcados se tivessem qualquer suspeita de algum envolvimento com bruxaria. Por sorte, nenhum deles pensa isso de mim… até onde eu sei.
Não consegui esconder meu descontentamento em estar ali de pé, e com certeza isso chamou a atenção do paladino. Se não fosse por aquele elmo escuro, veria a expressão de ódio dele sendo lançada a mim. Para falar a verdade, isso estava claro até mesmo com o rosto coberto. Bastou uma cruzada entre os olhares e ele pôs a mão no cabo de sua espada outra vez. Por um instante, achei que ele se conteve para não entrar em uma postura defensiva, mas isso seria tolo. Um paladino não teria porque estar preocupado com um simples cidadão desarmado. Mesmo assim, acredito que a mão dele estava tremendo. Isso me fez questionar se ele estava realmente olhando na minha direção. Tentei investigar os arredores. Talvez ele tivesse visto algo? Não, tudo o que tinha ao meu lado eram as outras pessoas — me evitando, por alguma razão — e o Ascálafo, ao meu lado e também olhando na direção do capacho.
Cinco minutos depois daquilo, decidi dar as costas e ir embora. Se eu demorasse mais ainda para voltar, posso acabar me perdendo, e não poderia contar com a ajuda de meus colegas para encontrar o caminho de volta. Eles não voam bem na penumbra, e o stolgiforme ainda não recebeu nenhum treinamento para encontrar a minha casa. Assim que dei o primeiro passo, porém, escutei a voz do reverendo ecoar e todos os moradores se virarem em minha direção.
— Ahem! Senhor Paloma? Meu sermão ainda não acabou.
— Eu sei, mas preciso voltar para casa.
— Quanta petulância. Você sabe como funciona a tradição: ninguém sai até terem a minha bênção. Isso é um sinal de respeito. Eu não sobrevivi até hoje ignorando os costumes do vilarejo. Minha longevidade só foi permitida graças às bênçãos do bispo Cícero.
— Mas… — Quanto mais eu tentava argumentar, mais as pessoas fechavam a roda. Fiquei realmente preocupado de ser linchado, só não mais preocupado do que aconteceria com meus colegas se eles prosseguissem com isso. Tive que conter Martin Jr. para que não cantasse mais uma vez, e Durkheim tentou me puxar para a direção oposta à praça. Entretanto, nenhum deles se comparou ao Ascálafo. O pobre coitado tremia feito uma chaleira escaldando, suas penas erguidas e seus olhos vermelhos indo de um lado para o outro a passo que os moradores marcharam em minha direção.
“Droga, preciso sair daqui.”
— Esperem! Eu não mandei vocês fazerem nada — O reverendo os interrompeu, erguendo a palma para ordenar o cessar da sua plateia. — Vocês são brutos por acaso? Primitivos? Eu já lhes disse milhares de vezes e vou continuar dizendo mais milhares: a violência só traz o medo e a desunião para a nossa comunidade!
Até mesmo eu fui impactado por aquilo, só não o suficiente para abaixar a minha guarda. Antes que Roel pudesse continuar seu discurso, apanhei meus companheiros e corri para casa. Ao sair, ouvi claramente o novo decreto:
— O nosso inimigo não se encontra no povo! O nosso inimigo se esconde nas matas, nas árvores, se rasteja feito cobra. Ele voa sobre nossas cabeças e espia as nossas vidas para ter controle de nós! O demônio voa, o demônio anseia por esse “livre arbítrio” de poder migrar de norte a sul e de leste a oeste. Precisamos garantir a segurança das nossas mulheres e crianças, é o nosso dever como cidadãos! Por tanto, declaro um estado de risco. Ninguém pode sair após as 8 da noite. E aos homens, delego a vocês a missão de protegerem suas famílias! Se livrem dessas pragas voadoras! Todas elas!
“É um blefe. Tem que ser um blefe. Ele só quer me afetar.”
Segui meu caminho para casa e passei pela floresta em silêncio. Não estava pensando em muita coisa.
“Ele claramente não iria seguir em frente com aquilo. Aposto que logo depois que saí ele retirou o que disse e renunciou seu posto, admitindo ser um idiota e indo embora do vilarejo para sempre. Isso, isso. Está tudo bem. Vai ficar tudo bem.”
De repente, Ascálafo ergueu voo e sumiu nas sombras da mata adentro. Eu quis ir atrás dele, talvez ele só estivesse com medo… Não. Ele é um animal silvestre, não tem porque continuar comigo. Provavelmente ele se juntará ao seu bando e migrará com o resto da população de stolgiformes para longe de Solhas das pedras, onde nunca mais eu ou qualquer um desses ignorantes possa chegar perto.
“Enfim, lar doce lar.”
Liberei meus companheiros famintos para suas gaiolas e fui até minha cozinha preparar alguns ovos.
“Sim, uma omelete vai acalmar os ânimos.”
Peguei a frigideira, acendi o fogo e quebrei as cascas.
Sabiam que é possível utilizar cada parte do ovo? Além do interior que podemos comer, se você moer a casca até virar um pó, ela se torna uma rica fonte de cálcio. É muito útil para codornas ou outros gêneros de ave que você queira a produção saudável de ovos, ou também pode ser usado como um fertilizante.
— Foi um blefe — disse a mim mesmo, eu precisei me reafirmar. Não gosto de desperdiçar uns bons ovos com pensamentos negativos.
Eu geralmente uso o moinho para produzir esse pó de casca sem precisar aplicar tanta força. Saber se aproveitar do ambiente é uma característica indispensável para qualquer bom observador de pássaros. Só não joguem o pó direto na terra caso queiram usar como fertilizante. Eu sugiro primeiro passar ele pela composteira. São bem fáceis de se fazer e as pessoas não acreditam no quão úteis elas….
— Foi só um blefe — De novo. Acho que acabei assustando os pássaros dessa vez.
Espero que o Ascálafo esteja bem agora, não pude passar tanto tempo com ele, mas acredito que não seja o fim de nossa pesquisa. Com certeza eles irão retornar quando toda essa confusão ficar no passado.
“Mas e quanto a mim? O que eu vou fazer a partir de agora? O que farei se eles decidirem ir atrás dos meus colegas dentro da minha casa? A Dalila não vai me acobertar. Ninguém vai. Eu sei muito bem o porquê me deixam viver nessa floresta assim sem ganharem nada em troca. Desde que o vilarejo foi construído que há desaparecimentos na mata. Eles esperavam que eu fosse mais uma vítima, mas adivinhem… Eu sobrevivi. A floresta não vai me machucar. Eu sei o que tô fazendo, eu…”
Bang! Meu punho foi contra a parede, e repeti mais uma vez para reafirmar que tudo ficará bem. Eu só preciso ter fé. No pior dos casos, posso implorar para o reverendo, faço serviço comunitário, arrumo um emprego. Qualquer coisa para não machucarem os meus pássaros.
“Por favor…”
Sem mais e nem menos, minha frigideira voou para fora da janela. Quando me dei conta, já estava de frente para a minha mesa de escrita.
“Como ousam? O que fiz de errado?”
A virei de ponta cabeça e derrubei todos os livros da minha estante.
Ouvi o bater de asas de Martin se aproximando, mas balancei meu braço em sua direção para o afastar. O mesmo foi com Durkheim, que só tentou chamar minha atenção — ele devia estar tão confuso — e eu gritei para que ele ficasse calado. Os únicos que não tentaram intervir foram Marx, Bourdieu e Weber. Eles ficaram ali, quietos na gaiola, como se quisessem esperar que eu me acalmasse primeiro. Não tinha planos de fazer isso, eu queria liberar todo meu descontentamento de uma vez só.
Subi as escadas, com cada pisada nos degraus balançando o moinho. Abri a porta do meu quarto e atirei tudo para o alto; minha luneta; meu caderno; meu lampião; tudo. Em seguida, não pude deixar de chorar todos aqueles sentimentos se amontoando no meu peito como uma bola de neve. Tudo que construí com tanto sacrifício iria ser destruído por puro fanatismo. Eu não iria aceitar isso, não iria. Mas, o que exatamente eu poderia fazer?
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Era uma noite de lua cheia.
O observador de pássaros se deitou, ele estava cansado de observar. Mas não é como se tivesse mais escolha. Além disso, sentiu a grama alta enroscar em seus membros, garantindo de prendê-lo no chão para que ele não tentasse escapar. Tudo o que o observador fazia era observar o céu e nada mais. Aquela penumbra vazia cheia de pontos celestes. E no canto do seu olho, enxergou um stolgiforme curioso, encarando ao fundo com seus olhos vermelhos penetrantes.
O observador de pássaros sou eu.
E quando olhei de volta para o céu, vi somente o teto escuro de uma caverna úmida. Nem mesmo a grama abaixo de mim restou, sendo agora um amontoado de muco fedido, galhos e ossos amassados em um ninho grotesco e profano. Algo em minhas costas começou a rachar, não pareceu sair de dentro de mim, era como se eu estivesse deitado em uma pilha de ovos. Me ergui para vê-los melhor, e lá estavam: milhares de ovos de codorna, cada um abrindo para revelar um tipo de stolgiforme diferente.
Tytonidae, bubo, aegolios, assio… e assim em diante.
Ergui minha cabeça uma vez mais, esperando que o céu retornasse, mas, desta vez, só o bico daquela coruja demoníaca. Em uma única bicada, pareci ser engolido, mas…
O observador de pássaros acordou.
Mais uma vez em meu quarto. Parecia estar de madrugada.
Não ousei sair da minha cama, e nem tinha um motivo para isso, mas não voltarei a dormir. Me senti cansado e ansioso demais para relaxar. Uma tortura psicológica com o intuito de levar minha mente à loucura. Sim, esse foi o plano de Roel desde o início, aquele velho covarde. Por um momento pensei em matá-lo para acabar com todo esse sofrimento. Não, não… sei bem que isso não pararia o povo de agir da própria maneira, sem contar que o paladino iria atrás da minha cabeça se descobrisse.
Não sei quanto tempo fiquei ali apenas encarando o teto do meu quarto. Horas, minutos, talvez nem tenham se passado poucos segundos quando ouvi aquilo. Tinha certeza que era o som de patas — um animal pesado — como um urso bem grande.
“Aquele gato deve ter aberto minha composteira mais uma vez…”
Suspirei e desci as escadas o mais quieto que consegui, seria muito ruim ter um urso tentando arrombar a minha porta ou achando o ponto frágil das minhas paredes… de novo.
A primeira coisa que reparei no andar de baixo foram as janelas. Elas estavam… foscas? Como quando em dias frios enquanto o lado de dentro está mais quente e a água condensa no vidro.
“Será que está chovendo de novo? Não ouço nada.”
E bem quando me perguntei isso, ouvi o som do meu cercado sendo derrubado.
“É grande, muito grande”.
Era maior que um urso com toda certeza. Fui até a janela procurar o que era, não estava longe da minha porta.
“Outro problema?”
Minha respiração pesou, o ar dentro da sala pareceu gelar, e tudo o que se ouviu do lado de fora foi uma criaturinha pequena fugindo de uma gigantesca.
Eu colei meu rosto no vidro, limpei a condensação com a manga da camisa e esperei. Tinha que estar ali.
“Por favor, que não me veja aqui dentro”.
Me peguei olhando para dentro do moinho para ter certeza que não deixei nenhuma luz acesa. Também rezei para que nenhum pássaro acordasse. Não quero nem imaginar o que esse monstro faria se os ouvisse berrando aqui dentro. Acabei tão disperso no meu receio que não reparei que o som havia parado. Eu continuei esfregando a janela, tinha que estar lá, mas por mais que eu limpasse, o lado de fora ainda estava escuro.
“Estou sonhando? Isso é outro pesadelo”, o observador de pássaros pensou consigo.
Quando tudo pareceu ter se acalmado, logo após o clique inconfundível de uma boca fechando em cima de carne e ossos, o som ensurdecedor da criatura menor sofrendo ressoou dentro da sala: — Meow!
Cada um dos meus pássaros — sem exceção até mesmo das codornas — acordou em um pânico que nunca vi antes. Eles gritaram e espernearam, tentando escapar das gaiolas.
“Mas que diabos?”
Nem o terror noturno mais forte que já vi conseguiu deixá-los assim. Eles balançaram dentro das gaiolas com tanta força que algumas chegaram a sacudir em cima da mesa. E para tornar tudo ainda pior, Martin e Weber deram um jeito de se derrubarem.
Quando colidiram no chão, abriram-se e os dois voaram em círculos pela sala, fazendo um som ainda maior. Meu peito doeu como antes e pensei que iria desmaiar. O som daquela coisa pesada rodou pelos lados do moinho e então…
Nada. Foi como se nem estivesse ali.
Martin estava tremendo e com uma respiração dolorosa, temi que esse seria seu fim. Eu o botei perto do meu peito enquanto o acalmava de seu estado de pânico e levei as gaiolas para seus devidos lugares, tentando ao máximo acalmar o alvoroço.
Durou pelo menos 10 minutos antes que eu pudesse convencê-los a ficarem quietos, e em nenhum segundo desses 10 minutos eu consegui acalmar a mim mesmo. Seja lá o que estivesse lá fora, não era normal. Simplesmente não era. Eu consigo reconhecer animais pelo som dos passos, entretanto, não conheço um animal que faça um som daqueles enquanto se move rápido sem causar um estardalhaço.
Indo contra o bom senso, fui até a porta. Não iria abrir ela, só tentar sentir se havia algo do outro lado. Deitei a mão na maçaneta e encostei o ouvido na madeira.
“Está respirando.”
Minha cabeça apertou como uma armadilha para urso. Aquilo estava realmente me esperando do outro lado. Comecei a pensar no que nas profundezas do inferno seria aquilo: Talvez o gato da vizinha? Ele não era tão pesado. Talvez o Ascálafo, e quando eu abrisse a porta ele estaria ali todo molhado que nem antes? O desespero bateu a porta, me hipnotizando a abri-la para saber o que se passava.
“Eu não sou louco, eu nunca fui louco. Demônios não existem, é só um animal. Não existem, é só um…”
Me imaginei abrindo a porta: Primeiro, veria o gato. Fecho a porta e tento mais uma vez; o Ascálafo; Em uma terceira vez, entretanto, o pássaro demônio de meus pesadelos.
“Não abre a porta. Não abre essa maldita porta.”
Cada centímetro do meu corpo começou a gritar, Meus ouvidos ecoaram com o som do meu peito e olhei para a janela, ainda com o breu lá fora. Seria tudo isso um sonho ruim? Irei acordar na minha cama mais uma vez? Os pássaros se mantinham com os olhares paralisados na porta.
Quis gritar, quis espernear., quis chutar. Mas para onde eu fugiria? Só me era permitido encarar a realidade, abrir a porta e descobrir o que tinha ali. Observar o que tinha ali.
Fechei os olhos, respirei fundo e…
Nada… mais uma vez. Ninguém estava na porta. Não sei dizer se isso me deixou decepcionado ou temendo pela minha sanidade. Só sei que a fechei logo depois, feliz por minha pressão estar voltando ao normal. Foi aí que senti um ar frio escapando atrás de mim.
Meus olhos correram naquela direção e a primeira coisa que os convidou para um show de horrores foram os olhos. Um par de olhos escuros como obsidiana e de pupila vermelha como a brasa. Eu vi. Aquilo estava tentando abrir a janela com o bico.
— NÃO! — Meu grito rompeu uma das minhas cordas vocais.
Corri até lá para impedir que o pior acontecesse. A luz do lado de fora pareceu voltar ao normal e, quando me aproximei, vi apenas uma coruja pequena e assustada com meus gritos repentinos.
— Era você, Ascálafo?
— Hoot.
— Você quer entrar? — Para falar a verdade, eu não queria ficar ali dentro. Minha visão já estava turva, mais um pouco e eu iria dessa para uma melhor. Ou uma pior… muito provavelmente uma pior.
— Hoot — Ele corujou em negação.
— Quer que eu saia?
— Hoot — Agora, em afirmação.
“Só pode estar de brincadeira comigo. Sair? Com aquela coisa lá fora?! Eu não sou maluco.”
Porém, uma hora ou outra eu precisaria vasculhar o perímetro para garantir que aquilo não estaria me perseguindo ou pretendendo retornar.
“Talvez eu deva esperar até o amanhecer para isso, de jeito nenhum que serei capaz de voltar a dormir.”
— Oh, hoot! — Ascálafo não demonstrou contentamento com essa decisão minha. Insistiu tanto para que eu fosse para o lado de fora que eventualmente desisti e comecei a investigar.
Precisei só de meia hora para concluir que absolutamente nada poderia ter passado por ali. Nenhum galho foi movido, a cerca que pensei ter sido destruída estava no lugar e também não havia nenhuma pegada marcando o chão.
“Será que estou alucinando?”
Me virei para voltar para o moinho, mas assim que o fiz, Ascálafo mostrou que tinha outros planos. Ele sentou de costas para a colina, num ponto alto o suficiente para ter uma boa visão do céu.
— Você gosta das estrelas?
— Oh, oh-Hoot! — Suas penas macias sacudiram e remexeram de uma vez só.
Que mal teria? Já estava quase amanhecendo de qualquer jeito, então fiquei ao lado do stolgiforme para observar as estrelas.
É engraçado, quase 20 anos nessa floresta e nunca pensei em fazer esse tipo de coisa. Quem iria perder o próprio tempo observando o céu noturno assim? Tamanha estupidez. Admito que possa ser confortável. O céu era mais iluminado a noite do que me lembrava. Faz pensar o quanto o sol realmente brilha de dia se todas essas estrelas conseguem iluminar a noite assim. E há a lua. Ela estava cheia, com seu brilho pálido molhando tudo abaixo delicadamente.
Ficar ali me trouxe uma memória antiga, uma de quando meu avô ainda era vivo. Veja bem, pois meu avô não era do mesmo ofício que o meu — ele era um observador de astros! Houvera noites onde acampávamos na montanha com um telescópio e perdíamos as horas encontrando cada estrela no livro. Inclusive…
— Olhe aquela dali, Ascálafo. — Apontei na direção da constelação de Hidra, no astro celeste mais brilhante que ali estava, uma estrela de brilho laranja. — Aquela é a Alfarde, a solitária. Mesmo que ela seja uma das estrelas mais distantes da sua constelação, ela é a mais brilhante. Não é incrível?
— Oh-hoot! — Ele confirmou com o que julguei ser algum grau de felicidade.
As horas se passaram, a manhã veio e chegou o momento de pensar no que eu faria dali em diante. O crepúsculo de um novo dia aqueceu minha face serena o suficiente para me desintoxicar da amargura. Enquanto eu tivesse memórias boas, eu ainda poderia continuar. Eu preciso ficar, não tinha outras opções.
O plano era claro: estocar o máximo de comida com o dinheiro que acumulei e não sair de casa até a primavera. Será doloroso, mas necessário. Só precisarei passar no vilarejo pela última vez nesta estação.
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Voltei para dentro do moinho e fechei todas as janelas. Não posso arriscar nenhum deles me seguindo até o centro. Com certeza já devem ter posto em prática a nova política.
“Só de imaginar os pobres pássaros mortos e largados aos vermes me enjoa...”
Creio que ainda não haja nenhuma baixa ao redor do vilarejo, a maioria das aves já havia sido afugentada pela fuligem. Por agora eu preciso conseguir a maior quantidade de não perecíveis possível e voltar o quanto antes. Se eu sentir que estou sendo seguido, levo minhas coisas para o topo da montanha e acampo perto da cachoeira.
“Sim, vai dar certo”.
— Você não pode ir, é perigoso para você. — Deixei Ascálafo junto dos outros, porém, ele tentou avançar para a porta. O coitado deve ter percebido que estava me arriscando. Desta vez, o levei até meu quarto e fechei a porta. Assim ele teria espaço o suficiente e eu não me preocuparia com ele atacando os outros.
Ao sair pela porta e passar por aquele ponto onde observei as estrelas, senti algo metálico na sola da minha bota. Quando fui olhar, vi uma espécie de fita azul com uma presilha — era familiar, mas de longe importante. Vesti meu capuz e parti.
No caminho, senti uma ansiedade enorme. Não era novo para mim, sempre senti isso quando ia ao vilarejo, mas o assustador é saber que as coisas agora serão diferentes. Sem contar que comecei a ficar preocupado com minhas teorias. Começaram a aparecer muitos stolgiformes no caminho para o vilarejo, a maioria em galhos ou ciscando no chão. Como se me observassem de longe.
“Por que eles não estão fugindo?”
Chegando na praça, percebi que minha sorte era inexistente. Em pleno dia de semana não havia uma alma viva na rua. De início pensei que haviam sumido ou desaparecido de vez. E nas frestas das janelas, os olhares rígidos e curiosos dos meus vizinhos me assombravam. Suspirei, teria que pensar em outro modo. Quem sabe viajar até o ducado dr Caçoeiro para comprar comida.
— Ei! Vocês… — Dei meia volta e enxerguei de longe uma dupla de homens fortes de armadura andando na rua. Quando chamei por eles, tapei a boca de imediato e me escondi. — Paladinos…
— Você ouviu algo? — Um deles perguntou, se virando na minha direção, pronto para desembainhar sua arma.
Tive que me esconder no beco.
“A inquisição veio para uma intervenção, mas de quê?”
Caminhei entre as partes menos visíveis do vilarejo, tentando ao máximo encontrar uma forma de escapar dali. No processo, também contei quantos guerreiros foram enviados: 20 ao todo. Estavam fazendo uma patrulha pelas ruas, até onde observei. Se eu esperasse mais um pouco até eles passarem da minha saída, poderia escapar sem ser visto.
— Hoot.
— Sim, mas eu preciso…
Dei um pulo e derrubei os latões de lixo que me escondiam. Aparentemente, um stolgiforme decidiu me seguir. Foi o que pensei, porém, no momento em que olhei para ele, reconheci que este era levemente maior que os demais, um que garanti de deixar seguro no meu quarto sem maneiras de sair.
— Ascálafo? — gritei o mais baixo possível, transpassando meu temor pela voz falha. — O que tá fazendo aqui? Como você saiu do quarto?
O que eu deveria me perguntar era como ele conseguiu chegar tão rápido na praça sendo a ave de rapina mais lenta do mundo. De qualquer forma, a presença dele significa que eu preciso agir com ainda mais cuidado para escapar. Estendi as mãos para pegá-lo, e quando fiz isso, ele me lançou um olhar feio e voou até uma cerca do outro lado da rua. Se aqueles paladinos não estivessem de costas, com certeza iriam atacar.
Corri o mais rápido que pude para ir atrás do meu colega, mas acredito ter o assustado — ele abriu voo e entrou em uma janela aberta no alto da construção. Quando pulei a cerca para o alcançar tudo o que consegui foi ouvir os gritos desesperados do coitado pelo lado de dentro. Eu teria que invadir.
“Nós não deveríamos estar aqui”.
Indo para a porta da frente, empalideci mais ainda — a igreja. Ele entrou na igreja, de todos os lugares.
“Maravilha.”
— E está trancada… — A raiva e o desespero cresceram no peito com tanta força que, por impulso, golpeei a porta. O impacto foi tremendo ao ponto de fazer os vidros vibrarem.
“Mas é claro! Os vitrais.”
Aquilo me deu uma ideia engenhosa: peguei um tijolo solto da estrada e tomei distância. Entendam, aficionados pelo ofício. Nunca se esqueçam de aproveitarem do ambiente para garantir o melhor dos resultados sempre. Veja bem, pois o bufão que inventou as trancas esqueceu da existência das janelas.
Crack!
O vitral colorido se partiu em milhares de fragmentos e o som atraiu a maioria dos paladinos na rua. Antes que eles pudessem verificar o que foi, pulei para dentro e olhei ao redor.
O lugar era… bonito? Não lembro quando foi a última vez que fui à igreja, mas estava diferente. O corredor estreito tinha um carpete vermelho, pinturas, lustres e candelabros, e até mesmo um armário.
Em instantes eu avistei meu companheiro. Estava caído próximo ao guarda-vassouras e suas maiores feridas vieram de queimaduras estranhas. Talvez tenha acertado o candelabro e batido no teto.
— O que foi isso? — perguntou o reverendo, entrando no corredor com a delicadeza de um elefante. — Huh?! Mas o que? Vê isso, Sariel? É disso o que eu estava falando!
O homem, aquele paladino de antes, veio logo atrás. Parecia que estavam conversando há um tempo, posterior à minha invasão. Sariel marchou até o final do corredor e deu uma boa olhada no vitral quebrado. Quanto a mim? Assim que ouvi passos se aproximando, apanhei meu colega e me escondi no armário, deixando uma fresta aberta o suficiente para ver o que estava acontecendo.
O paladino não é tão velho quanto pensei — ele removeu seu elmo — parece ter uns quarenta e alguma coisa. Seu cabelo é curto e ele tinha uma barba rasa.
Vi ele vasculhando o corredor com os olhos semi abertos por um tempo antes de ter o cabelo puxado.
— Preste atenção no que eu digo, seu idiota! Você duvidou de mim, mas eu estava certo. Não adianta tentar ser gentil com esses animais. Olha o que fizeram! Se isso continuar assim, vão nos tratar que nem essas vidraças!
— Eu nunca disse que você estava errado… — O paladino segurou o velho pelo antebraço e o empurrou para fora do seu espaço pessoal. — Eu apenas disse que poderia ser arriscado sem um plano decente.
— Eu já te disse do plano! Nós só precisamos dar algum senso de segurança para esses animais e pronto! Quando eu me tornar o novo bispo, nunca mais precisaremos ter que ficar perto dessa gentalha primitiva.
— Reverendo, você realmente acha que a igreja vai dar tanto reconhecimento para um clérigozinho de um vilarejo acabado só porque ele mandou a população se livrar de alguns pássaros? Você não lidou com nenhum demônio até agora e…
— Que demônios?! Você é idiota por algum acaso? As turistas sumiram porque se perderam, mas e daí? Não quer dizer que tem…
Fechei meu punho com tanta força que minhas unhas cortaram as palmas. Eu mesmo teria o enforcado ali, entretanto, o paladino decidiu fazer isso primeiro.
— Sem demônios? Eu acho que o idiota aqui é você. — Ele o ergueu com uma mão só, apoiando as costas do reverendo na parede. Mas seus olhos não tinham ódio. Não, não. Eu reconheço esse sentimento. Era medo. Aquele covarde estava pálido só na menção das criaturas. — Eu fiz o que você mandou. A gente queimou as árvores, impôs as novas leis e entregamos de bandeja todo o poder para você. Tudo o que a inquisição pediu em troca foi que você desse sumiço nesses de…
Ele o soltou.
— Eu sei, eu sei. Mas não tem prova nenhuma da presença de demônios na floresta.
— Meu amuleto diz o contrário. Tem, sim, algo por aqui. Algo repulsivo. — Sua mão então foi para dentro da armadura, em um colar oculto na gola de sua camisa.
— Isso não é importante, você está se esquecendo que precisamos fazer o bispo reconhecer o meu trabalho! Ou você quer ficar se arriscando na linha de frente até encontrar um demônio de verdade?
As veias na testa do paladino saltaram como raízes de batata, com certeza o reverendo queria conhecer Hanóth mais cedo, e iria, se Sariel não respirasse fundo.
— Não. Não quero. Mas só queimar algumas árvores não é o suficiente. Precisa cortar o mal pela raiz se quer se tornar um bispo.
— Eu já disse que não tem demônio.
— Que seja. Se não tem demônio, arrume uma bruxa.
— Devia ter me falado isso antes de eu mandar matar aquele esquisito na primavera.
— E o outro antipático? O do moinho. Ele anda por aí com aqueles bichos nojentos, vive fedendo e ninguém sabe com o que ele trabalha exatamente. Sem contar que o vi com aquela coisa ontem.
— O Paloma? Ele é só o neto do Collins. É um medroso bom para nada…
De repente, eles se encararam.
— Não diga isso. Ele é exatamente quem estamos procurando para esse tipo de serviço. — Depois disso, Sariel vestiu seu elmo e tirou seu amuleto do pescoço.
— Então está decidido. Leve seus homens e vá até o moinho. Queime o lugar todo, mas quero o Paloma vivo. Se as pessoas não verem o corpo dele na praça, não conta.
— Entendido.
O reverendo sorriu, e após alguns segundos com o paladino parado só olhando para o amuleto de pedra vermelha, ele franziu a testa.
— Você vai agora ou quer um convite?
— Já estou indo, só quero ter certeza de algo.
Roel foi até o homem e percebeu que ele estava balançando bem devagar a pedra, usando a corrente de prata como um pêndulo.
— O que é isso?
— Senti uma presença maligna por aqui. — Com a espada em mãos, ele começou a andar pelo corredor, olhando para os lados toda vez que a joia pulava sem explicação.
— Na minha igreja? Impossível!
— É muito possível, reverendo — respondeu em um tom debochado, parando diretamente no armário onde estava. Ele torceu os olhos na minha direção, sua espada deslizou pelo ar bem devagar e aproximou da porta… mas ele seguiu reto quando a joia saltitou uma segunda vez.
Meu coração pulou várias vezes feito uma pulga cafeinada.
“Esses mentirosos…. é tudo culpa deles.”
A raiva se misturou com o desespero e virou angústia. No fundo, queria saltar para fora do meu esconderijo e pular na garganta dos dois, mas de longe sou páreo contra o paladino.
Pude respirar aliviado com o som dos passos se afastado do corredor, só que de longe meu problema havia chegado ao fim.
“Preciso voltar para casa agora, não dá mais para ficar nesse vilarejo”.
Quando tentei abrir a porta, recebi uma bicada no dedo.
— Ei! O que foi? — sussurrei, olhando para a coruja que me encarou de volta com os olhos ainda mais arregalados. Não entendi de início, entretanto, quando olhei mais atentamente para o carpete perto do armário e vi uma sombra, meu corpo instintivamente se abaixou.
Crash! A espada atravessou a porta e me acertou de raspão na barriga.
— Te achei, camundongo.
Assim que ele puxou a espada, chutei a porta com força o suficiente para acertá-lo no rosto, dando tempo o suficiente para pular a janela por cima dos homens me esperando lá. O paladino não estava muito atrás, só que felizmente, eu tinha a vantagem de não precisar correr com 40 quilos de aço no corpo.
Quis voltar para o moinho o quanto antes, só que pensei melhor a respeito: “se eu voltar para o moinho, vão me encurralar lá… mas se eu não voltar para o moinho, eles vão queimar tudo”.
— Por favor! Me ajudem! Socorro! — A dor me levou às lágrimas, fiquei desesperado e comecei a bater na porta de todos na vizinhança. Alguém, qualquer um, eu não consigo sozinho. — Eles querem me matar! Por favor, me perdoem!
Tudo o que recebi foi silêncio. Pude ver cada um deles me observando entre as frestas das janelas. Eu acho que eles querem isso.
A marcha dos soldados cada vez mais próxima da minha trilha obrigou minha debandada até a próxima rua.
“Aqui mora a senhora Dalila, ela pode me ajudar!”
Bati na porta e ela se abriu, mas quando tentei entrar, fui barrado por uma corrente. Minha locadora nem tentou mostrar o rosto, apenas me atirou:
— O que você quer?
— Preciso me esconder, eles querem matar. Por favor, eles vão queimar o seu moinho.
— Não posso fazer nada, Paloma. Vá pedir ajuda em outro lugar. — E assim outra porta se fechou.
“Eu tô sozinho.”
A dor aumentou a cada segundo. Senti que se vomitasse, meus órgãos internos sairiam junto.
Tudo o que me restou foi correr com o pouco de energia em mim, ao menos com Ascálafo em meu flanco, a solidão era amenizada.
— Já estou vendo a saída, é por aqui! — Apontei para ele ir à frente. Voando, ele conseguiria garantir a própria segurança, não tinha porque o atrasar comigo.
Para o meu azar catastrófico, dois guardas viraram a rua e me bloquearam. Suas lanças foram na minha direção e eles avançaram para matar… Era o meu fim, o fim do observador de pássaros.
No mesmo instante, meu companheiro entrou na frente, passando pelas lanças e dando um rasante no pescoço dos paladinos. Nem me questionei como ele estava conseguindo voar com tamanha velocidade mesmo estando ferido, mas pouco importava, ele me abriu o caminho.
Olhei para trás uma última vez, receoso em deixá-lo sozinho, só que ele pareceu estar… vencendo? Assim que avançou no pescoço de um, ele caiu tremendo no chão e o outro golpeou o próprio colega no susto.
“Os paladinos da inquisição são covardes?”
Conforme marchei de volta para casa, pude ouvir o pelotão na minha cola.
“Esse é meu último dia nessa terra, mas eu prometo que não irão machucar nenhum dos meus pássaros…”
Desta vez, na mesma medida que atravessei segmentos do caminho, ouvi uma dezena de bateres de asa erguendo voo. É provável que os stolgiformes estejam recuando por conta dos guardas.
— Isso não é bom, vão embora! Não voltem mais aqui! Não é seguro para vocês!
Menos de 30 metros à frente já pude enxergar o moinho.
Novo plano: entrar, abrir todas as gaiolas e janelas e ganhar tempo. Nada mais. Infelizmente, quando estendi a mão para alcançar a porta, paralisei no mesmo instante com uma dor aguda na parte inferior do meu corpo. Uma flecha me pegou.
Olhei para trás tentando achar o culpado, e Sariel era o único na frente do pelotão com um arco. Eu não fui rápido o bastante.
— Pessoal, já sabem a ordem. Deixem ele vivo.
O observador de pássaros esperneou, gritou e tentou fugir, mas os paladinos o arrastaram para longe do moinho. Em questão de segundos, cada um daqueles homens sucedeu o linchamento, golpeando-o em seu estômago e fazendo sua ferida aberta doer ainda mais. Ainda por cima, o ergueram pelos cabelos e viraram seu rosto na direção de seu refúgio — estavam cobrindo as paredes com óleo.
— Não é nada pessoal, Simon — começou o capitão. — Mas o povo precisa voltar a ter fé na igreja. Se não fosse você, seria outra pessoa. Você está fazendo um trabalho nobre. Quando chegar nos campos dourados de Hanóth, quero que procure pelos seus amigos em alguma macieira dourada. Você conquistou a sua eternidade, nem precisou fazer nada para agradar ninguém. Eu o saúdo, observador de pássaros.
Meu corpo perdeu as forças e meus braços enfraqueceram junto da esperança. Tudo o que me restou foi fechar os olhos e ter várias lembranças repassadas de uma só vez: meu avô, a senhora Dalila, as expedições com minhas aves. Tudo isso chegou ao fim. Não me entendam mal, eu queria lutar. Queria que todos eles morressem de uma vez só e eu pudesse seguir pacificamente com a minha vida em outro lugar, mas eles eram mais fortes. Lágrimas escorreram pelo meu rosto e o que sobrou do meu espírito evaporou… Só que de repente, as coisas ficaram quietas. Muito quietas.
Woosh…
Ao abrir os olhos, me deparei com todos os 21 homens olhando na direção da minha cerca. Foi um pouco difícil dizer que expressão tinham na face já que estavam todos de elmo, porém, captei um certo receio. Tentei esticar o pescoço para ver o que iriam fazer, só que eles apenas ficaram ali parados. Estavam observando Ascálafo em cima do cercado. No momento que o paladino escolheu me soltar, eles sacaram suas armas.
— Hoot.
Eu não receberia outra chance dessas. Mesmo com dor em todo o corpo e sangrando, corri para dentro de casa. De imediato, virei minha estante na frente da porta e complementei com a mesa de escrita. Meus pássaros estavam apavorados com o que estava acontecendo, fui tolo em não ver o real motivo. Me joguei contra a barricada e tentei ao máximo proteger a entrada de qualquer paladino. Eu não me equiparava a eles em força, definitivamente eles arrombariam sem problemas. Minha maior preocupação naquele momento foi Ascálafo. Ele se… não. Eu sacrifiquei ele pelo bem dos outros. Ele deve me odiar agora.
Assim que notaram meu sumiço, ouvi alguns paladinos baterem na porta com força. Até tentaram atravessar suas lanças na minha estante de cedro. Depois disso, ouvi o som indistinguível de lâminas colidindo, contudo, nenhum som de asas batendo — provavelmente já haviam lidado com a coruja. O curioso era terem começado uma luta. Com o que estariam lutando? Será que o monstro de antes decidiu aparecer de dia? Ouvi o mesmo som de patas da última vez, aquela coisa pesada e monstruosa, mas não ousei ir ver que monstro era. Agora ele estava do meu lado para me livrar desses covardes.
— Mas o que é você? — Reconheci a voz de Sariel mais ao longe. Ele estava com aquele mesmo tom amedrontado de quando falou com o reverendo. Em seguida, lâmina contra lâmina, aço contra aço, e corpos sendo atirados.
Mesmo estando tão perto do campo de batalha, eu só pude ouvir armas errando o alvo de forma desajeitada e os paladinos caindo no chão e gritando de dor.
“Contra o que eles estão lutando?”
Tentei me erguer para ver o embate, mas a dor na minha ferida piorou de repente e senti mais uma vez aquela forte dor de cabeça, só que dessa vez, até mesmo as aves ficaram em choque.
Era tão forte que não pude nem me manter de pé — fui ao chão apertando as laterais do crânio ao som de centenas… não! Milhares de asas leves batendo. Meus pássaros começaram a tentar se esconder na dispensa e os homens da igreja soltaram um grito agonizante.
O alvoroço parou e minha dor de cabeça foi junto. Também senti minhas memórias do dia anterior ficando… embaçadas, como se eu as estivesse vendo por uma lente fosca. Horas haviam se passado, mas para mim, foram apenas minutos.
“Alfarde? Não dá para ver essa estrela sem um telescópio…“
Enfim me ergui e percebi que o dia lá fora já havia se transformado em noite, fortalecendo mais ainda minha teoria de que haviam se passado horas. Depois de muito pensar e recolher coragem, empurrei a estante e a mesa para fora do caminho. Uma mão minha, a na maçaneta, ficou encharcada de suor; a outra, na ferida, de sangue. Eu respirei fundo, fechei meus olhos e me preparei para o pandemônio do lado de fora. Corpos para todo lado, minha coruja despedaçada, talvez até o monstro devorando o Sariel. Rodei o punho, puxei a porta, e quando abri meus olhos…
Apenas o som dos grilos. Não havia nada. Nem marcas de sangue, nem sinal de briga ou terra movida. Era como se eles nunca tivessem vindo.
Para falar a verdade, havia sim uma coisa. Enquanto eu ainda estava pasmo olhando em volta a procura dos paladinos — ou dos restos deles — não percebi na pequena coruja me olhando confusa, tal como na primeira vez que abri a porta para ela.
— Ascálafo! Você está… bem?
— Oh-Hoot! — Suas penas remexeram e ele abriu suas asas. Nem um arranhão ou sinal de cansaço. Se me perguntassem, diria até que não perdeu nem uma pena.
═───────X◇❤──────═
“Vilarejo da Solha das pedras, no condado de Dourado Marinho. Me pego escrevendo em meu diário mais uma vez. Eu finalmente me decidi. Minhas malas já estão prontas e tenho rações o suficiente para uma viagem de duas semanas. É mais do que o suficiente para mim e para meus colegas. Amanhã de manhã planejamos ir embora do ducado de Emalhe para seguir rumo ao ducado Caçoeiro. Nossa rota evitará contato com o condado vizinho, Badejo, a fim de não sermos parados pela inquisição imposta pelo vilarejo Imperador. Suponho que a melhor rota seja por Pescada Branca, mas é possível haver um atalho se eu seguir pela floresta.”
“Não consigo explicar exatamente o que me aconteceu nesses dias, mas mudou completamente a minha visão de mundo. Eu não posso deixar as informações que consegui serem deixadas de lado, portanto, quando garantir a minha segurança e a de meus colegas, enviarei uma carta direcionada ao Bispo Cícero para mobilize uma investigação ao reverendo Roel e ao paladino chefe da inquisição, que agora está desaparecido. Não encontrei rastro nenhum deles após arrumar minhas coisas. Dada a natureza medrosa do homem, não me admiraria que ele tivesse fugido com seus homens ao ver o monstro. O que me intriga é o porquê de não terem lutado.”
“Sim, acredito que o monstro da floresta seja de fato poderoso, mas 21 homens contra uma criatura teriam deixado marcas no campo de batalha. Minha teoria é que, ao ver o monstro urso, Sariel deu um sinal para seus colegas fazerem o máximo de barulho para tentar afugentar a criatura. E quando isso não deu certo, partiram em retirada à floresta para se esconderem. Agora, o que eu não consigo explicar de jeito nenhum é como não deixaram nenhum rastro. De todo modo, não é problema meu. Registro aqui em meu diário, na pós-véspera outonal, que eu, Simon Paloma e meus assistentes de campo: Martin Jr., Marx, Bourdieu, Durkheim, Weber e Ascálafo, sobrevivemos à represália da igreja e não planejamos dar meia volta.”
— Acho que isso está bom. É melhor eu organizar logo as coisas e ir logo. — Fecho meu diário e posso enfim esticar meus braços. Será uma jornada longa, mas posso dizer que estou livre. — Pessoal?
É estranho o que irei dizer: Por alguma razão, meu moinho ficou mais quieto. Ao tentar levantar, reparo o livro que caiu da estante quando barriquei a porta. Devia ter deixado isso tudo quieto e ter ido embora quando podia, nunca devia ter aberto aquela porta.
Stolas, significa vestimenta na língua antiga. Entretanto, não foi isso que o livro dizia. Aproximei meu lampião para ler melhor e descobri um novo significado para a palavra, não como um substantivo comum, e sim, um próprio:
“Stolas é um grande e poderoso príncipe que governou 26 legiões demoníacas. Geralmente aparece na forma de uma ave esperta. Ele é capaz de ensinar sobre astronomia, e sobre outras virtudes das ervas e pedras preciosas.”
Aquela dor de cabeça retorna.
“Por que tudo ficou tão quieto do nada?”
Tinha certeza de que eles estavam cantando até agora pouco. Minha cabeça me mandou olhar para trás, mas meu corpo se recusou.
“A porta está à minha esquerda, se eu for rápido o suficiente, talvez eu…”
— Sabe… eu não esperava que você fugisse na primeira vez que me viu. — Uma voz grossa se manifestou a poucos passos atrás de mim. A voz era penetrante, imponente, e soava como a de um nobre. Além disso, no instante que notei ela perto de mim, senti o chão de madeira flexionar com o peso de algo grande. — Eu estava morrendo de fome, sabia? Mas creio que viver sendo paparicado tem suas vantagens. Estou feliz de não ter comido você aquele dia, Paloma.
Eu quis me virar, meu cérebro me mandou fazer isso, mas… eu não encontrei forças. Com tamanho esforço, pude apenas virar o livro em minha mão. “Chave menor de Schlom”, um livro que eu não me lembro de ter adquirido e que incomoda minha visão só de ler o título.
— Olhe para mim, observador de pássaros.

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