Volume 1
Capítulo 13: Sentimento de Fraqueza
— Porra! — gritou Ezkiel quando o pano encharcado de álcool tocou sua ferida aberta.
A queimação foi lancinante. O ferimento estava feio e, quanto mais olhava, mais preocupado ficava. Não sabia como as coisas funcionavam neste mundo, mas, pelo estado de seu corpo, as lacerações profundas e a perda de sangue indicavam que aquilo não se curaria facilmente. Precisaria de uma transfusão, ou talvez até perdesse o braço por infecção. Seu talento, Torturado, parecia lhe dar uma sobrevida, mas os espasmos lhe diziam que estava no limite. Sentia que seu corpo podia colapsar a qualquer momento.
“Esse talento parece ligado à minha vontade de continuar, mas precisa de um estado de espírito específico para se manter ativo. Agora que as coisas se acalmaram, sinto seu efeito diminuindo...”
Eram deduções puramente empíricas, provavelmente cheias de falhas, mas Ezkiel precisava criar certezas para construir suas bases. Uma delas era conhecer seus próprios limites, pois sabia que esta não seria a última vez que ficaria tão machucado.
— Você tem um palavreado de merda para um prisioneiro tão antigo. Alguém da sua idade deveria falar como os magos do Império, ou os emissários das grandes igrejas. — A mulher deu um sorriso, pegando o pano sujo de sangue escuro e jogando-o num balde antes de embeber um novo em álcool.
— Quando você diz emissários, quer dizer acólitos? — Ezkiel perguntou, ainda confuso com as nomenclaturas. O mundo parecia ter mudado muito desde que ele fora aprisionado.
— Acólitos? Deve ser a mesma coisa. Sei lá, nunca fui muito religiosa. Minha mãe orava para a lua menor quando eu era mais jovem, mas, depois que ela morreu, eu nunca mais segui nada.
Ezkiel se retesou de dor com o álcool invadindo sua ferida mais uma vez.
— Entendi... — Ele fez uma pausa, refletindo sobre a diversidade de deuses e como isso deveria funcionar. — E o Império... é onde estamos agora?
— Sim e não. É complicado. No nome, este território pertence ao Império, mas se tornou uma zona corrompida, uma área contaminada, zona da morte, como preferir. Os Outros surgiram aqui, e poucas formas de vida sobreviveram. Apenas os exilados ou exploradores se aventuram por este lugar.
— E por que vocês estão aqui? Vale a pena arriscar sua vida para ficar nesse lugar?
— Alguns vêm pela riqueza, outros porque foram expulsos de seu país. Mas a maioria que vive na Torre do Sino não tem escolha. Nasceram aqui e não possuem força para sair. Seus pais eram exploradores ou exilados, e o Império está se fodendo para ambos. Com dinheiro suficiente, você pode entrar em uma cidade e começar uma nova vida. O problema é conseguir o dinheiro... e chegar até lá vivo.
“Então este mundo tem um sistema político bem diverso. Achei que seria apenas feudal, mas já existe contexto de cidadania e países. Deveria ter imaginado, depois de ver as roupas dos acólitos, emissários. Tanto faz!”
— O Império fica muito longe daqui?
— Não sei a distância certa, mas é aproximadamente três meses com um bom cavalo. A pé, é suicídio. Os Outros fizeram esse local de sua casa. Nem mesmo as elites, como você, que possuem um dom único, conseguem sobreviver lá fora. Sem contar os bandidos e magos que vagam por essas áreas.
Ezkiel paralisou por um instante. De novo, entendeu: este mundo era mais cruel do que ele pensava. Aquela garota, pouco mais velha que ele, vivera a vida inteira neste inferno. Na tentativa de conseguir uma grande quantia de dinheiro para conseguir ter o mínimo de conforto, mas para isso precisaria enfrentar criaturas horrendas e lutar por sua vida, ou desistir e se conformar no inferno.
— Que merda... Sinto muito por você ter que viver isso.
A mulher o encarou. Olhou para seu estado lastimável — quase um cadáver, desnutrido, pálido, careca, preso a correntes que valiam mais que ouro — e não se conteve. Ela riu.
— Pelos Deuses! Você ainda sente pena de mim? Olhe para você! Eu é que deveria sentir pena. Aliás, meu nome é Lavia. E o seu?
O garoto observou Lavia rindo. O sorriso dela era bonito quando não estava segurando. Ele entendia por que ela usava aquela máscara; precisava dela para sobreviver. Foi forçada a se tornar uma guerreira para aguentar a realidade cruel.
No entanto, as palavras do prisioneiro acorrentado ecoaram em sua mente.
"Nomes têm poder neste mundo. Se eu soubesse seu nome poderia ter controle sobre você."
— Apenas um prisioneiro.
Lavia o encarou. O rosto dele estava distante, pensativo. Revivia uma experiencia distante que lhe marcar profundamente. Ela entendeu a recusa e sentiu uma ponta de vergonha por ter insistido. Ainda eram estranhos.
— Okay, prisioneiro. Vou começar a te costurar, então aguente firme. Beba um pouco do álcool, se quiser, para aliviar a dor.
Ela lhe entregou a garrafa, levantou-se e foi até o fogo, onde a ponta de uma longa agulha brilhava em brasa no meio do carvão. Usando um pano, ela a pegou, mergulhou-a na água para esfriar e passou um fio pelo buraco.
A agulha perfurou sua carne, mas a dor não foi nada perto do que imaginava. Apenas mais um desconforto casual depois de tudo que passara.
— Sua resistência à dor me lembra a dele. — Lavia soltou o ar entre os dentes, as mãos precisas, mas lentas, perfurando sua pele. Ela tinha experiência nisso.
— Lembra quem?
— Barton. Ele nunca fazia caretas quando eu o costurava. Sempre com a mesma cara fechada, até mesmo quando cuidei do olho arrancado dele. Todos acharam que ele morreria, mas o bastardo aguentou dias de febre. Ainda voltou e matou a criatura. Foi assim que ganhou o título de Leão.
Um leve sorriso surgiu enquanto ela contava. Seus olhos pareciam ver as lembranças de uma outra época, talvez mais feliz.
— Lavia, por que você está morando aqui? Não está junto com o restante do seu povo na Torre do Sino.
— Você está perguntando muito para alguém que nem mesmo quer dizer o seu nome.
Ezkiel sentiu a agulha perfurar mais fundo. Não soube se foi proposital, mas não podia discordar dela.
— Você está certa. Desculpe.
Lavia olhou para ele, fez um negativo com a cabeça e continuou a costurar, parando apenas para ajeitar o cabelo atrás das orelhas com as costas da mão. Ezkiel a observou de novo e, talvez por sua situação, notou que a garota era realmente bonita. Uma beleza natural e rústica, diferente do costumeiro em seu mundo
— Você é estranho, prisioneiro. Realmente estranho. — Ela percebeu o olhar dele, mas não parou o trabalho. — Briguei com umas pessoas de lá. Resolvi sair para não causar mais conflitos. Existem pessoas boas lá dentro, que não mereciam essa briga.
— Você não parece ser muito de briga, sendo bem sincero.
— Não sou mesmo. Mas as coisas esquentaram e eu não me aguentei. Sei que não fariam nada comigo, mas me senti traída e preferi me esconder. — Ela respirou fundo. — As coisas eram mais fáceis anos atrás, antes dos mais fortes partirem. Não posso culpá-los por quererem tentar fugir, mas eles deixaram muita gente para trás, sabendo que iríamos morrer. As coisas só pioraram nos anos seguintes: mais gente chegou, Barton assumiu tarefas mais perigosas, brigas internas começaram... exploradores foram mortos pelos Outros... crianças tiveram que ir para as ruas lutarem seu lugar por alimento.
Ela parou, parecendo segurar um nó de tristeza e raiva na garganta.
— Anos se passaram, e eu fui aceitando as coisas. Na verdade, forçada aceitar a situação. Barton virou líder da exploração, se uniu com pessoas que acreditavam que as crianças precisavam lutar para não ocorrer o mesmo de antes, para ninguém ser deixado para trás. Mas, sem treino, elas apenas morriam. Os filhos da puta só queriam uma desculpa para encher mais a barriga, dividir menos dinheiro e se livrar de pesos mortos. E Barton sabia disso! Ele sempre soube...
Ela parou e seus olhos encontraram os dele. Ezkiel estava imerso na história, sentindo o desespero, a raiva e a compaixão que emanavam dela. Algo crescia dentro dele, uma fome que não sabia nomear, um anseio que preenchia seu corpo.
— Foi aí que tivemos nossa maior briga. E terminamos. Ele me encarou com aquele olho leitoso, segurou a espada e foi embora. — A expressão dela mudou, a postura se alongou, o queixo subiu. Por um segundo, Ezkiel viu Barton nela. A voz de Lavia saiu diferente, imitando a dele:
— Eu sou sua única chance de sair deste lugar, Lavia. É por isso que você aceitou tudo até hoje. Sabe que não há esperança sem mim. Quando parar de bancar a santa, estarei te esperando na caravana.
Lágrimas teimosas se prenderam nos cílios dela. Ambos sabiam o motivo da dor: porque era verdade. Porque, no fundo, ela queria voltar. Ela também queria viver segura, mas se recusava a se tornar um monstro. Entretanto, não havia outra forma. No fundo ela queria que existisse uma alternativa.
《 Um Sonho foi detectado 》
《『Coletar Sonho』pode ser ativada 》
Os olhos de Ezkiel brilharam em um tom púrpura. O desejo, a fome, o anseio... não era pela garota que chorava à sua frente, mas pelo sonho dela. Era isso que ele desejava, de uma forma tão primitiva que a euforia tomou sua mente.
“Um sonho. Eu preciso...”
Antes que cedesse à vontade de tomá-lo para si, de devorá-lo até não sobrar nada, sentir a sensação de um novo poder preenchendo seu corpo e os fios unindo-se ao seu filtro de sonhos.
Ele paralisou.
Lembrou-se do pavor nos olhos do antigo prisioneiro quando sua última centelha de existência foi consumida. Havia devorador a única coisa que sobra do homem após anos de prisão e esquecimento. Não queria o mesmo para ela. Ela não merecia.
“Não posso. Não sei como isso funciona, não sei as consequências de coletar o sonho de uma pessoa viva. E não vou testar nela. Mesmo querendo muito, eu não posso.”
O brilho púrpuro desapareceu de seus olhos, mas a fome continuou à espreita. A vontade vinha com uma saudade estranha, fazendo-o vê-la não apenas como uma pessoa, mas como uma fonte de poder a ser coletada. Aquilo o assustava.
A garota se recompôs, limpando as lágrimas com as costas das mãos. Por sorte, não notara o comportamento estranho e a mudança nos olhos. Os dois ficaram em silêncio. Ezkiel lutando contra sua nova ansiedade, Lavia terminando a costura. Passou-se quase meia hora nesse silêncio ensurdecedor, tempo suficiente para Ezkiel formular uma ideia.
“Lavia falou que a parte de fora desse local é perigoso para ela e outras pessoas da Torre do Sino, mas eu não pareço ser uma pessoa comum nesse mundo. Nem sei se sou uma pessoa. Eu tenho habilidades únicas do filtro de sonhos e eles não parecem ter esse mesmo menu de sistema do que eu, se não ela teria falado. Preciso usar essa vantagem. Preciso entender como essas habilidades funcionam e como posso utilizá-las para fugir desse local antes que os acólitos me encontrem.”
Um arrepio subiu por sua espinha. Uma confirmação de seu próprio corpo.
Eles estavam se aproximando. E estavam perto.
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