Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 11 – Arco 4

Capítulo 50: Segure a Minha Mão

— Ririiiii!

— I-Isso machuca, Bella…

— Maaas o Alê tá me maltratando de novo!

— Maltratando onde, minha filha? Eita que drama.

— P-Pessoal, acho que vocês deviam falar um pouco mais baixo… Estão todos olhando para nós…

A cena que se construiu nos fundos da sala de aula foi apenas outra que se repetia quase todos os dias no Instituto Gnosis. Durante as pausas das aulas teóricas e a transição para as aulas práticas durante a segunda metade da manhã, Alexandre sempre espreitava entre os corredores procurando pelas garotas grudentas e o menino de face adorável.

Colocando de lado a estranha sensação de que acordar naquela manhã não foi tão agradável quanto nas outras vezes, o dia-a-dia de Bellatrix ao lado de seus amigos era uma montanha russa de acontecimentos emocionantes. 

As conversas triviais, as provocações do veterano que a provocava, os conselhos de Dio que sempre ficava constrangido com a bagunça e a passividade de Ryota eram o ponto alto de seu dia. Não era exagero dizer que Bellatrix apenas acordava cedo todas as manhãs e corria para chegar antes de todos na sala de aula não apenas porque precisava manter a dignidade como presidente do conselho estudantil, mas sim porque mal podia esperar para ver o rosto daquelas pessoas.

Depois de patinar pelas ruas de Celestia e adentrar o Instituto Gnosis sob os os constantes olhares aos quais veio a se acostumar, Bellatrix apenas acenou para todos que focaram sua atenção nela e sorriu. Independentemente de suas intenções ao a encararem, a garota não deixou passar um único traço de incõmodo com as risadas murmuradas ou com as expressões de zombaria, recebendo-as de braços abertos.

A longo prazo, havia aprendido a lidar com todos os tipos de comentários sobre ela. Se mantesse a cabeça erguida e o sorriso no rosto, as tentativas de rebaixá-la diminuiria drasticamente. Ao mostrar que não era atingida pelos apontamentos, os acusadores desistiam rapidamente de tentar envergonhá-la, mas os comentários maldosos continuaram a se espalhar. 

Não era que Bellatrix tentou se adequar às normas para ser menos alvo da maldade das pessoas — era o total oposto. A garota sequer escondia o quão espalhafatosa era sua personalidade e aparência. Seus cabelos de tonalidade forte, sua voz propositalmente alta e seus patins aos quais usava quase todos os dias eram apenas algumas de suas características marcantes.

Olhem pra mim!

Era o que parecia querer dizer. E quanto mais a viam, mais ela sorria. Eis o tipo de pessoa que era Bellatrix.

Até mesmo quando pessoas com uma noção de espaço melhores do que as dela, como Dio, tentavam lembrá-la de que às vezes ela se esforçava demais para ser notada, era quando tentava se retrair um pouco.

Mas naquele dia, quando Alexandre continuou a provocando apenas para tirar reações engraçadas dela, Bellatrix não pensou duas vezes antes de se jogar nos braços de Ryota e choramingar como uma criança perdida. Em resposta, Ryota se deixou ser abraçada, mesmo que um pouco apertado demais, e afagou a cabeça da ruiva com um sorriso leve.

Àquela cena, o prodígio bufou ao apoiar a mão na cintura.

— Viu só, pirralho? Não cresça e seja como ela. Aprenda a lidar com seus problemas sozinho.

— S-Sim, senhor Alexandre.

— Tá vendo?! Até um moleque com menos da metade da sua idade tem mais maturidade que você!

— Aaaaaah! Ririiiii!

Era óbvio que Bellatrix e Alexandre apenas estavam brincando com aquela atuação dramática ao ponto de chamar a atenção dos demais estudantes e deixar o rosto do pequeno Dio vermelho de vergonha, mas Ryota não se importava. 

Ela apenas conseguiu sorrir gentilmente para as lágrimas de crocodilo da amiga e olhou para o prodígio que fazia beiço com os lábios ao apontar para a ruiva.

— Pegue leve com ela, Alex. 

— E tu vai mesmo mimar essa garota? É por isso que ela fica choramingando assim. 

Ryota suavizou o rosto com o argumento afiado dele, e ainda ao som do choramingo de Bellatrix em seu colo e sentindo Dio se escondendo atrás dela com o constrangimento de tantos olhares, respondeu:

— Por favor?

— É só isso o que tem a dizer em sua defesa? Protesto negado!

— O que é isso? Algum tipo de julgamento?

— Sim! Estou julgando a cara de pau dessa pilantra!

— Ririii!

Ryota riu um pouco quando Alexandre cutucou a bochecha de Bellatrix, a fazendo abraçá-la ainda mais forte ao ponto de sufocar seus pulmões com a falta de ar. 

— B-Bella! Você vai matar a moça assim!

— Tá vendo só o que você fez?! E o pirralho precisou te falar algo tão óbvio mesmo?!

— Aaaaaah! Alguém me ajudaaa! 

Apesar de nervoso, Dio tentou se intrometer novamente, sua voz ainda mais pacífica do que nunca. Mas isso apenas desencadeou em outro sermão de Alexandre, o que fez Bellatrix institivamente continuar abraçando Ryota ao ponto de sentir que teria as costelas quebradas.

— … Q-Que tal… Uma pausa para… Comer? Por minha conta…

— Sério?!

— Ela mudou da água pro vinho…

— Que sem-vergonha.

Ryota tentou sugerir mesmo com a falta de ar, e tossiu de alívio quando Bellatrix suavizou o abraço instantaneamente, surpreendendo Alexandre e Dio. 

— P-Por enquanto, vamos descer, sim?

— … A-Alex, que tal irmos na frente para ocupar a fila?

— Espertinho você, hein, pirralho? Vamos, e não se junte com essa gentalha. E vê se vocês duas não demoram ou vou arrastá-las pelos cabelos.

Depois do olhar de súplica para Dio ajudá-la, o garoto compreendeu rapidamente e logo conseguiu tirar Alexandre da sala de aula. Ryota sorriu ao ver o menino ser empurrado para fora e ambos desaparecerem da vista, e então focou sua atenção novamente em Bellatrix.

Ela ficou aliviada porque por alguma razão desconhecida, ninguém reparou na mudança de tamanho de Dio além dela. Se havia algum tipo de manipulação ou poder que causou aquela situação, ainda era um fator desconhecido, mas Ryota não se impôs a saber.

O garoto havia deixado claro que ainda haviam coisas difíceis de serem ditas, e Ryota imaginou que não era apenas a vontade própria que impedia Dio de lhe explicar aquela mudança. Fosse a diferença de altura ou todos os demais acontecimentos durante a terceira provação, nenhum deles tocou no assunto, mas ficou implícito para Ryota que os motivos seriam ditos em um futuro próximo.

Ao menos, ela estava aliviada porque sentia que poderia confiar nele. Aos poucos, percebeu que nem mesmo amigos contavam todos os detalhes sobre suas vidas uns aos outros. E apesar do caso de Dio ser um pouco diferente demais, ela estava preparada para esperar pelo momento certo.

Não se ressentia pelas decisões dele, assim como Dio não se ressentia das dela. E ponto final.

O mesmo se aplicava a Alexandre e Bellatrix. Ainda que aquela pequena parte seja e covarde dela tivesse, no começo daquele dia, um pouco de medo com o tipo de encontro que teria com eles naquela manhã, seus temores foram rapidamente absolvidos quando Dio apertou sua mão.

— Vai ficar tudo bem. Confie em mim.

Ela tentou não pensar demais em como podia se sentir tão acolhida por uma figura tão pequena e inocente como a dele. Quase morreu de constrangimento quando precisou caminhar até o Instituto ainda segurando a mão de Dio, mas o garoto, por outro lado, pareceu mais do que contente em ser o pilar emocional que ela precisava.

E Ryota queria muito poder fazer o mesmo por ele, e pelas demais pessoas ao seu redor.

— … Bella?

Colocando as mãos nos ombros da amiga, Ryota a chamou com um murmúrio. Apesar da animação anterior, ela tinha encostado a testa em seu peito e ali permanecido, ainda a abraçando. Dessa vez, com menos força, mas mais como se procurasse um ponto de conforto.

— Você está bem?

Sussurrou de novo, sem saber como deveria abordar a questão do apego excessivo. Fazia algum tempo desde que Ryota gradualmente começou a perder o desgosto pelo toque físico, e parte dessa mudança veio pelo próprio esforço em tentar superar aquela fraqueza.

Antigamente, Ryota não tinha grandes dificuldades em começar conversas ou entrar em discussões emocionais. Agora, quando ela mesma estava aprendendo a lidar com aquelas questões, sentia-se um pouco preocupada em tocar nas feridas de alguém com descuido. Temia a reação que poderia causar ao outro, assim como haviam feito a ela.

Mas diferente das outras pessoas que geraram feridas e mexeram nelas apenas por entretenimento e regozijo, Ryota queria tocar e amparar. No começo, era dolorido e a atenção poderia ser facilmente confudida com suas experiências anteriores que foram ruins.

A própria Ryota afastou-se das pessoas temendo isso, antecipando o mesmo ciclo vicioso. Os mesmos passos foram dados esperando resultados diferentes, mas o mundo insistia em lembrá-la de que era impossível encontrar uma resposta alternativa quando não se encarava a origem dos problemas.

A raiz do mal que gerou aqueles ciclos viciosos era diferente para cada pessoa, e a resposta para esses mesmos conflitos nunca eram os mesmos. Era por isso que apenas o ponto de partida também era o ponto final — apenas assim era possível se permitir dar um novo passo em direção a uma nova jornada, uma caminhada familiar e dolorida que gradualmente se tornaria mais fácil quanto mais aprendesse a andar sobre ela.

Ryota queria repassar aquele conhecimento para os outros, também. 

“Conhecimento reflete ao estudo e a experiências. Em suma, é viver, ouvir, aprender… E ensinar.”

Apesar de todos os defeitos, Sofia ainda foi capaz de fazer Ryota aprender muito. E para isso, ela precisou observar, pensar, escutar e compreender. Foi necessário, e ainda seria, uma quantidade de tempo grandiosa para amadurecer e mudar.

— Você parece diferente hoje… Está tudo bem?

Ryota repetiu a pergunta quando não houve resposta, e suspirou ao colocar a mão na cabeça de Bellatrix. Seus dedos tocaram os cabelos trançados ao se permitir relaxar, ainda com os braços da outra ao seu redor.

O silêncio na sala de aula não pareceu incômodo, e os olhos azuis escuros dela se desviaram para a janela, para o cenário do lado de fora. O sol banhava o pátio do Instituto Gnosis, e era possível ouvir parcialmente o som de vozes espalhadas de outros estudantes e discentes durante o horário do intervalo.

Sua mente vagou para o passado, para aquilo que a terceira provação a ensinou.

O que eu deveria dizer agora?

Após alguns segundos, por fim, ela sussurrou:

— Aconteceu alguma coisa em casa? Com a sua mãe.

Ryota sentiu o corpo de Bellatrix ficar tenso, e parecia que acertou em cheio. Durante o primeiro retorno, quando visitou a casa da amiga, se recordava parcialmente da experiência de conhecer a mãe de Bellatrix, ao qual ambas pareciam se dar muito bem. A memória era calorosa e gentil, e Ryota pensou agora que ela era uma pessoa de sorte por estar ao lado de alguém tão importante para ela.

— Riri…

— Sim?

— Se… Quando tem um segredo que querem muito saber, mas esse segredo vai machucar de quem estou escondendo, você contaria mesmo assim?

Ryota ficou em silêncio, então sussurrou de volta:

— O quanto machucaria?

— Muito. Provavelmente, deixaria a outra pessoa arrasada com culpa.

As íris azuis dela ganharam uma sombra com memórias que faiscaram na mente, e Ryota brincou com uma das mechas do cabelo ruivo.

— O que acontece se você não contar?

— Ela vai ficar bem preocupada, mas… Ao menos não vai descarregar isso nela mesma. 

— Preocupada com você?

— … Bem, sim.

Ryota inspirou fundo. Era uma questão delicada ao qual desconhecia os detalhes, e ela mesma não se sentia no direito de dizer qual era a melhor decisão.

— Eu… Eu acredito que se a outra pessoa tem o direito de saber, e ela quer saber a verdade mesmo que isso a machuque, então… Ela deve saber.

— E se ela se culpar?

— Então, você precisa consolá-la.

— Mas eu vou me culpar se contar a verdade.

— … Mas carregar isso sozinha até o fim não seria pior?

Ela pensou no avô que perdeu a vida previamente carregando um segredo até o túmulo, cujos arrependimentos jamais foram ditos em voz alta. Lembrou-se de um rei que, por amor, recusou-se a revelar que sacrificou tudo pelo bem dos filhos que nem mesmo eram relacionados por sangue. 

Ryota lembrou-se do quão arrasada se sentiu com a morte, de quanta culpa, arrependimento e solidão acarretou em seu coração e no de Edward ao descobrir a verdade por outra mão. Foi traição, mágoa e fúria que surgiu a princípio, ocultando um desejo de, na verdade, corresponder os sentimentos de um pai que causou uma intriga grande demais para ser controlada. 

Fanes escolheu sacrificar a si mesmo, em todos os sentidos possíveis, para honrar e salvar Edward e Marie. E o que restou disso?

— Não sou digna de dizer o que é certo ou errado… Mas eu acredito que se você quer saber a verdade, precisa arcar com as consequências dela.

Ainda que doa, que se culpe e talvez até se arrependa da decisão — não se poderia descontar na outra parte por dedicar tanto tempo a proteger seu coração da informação. Mas se estava ciente de tudo o que poderia gerar, e ainda assim decidiu por tomar aquele caminho, tudo o que se poderia fazer era aceitar a realidade.

— Isso não significa que precisa fazer isso sozinha. Se a outra parte se ferir com a verdade, então você precisa estar lá para ajudá-la.

Quantas pessoas ao seu redor fizeram o mesmo? As decisões tomadas para ocultar e proteger por amor deviam ser respeitadas, assim como a decisão de saber essa verdade mesmo que doa. Não era possível desconsiderar os sentimentos de nenhum dos lados.

Bellatrix ficou em silêncio, e Ryota sentiu as mãos dela se agarrando no tecido de suas roupas com um pouco de firmeza ao ponto de seus dedos ficarem brancos.

— Mas… Eu tenho medo. 

Ryota apertou os lábios, ainda ouvindo os murmúrios.

— Eu… Eu não sou tão forte assim para ajudá-la. Além disso… Vai ter outra pessoa que vai colocar a culpa em mim por isso. Mesmo que ela não coloque, então ele vai.

Não sabia a quem estava se referindo, mas podia imaginar pelo tom de voz. Então, Ryota respondeu com outro sussurro, apoiando o queixo no topo da cabeça de Bellatrix.

— Vai ficar tudo bem. 

— Como pode ter tanta certeza?

Ryota deduziu que a umidade em seu peito eram das lágrimas de Bellatrix.

Ela vai protegê-la, então você não está sozinha. Se vocês derem as mãos e fizerem isso juntas, vão poder superar isso.

— Mas… Eu não…

— … Se não consegue se manter em pé sozinha, agarre-se à outra pessoa que está disposta a te ajudar. Mesmo que vocês duas não sejam fortes sozinhas, poderão resistir juntas.

Apesar de desconhecer a origem dos medos de Bellatrix, havia uma coisa que Ryota conhecia muito bem.

— Quando uma mãe ou um pai querem proteger seu filho, não há nada nesse mundo que os pare.

Era um sentimento de amor forte o bastante para afastar todo e qualquer instinto de sobrevivência pelo único propósito de manter em segurança aquilo que era mais precioso. 

Não importa se fosse para encarar uma Entidade que tomaria sua vida, ou para sacrificar-se no lugar deles, ou até mesmo suportar toda a dor e culpa para poupá-los de um sofrimento maior.

Poderia ser algo ainda mais simples, como passar a noite acordado para cuidar de seu filho doente e garantir que estaria sorrindo no dia seguinte — a afeição fraternal nunca falharia.

Ryota sorriu um pouco ao ouvir Bellatrix fungar.

— Ver alguém te protegendo tanto assim não te deixa com vontade de proteger essa pessoa também?

Nesse momento, o coração de Bellatrix batia forte o bastante para que pudesse sentir a vibração no próprio corpo.

— … E, se por acaso, ainda não for o bastante… 

Ela afagou a cabeça da amiga, que ergueu os olhos marejados e vermelhos na sua direção. Ryota encarou Bellatrix e sorriu calorosamente.

— Então, eu as apoiarei. 

As lágrimas escorreram novamente pelo rosto de pele escura, e Ryota passou o polegar para limpá-las de forma gentil. 

— Vou segurar a sua mão, e a mão dela também. E faremos isso juntas. Mas se ainda não for o bastante, então o Dio também vai nos segurar. E o Alex, e todos os outros que estiverem conosco.

Ela sabia que estava fazendo um discurso agora, mas Ryota não conseguiu parar as próprias palavras — pois sentiu que eram verdadeiras. Experimentou na própria pele a rejeição, e ainda assim estenderam a mão novamente para ajudá-la.

Havia recusado segurar naquele calor com medo de prejudicá-los. Bellatrix fazia o mesmo agora, e estando do outro lado, Ryota conseguia compreender qual era o sentimento de querer continuar estar ao lado dessa pessoa importante que estava sofrendo, mesmo sendo rejeitada várias e várias vezes.

Eu entendo agora, Dio.

Após limpar as lágrimas de seu rosto, Ryota sentiu que seu mundo ficou um pouco mais brilhante ao ver o sorriso leve de alívio de Bellatrix.

— … Obrigada, Riri.

A voz dela era tão doce que soou como música aos ouvidos, e Ryota percebeu que fazia um longo tempo desde que se sentiu satisfeita consigo mesma.

— Escuta…

— Sim?

Bellatrix afastou-se um pouco do abraço, mas manteve-se perto o bastante quando segurou a mão de Ryota na sua.

— … Que tal uma noite das garotas na minha casa?

Quando Ryota respondeu, havia rido com o nariz e apertado os dedos de Bellatrix em retorno.

— Eu adoraria.



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