Volume 2

Capítulo 38: Sonho da velha história

                       

— Podem atacar! — Nádia dá seu aval.

Diante de nós, umas seis caixas de pizza com três garrafas de coca trincadas de gelo estão nos seduzindo, oferecidas uma do lado da outra sobre o balcão de mármore que separa a cozinha da sala. Cada pizza, um sabor.

Roberto remexe os lábios com desejo, Maria Clara, a jovem de cabelos longos e pretos e usando óculos que controlava Zeppelin, franzindo o cenho sem acreditar.

Emma fica encantada e é uma das poucas vezes que vejo que ela está com alguma disposição e sem mal humor. Já Jamal... bom, ele tá praticamente babando como eu, mas não se preocupa nem um pouco em esconder esse fato.

Nessa hora lamento a Sashi não ter um corpo físico para aproveitar todo aquele banquete. Pizza de muçarela, calabresa, quatro queijos, frango com queijo, portuguesa, carne de sol — minha favorita — e uma que parecia ter sido inventada na hora e feita com tudo que tinha na cozinha, então a batizo carinhosamente de “pizza mistão”.

— UOOOOOOOOOOOOOOU!! PODE DEIXAR, MINHA PATROA!! —

— E quem vai pagar por tudo isso? — Maria pergunta, desconfiada.

— Eu. Quem mais? — Nádia diz com uma ponta de satisfação. — A Mandala paga muito bem seus funcionários, em especial, os Executivos. E vocês se esforçaram nessas duas semanas e tenho visto progressos consideráveis em suas habilidades, então nada mais justo que recompensá-los.

— Nádia, você é um anjo na terra! Por favor, seja minha mestra para sempre... Argh! — Jamal tem a orelha segurada pela Maria Clara e é trazido de volta até o lado da mesa em que estamos. — Ai, ai, ai, aiaiaiai!!

— Vai com calma aí, ô Dom Juan! — Maria o censura.

— Isso tudo é para nós mesmo? — Emma pergunta mais uma vez.

— É claro! Sirvam-se.

Era tudo o que ela precisou falar para que todos atacassem as pizzas como bestas esfomeadas. Sashi fica observando com certo desejo e é nessa hora que aproveito para pegar apenas um pedaço da minha pizza favorita, um copo de refrigerante e então subir para o andar de cima.

Eu não estava bem para socializar e não estou agora. Não é nada com os outros, mas é que não estou no clima. Sinto um profundo peso dentro de mim que, por vários motivos, não consigo amenizar.

Estou agora na varanda do andar de cima, escorado no parapeito gradeado de ferro, bebericando do copo de coca aos poucos e observando a bela paisagem noturna do bairro. Tirando uma outra aberração dos sonhos que aparece nas esquinas e ruas próximas e depois some, é uma bela vista. Nunca imaginei que São Paulo fosse uma cidade tão linda quando quieta.

Pedi privacidade para a Sashi antes de subir, então não imagino o que ela possa estar fazendo. Talvez ela se encontre por aí à procura de mais pesadelos para retalhar e eu entendo que ela queira fazer isso. É o que eu faria também, principalmente no estado de nervos em que ela se encontra.

Nós fomos os únicos que não tivemos progresso nenhum em meio mês de treinamento aqui e do jeito que ela é, deve estar se culpando por nossa estagnação. Jamal, Roberto, Emma, Maria Clara... todos eles, após as dicas e ensinamentos da Nádia, com os exercícios de mentalização e imaginação que ela tem propondo durante as sessões de espanca... digo, de treinamento, tem dado resultados.

... menos para nós, suspiro.

Sashi é bem poderosa e isso é fato. Sua velocidade, precisão e força brutas são bem acima da média da grande maioria dos personas, segundo a própria Nádia. Mas ainda assim, sinto que não é suficiente.

Na luta contra Enrico, conseguimos ganhar por pouco e com a ajuda da Emma e dos irmãos. Já contra Magic, sequer tivemos chance. E na arena, tretando contra o persona do Roberto, quando Sashi, no último minuto, conseguiu aplicar seu golpe, imaginei que perderíamos. A habilidade do Rei de Latão iria superar a simples força bruta da Sashi.

Imaginei... imaginei... imaginei... perder...

— Aaaah... o que eu tô fazendo de errado?! — Bato no rosto até sentir as bochechas esquentando com os tapas.

— Olha, acho que isso não é lá a melhor forma de se punir — A voz de Nádia surge atrás de mim com mais três pedaços de pizza em um prato e um copo maior de refrigerante. Ela está sorrindo com certa timidez e só naquele momento me dou conta do quanto ela era linda.

Viro o rosto bem rápido, focando na paisagem escura das ruas abaixo. Enquanto isso, ouço o vidro do prato bater com o da mesinha da área e ela fica do meu lado, seus olhos a focarem no horizonte noturno da cidade, os grandes prédios iluminando ao longe.

— Peguei mais alguns pedaços antes que aqueles esfomeados devorassem tudo. Não iria sobrar nada para você quando voltasse.

Não respondo nada e continuo a encarar o nada. Dentro de mim, fico feliz que ela tenha esse tipo de consideração por mim, mesmo que não sejamos próximos — sem falar que eu estava com vontade mesmo de comer mais e não tinha fé de que devorariam tudo tão rápido.

Nádia fica algum tempo em silêncio, também bebericando de seu corpo de coca até que ela volta a falar:

— Algum problema, Calebe?

— Alguns, você não quis dizer?

— Bem pior do que eu imaginava. — Mais uma pausa, mais um gole. — Quer falar? Todos estão lá embaixo.

— Não sei poderá me ajudar.

— Se for com a sua fictomancia, talvez só eu possa lhe ajudar.

— Você se acha demais pra quem se vende como tímida, né não? — comento sem qualquer pretensão de insultá-la

E pelo jeito ela não encara como insulto já que ela solta uma gargalhada. Aquela mulher é estranha em todos os sentidos. Ela é do tipo que é tímida e reservada, mas tem um persona que se acha a última coca do deserto e ainda sempre parece que está escondendo algo.

Mas ainda assim, sei que ela é uma pessoa confiável. Se o velho deixou a cadeira dele para ela, imagino que tinha um porquê.

— E então? — Ela se aproxima perigosamente de mim, seu braço roçando no meu e seu rosto bem perto do meu. — Quer desabafar comigo?

— Ah, não é nada demais... — Droga! Como posso ficar tão sem jeito perto de meninas? — É só que eu sinto que tô marcando passo esse tempo todo.

— Como assim?

— Quando você disse que todos tinham feito progresso, eu me senti meio mal. Sabe, eu sinto que eu e Sashi não evoluímos nada nessas duas semanas. — Olho para minha mão com certa desmotivação. — E ainda por cima, a Sashi pensa que a culpa é dela. Eu me sinto o único responsável por isso.

Nádia então ri de repente, me assustando. A risada dela quebrando em falsete quebra o silêncio das ruas abaixo e chama a atenção de um cachorro cagando lá embaixo.

— Que é tão engraçado?

— Calebe, isso que você tá passando é normal — tranquiliza. — Todos tem seu ritmo e sua forma de compreender a Gnosis. Alguns mais rápido que outros. Outros mais difícil que outros. O processo de conhecer a si mesmo e perceber as formas que seu coração se molda àquilo que acredita acontecem de maneira diferente para cada um.

— É mesmo?

— O conselho que posso dar para você é: dê tempo ao tempo.

— Só que eu não tenho tanto tempo, não é? — digo com um suspiro. — Preciso ficar logo mais forte ou não vou conseguir salvá-lo.

Mais silêncio, com Nádia mordiscando um dos meus pedaços de pizza.

— Seu amigo, né?

Confirmo balançando a cabeça com preguiça. Não estou com disposição nem para gesticular.

— Posso contar uma história?

— Ah, claro. Pode. Sobre o quê?

— É sobre como entrei na Mandala.

— Olha a esquisitona! Hahaha!

— Que foi, rolhinha? Não consegue alcançar os óculos?

O grupo de meninos ergueu os óculos da pequena Nádia como um tutor de um cachorro segura um osso. A menina saltitava para tentar pegar seus óculos redondos, mas foi empurrada pelo gorducho. Ela caiu sentada no pé da parede enquanto o trio de valentões ria.

— Caraca! Eu senti um tremor aqui. Será que foi você?

— Vai derrubar a escola desse jeito. Hshahaha!

Sem conseguir pegar seus óculos de volta ou se levantar, o que restou foi chorar sentada.

— Ei!

Um menino apareceu na entrada da sala, encarando os três garotos mais velhos. O do meio, e o que segurava os óculos da menina, franziu as sobrancelhas e fez careta.

— Hã? Tu de novo, menor? Tá querendo apanhar?

— Deixem a Nádia em paz! — exigiu ele.

— E se a gente não quiser deixar? — O mais velho deles e líder, Caique, afrontou.

— Aí eu vou... vou... encher a cara de vocês de porrada!

O trio se entreolhou e então caíram na gargalhada. A menina observava, assustada, entre os espaços dos dedos que cobriam seu rosto. O que ele estava pensando em fazer, ela se perguntava.

— Então vem encher a minha cara de porrada, se conseguir.

Agora a atenção deles estava toda no menino. O pequeno herói se jogou em cima do trio de bullies com um grito desafinado de guerra, os punhos franzinos tremendo de medo. Os dois das pontas foram para cima enquanto que o líder deles sequer se moveu, somente assistindo.

A garota também assistia aquela briga... ou melhor, aquele massacre. Os dois valentões eram mais velhos — umas duas séries acima — e já tinham o costume de se envolverem em brigas fora da escola.

O garoto não teve nenhuma chance.

No fim do dia, Nádia ajudava o menino que foi espancado a voltar para casa. Ele era um pouco mais baixo que ela, magro e torto. Seu cabelo estava sujo, seu uniforme, estropeado. Parecia que tinha sido atropelado por um estouro da boiada.

Nádia não estava melhor que ele. Seus óculos empenaram e parte da lente esquerda trincou quando o maior deles deixou cair no chão e então chutou até ela.

— O-O-Ooo que você tem na cabeça, hein? Eles t-t-te machucaram feio! — Nádia reclamou.

— Mas pararam de te incomodar — sorriu o menino. — É isso que importa.

— N-n-não precisa apanhar por mim.

— Eu já apanho deles quase todos os dias, quando não tem dinheiro pra merenda. Não faz, ai... ai... diferença mesmo. — Ele levanta o rosto inchado com certa dificuldade e aponta. — Pronto. Aqui é minha casa.

— Eu... eu não... sei como agradecer. Obrigado... viu?

— Ah, de nada. Pode me agradecer dizendo seu nome, que tal?

— É... N-N-Nádia.

— Nádia?

A menina corou e abaixou o rosto, completamente sem jeito. Esperava risadas ou um rosto confuso. Até mesmo perguntas do porquê ela ter um nome tão incomum. Se surpreendeu quando não veio nenhuma das opções.

— Uou, que nome bonito! Prazer. Eu sou Misael! — Ele estendeu a mão para ela com um sorriso.

A garota ficou sem entender e, relutante, o cumprimentou de volta com o rosto ruborizado.

— Se aqueles valentões te perturbarem, eu vou te salvar de novo, tá bom Nádia? — Ele acenou, já detrás do portão gradeado de sua casa.

Ela só concordou com a cabeça e foi embora. Enquanto a observava ir embora, Misael esperava que ela olhasse para trás, mas depois de esperar certo tempo, desistiu e entrou.

Assim que ele saiu do portão, Nádia olhou de volta e não o viu mais. Ela então abaixou a cabeça e segurou uma mecha de seu cabelo crespo, corada e sorrindo de leve.

— Menino doido.

Os dias se passaram e Nádia sempre o encontrava na escola assim que chegava de manhã. No começo, a presença dele incomodava Nádia, que se acostumou a ficar sozinha. Ele era como um chiclete que gruda na sola do seu sapato e você não consegue se livrar.

Ela queria que ele o deixasse em paz, que parasse de se sacrificar por ela sempre que o grupo de valentões a incomodava, mas ele não conseguia deixar de bancar o herói, não importa o quanto apanhasse.

Mas aos poucos, ela começou a apreciar sua companhia. Nos horários do recreio, eles se encontravam, dividiam os lanches e conversavam sobre tudo. Sobre as aulas difíceis, sobre as provas assustadores e sempre fofocavam sobre os professores malas que passavam trabalhos demais.

Não só isso. Falavam sobre brincadeiras, seriados e desenhos. Ele até mesmo mostrou um caderno de desenhos que tinha e vivia se gabando que iria fazer melhor que os desenhos que os dois assistiam na televisão. Nádia adorava.

A que antes esperava e via o recreio como uma forma de ficar sozinha e longe dos olhos inquisidores dos colegas, agora ansiava porque era o momento que tinha para ficar com seu novo melhor amigo. Sempre que chegava de manhã na escola e não via Misael, se perguntava se tinha ficado doente ou outra coisa. E na saída, sempre voltavam juntos para casa, um contando sobre o dia pro outro.

A casa de Misael ficava a dois quarteirões de distância da dela, o que permitia que se encontrasse em uma praça perto dali para brincar. E era só nesses momentos que sentia genuinamente feliz. Podia ser quem era de verdade. Misael era o único que a fazia esquecer da escola sufocante, das brigas constantes dos pais, do clima pesado em casa...

E... daquelas coisas. Aqueles monstros que sempre conseguia ver quando dormia, que infestavam seus pesadelos e a faziam gritar de noite.

— Nádia. Bora marcar de se encontrar no parquinho? Quero te mostrar uma coisa que fiz.

— Se for mais minhocas que você pegou na rua, eu dispenso — disse Nádia, com uma careta verde.

— Nhem! Não é isso. Você vai gostar! Até amanhã! — Ele se despede dela e a menina vai embora para a sua casa, saltitando de felicidade.

Ao chegar em casa, seu pai tinha acabado de machucar sua mãe no rosto e uma viatura da polícia estava levando-o. A menina, com rosto horrorizado, se apressou para ir até a cozinha. Respingos de sangue sujavam todo o chão.

Sua mãe estava seriamente ferida e uma faca estava cravada no tampo da mesa. Sua tia conversava com ela e, pelo que via, aparentava ainda estar muito nervosa e emotiva. Ao ver a mãe machucada, a pequena Nádia foi até ela para tentar confortá-la.

E levou um chute forte na barriga em seguida.

— Marcela! Para com isso! — A tia de menina gritou com horror. — Ela não tem nada a ver...

— Tem sim, Mariana! Não chega perto de mim!

A menina se ergueu com dificuldades do chão, encarando o olhar irreconhecível da mãe. O que antes era amor e ternura, transfigurou-se numa assustadora expressão de ódio e nojo.

— Mamãe?

— Eu não sou sua mãe, sua nojenta! Fica longe de mim!

— Mamãe... por que... por que você tá...?

— Eu vou te matar.

Mariana a afastou a mãe nervosa, a empurrando de novo. Segurou-a enquanto ela gritava, esticando o braço para alcançar a faca ensanguentada até que outros primos e tios da família entraram e a seguraram.

— É tudo culpa sua! Se você não existisse, isso nunca teria acontecido! Eu te odeio!

A menina afastou nervosa, sem conseguir respirar e tendo que sugar e soltar o ar pela boca enquanto as lágrimas escorriam dos olhos esbugalhados. Um de seus tios a levou e ela passou a noite na casa dele, sem conseguir dormir. Ficava se lembrando das cenas horríveis que viu, do rosto assassino de sua mãe querendo ir para cima dela para machucá-la.

E sabia que mesmo que conseguisse dormir, aqueles sonhos voltariam... aqueles monstros.

No outro dia era sábado e acordou tarde para o encontro por não ter conseguido dormir. Se levantou rápido e apressou-se para se vestir e ir encontrar Misael no parque do bairro. Mesmo que ele não quisesse lhe mostrar ou lhe dar nada, somente sua presença a acalmaria, a confortaria, a alegraria.

Mesmo com o coração pesado, ela se despediu do tio e foi encontrar com seu amigo. Imaginava o que ele teria de tão importante para lhe mostrar que teve que marcar um encontro só para isso. Devia ser algo importante e especial.

Será que ele vai... me pedir em namoro?

A menina ficava toda sorrisos, com flores e brilhos a rodeando, com a possibilidade e apressou o passo para chegar logo.

Somente para ter seu mundo apagado ao seu redor mais uma vez.

Ela assistiu a inominável cena do trio de valentões de sua escola afogando o franzino Misael no tanquinho do parque, o maior se acabando de rir.

O que eles estão fazendo?!

O menino se debatia, mas era inútil. Um o segurava pela nuca e as costas, outro imobilizava seus braços em uma dolorosa chave de braço.

Parem com isso, a menina pensava enquanto tremia.

— Parem! — Sem pensar, sem sopesar as consequências, ela se atirou sobre os garotões.

Os três notaram a pequena menina correndo em direção ao maior, Caique, e o segurando forte, empurrando-o para trás. Ele riu e puxou os cabelos dela. A menina uiva de dor e afrouxa o agarrão.

— Ah, quer dizer que agora é tu que quer dar uma de heroína? Quer salvar o heroizinho? — Ele aproximou o rosto angular e cheio de sardas do dela, sorrindo com maldade.

— Larguem... ele.

— Ah, mas é que ele tá tão seco que pensamos que ele precisa de um pouquinho de água para se hidratar. Meus parças só tão dando uma ajudinha pro nosso amigo ali, né?

— Misael!

Aos poucos Misael foi reduzindo os movimentos, os coices e os espasmos se tornaram menores até que pararam. Suas pernas amoleceram e os braços pararam de lutar. Sobre o batente do tanquinho ele ficou e foi só então que os meninos soltaram.

— Ih, Caique. Acho que ele desmaiou de tanto beber água — brincou um dos moleques.

Assim que soltaram, Misael cai sem vida no chão de terra do parque, seu caderno de desenho ao lado de um rosto inchado, vítreo, sem brilho, sem vida. Nádia desesperou e começou a gritar e se debater, arranhando o rosto de Caíque no processo.

— Ai, sua idiota! — Ele a empurrou no chão e ela gemeu de dor. A menina soluçava, sem ar. Queria chegar nele, mas não conseguia. Seu braço parecia cada vez mais distante de seu amigo caído, não importava o quanto ela esticasse.

Não, Misael. Você não pode me deixar.

Antes de apagar, Nádia grita. Grita tão alto que tinha certeza que sua voz alcançaria o céu infinito e o preencheria. Na mesma hora, os três valentões que iam embora foram engolidos pela terra do parquinho, gritando. Como se a terra criasse vida e agisse independentemente, os três garotos foram sugados para dentro dela e soterrados. Seus corpos, esmagados. Seus gritos, silenciados.

Após isso, Nádia sentiu uma dor profunda em sua cabeça, como se sua mente tivesse feito um esforço violento para assistir àquela cena absurda, e desmaiou.

Ao acordar, estava na cama de sua casa. A princípio, tudo não tinha passado de um sonho ruim. Só quando sentiu as dores na cabeça e os curativos foi que a realidade cruel foi recaindo sobre ela como um raio.

Misael, claro, não sobreviveu. O trio de valentões estavam desaparecidos.

Um figurão adentrou a sala e seu coração deu um solavanco. Nunca tinha visto aquele homem na vida e não sabia como entrou e nem porque sua tia e seu tio permitiram que entrasse na casa. Ou porque ele tinha atravessado a porta como um fantasma!

— Q-Q-Quem é você?! — Ela se encolheu no canto da cama e a parede, puxando as cobertas.

— Não se preocupe. Não vou lhe machucar, mocinha. Até porque tudo isso não passa de um sonho, não é?

— U-u-um sonho? — Nádia repetiu.

— Se lembra do que aconteceu no parquinho?

O rosto da menina se nublou em uma expressão depressiva. Ela cobriu a boca com a mão, querendo chorar, mas não conseguia. Não queria. Não poderia acreditar que tudo aquilo aconteceu.

— Se lembra? — repetiu a pergunta.

— Eu... me lembro.

— Você matou aqueles garotos — o homem de sobretudo marrom e chapéu disse. — Os enterrou para sempre.

— Eu? Como eu...?

— Com sua fictomancia.

A menina se perdeu na conversa absurda, nos nomes complicados e nos raciocínios confusos.

— Mas, eu, eu...

— Aqui. — Ele retirou de dentro de seu sobretudo um caderno. O caderno de desenhos de Misael. — Claro que esse não é o real. Apenas uma cópia feita por mim nesse sonho para que eu possa lhe mostrar o que ativou seus poderes.

Ela observou o caderno do menino e se surpreendeu, tapando a boca novamente e forçando os olhos com mais lágrimas. Não era o mesmo caderno de desenhos dele, mas um novo, igual ao que tinha. E na primeira página, um novo desenho.

Um desenho dela, pintado com canetinhas.

Algo dentro de Nádia se quebrou profundamente. Ela apertou o objeto contra o peito, se entregando aos prantos ao lembrar do rosto sorridente de Misael e então, sua versão terrivelmente silenciada no chão do parquinho.

— Sinto muito por sua perda, mas eu preciso que você me...

— SAI DAQUI! — Depois de Nádia erguer a voz, o quarto reagiu movido por sua voz e se apertou como se estivesses sendo esmagado por uma prensa gigante por fora.

O chão e o teto se fecharam no lugar onde o homem estava e as janelas espatifaram-se. O chão ondulou como uma cobra e o ar rodopiou rapidamente ao redor dele, lembrando ventoinhas cortantes. O homem se moveu rapidamente pela sala para evitar ser esmagado ou fatiado, cobrindo um largo espaço entre eles em questão de um piscar de olhos.

Tão rápido que Nádia esbugalhou os olhos de surpresa e medo, sem entender como ele aproximou-se tão de repente. Do teto e das paredes surgiram estacas para protege-la, uma reação inconsciente do quarto que agia para defende-la daquele ser estranho como um organismo vivo e organizado.

— Ainda vamos conversar mais, minha senhorita. Por ora, durma e se recupere. — Charles rompeu algo sobre sua cabea. Um fio que lhe lembrava vagamente uma corrente.

— Ei, espera...! — Ao abrir os olhos e se levantar, estava sozinha. O quarto havia voltado ao normal. Sem ondulações no chão ou pregos nas paredes. O homem misterioso sumiu.

Assim como o caderno de seu querido amigo. A última lembrança que teria dele.

Mariana entrou no quarto de repente, ouvindo a voz de sua sobrinha.

— Acordou, minha querida? Está bem?! — Ela a abraçou forte e Nádia retribuiu o abraço, gemendo um pouco por causa da dor. — Fiquei tão preocupada com você! O que houve?

— Como assim, tia?

— Ouvi você falando, como se estivesse conversando com alguém. O que houve?

Nádia desviou o olhar e seus ombros desceram, pesados.

— Não foi nada, tia.

— Caramba... e aí? — pergunto, meio indeciso se queria continuar com aquela conversa depressiva ou não.

Nádia mantem o olhar fixo nas luzes ao longe como se admirasse estrelas. Mesmo com o sorriso, seu olhar é melancólico, distante. É como uma cicatriz que nunca vai sarar, mas ela o abriu para mim por boa vontade.

— E então, Charles continuou a me visitar em meus sonhos. Ele conversava comigo, me ensinava como lidar com a dor e os pesadelos que sempre tinha. Foi então que ele me chamou para a Mandala e, sem qualquer perspectiva de futuro, aceitei. — Ela vira o rosto e então olha brevemente para mim e então foca o chão. — Bem... comecei a treinar minha fictomancia com ele. Me ensinou a focar e reconhecer aquela dor que eu sentia, e então deixa-la ir.

— A dor de perder seu amigo?

— Sim. A dor foi, por muito tempo, uma barreira mental que me impediu de progredir no meu treinamento para dominar a Gnosis. — Ela levou a mão ao peito e sorriu mais intensamente. — Eu ainda sofria pelo Misael. Eu dizia a mim mesmo que tinha superado, que tinha esquecido, mas ainda doía muito. Tentei por muito tempo me enganar, mas a dor estava ali, escondida. A ferida ainda doía e latejava e meu esforço para ignorá-la só atravancou minha Gnosis. Eu não conseguia fazer nada com aquilo além de conseguir mover mais do que algumas pedrinhas ou fazer a brisa soprar mais forte. Era uma completa desajeitada e esse fato só criou mais crenças limitantes na minha cabeça, cerceando ainda mais o meu poder.

Ela volta a olhar nos meus olhos. Seu olhar agora estava tão próximo de seu persona que me sentia olhando para sua versão onírica. Decisiva, confiante e solene.

— Então, o que está me dizendo?

— Tem coisas que você precisa resolver dentro de si para seguir adiante. — Ela põe dois dedos sobre meu peito. — Pode não ter todas as suas memórias, mas se não ficar em paz com o que existe dentro de você, com aquilo que se lembra e as emoções que elas trazem, nunca vai progredir. Esse sentimento de impotência irá consumi-lo e você começará a achar que não é bom o bastante. Aos poucos, esses sentimentos não aceitos se acumularão e serão as correntes que formarão a prisão da sua Gnosis. — Ela dá uma tapinha nas minhas costas, sorrindo descontraidamente. — Você tem muita Gnosis escondida, pude ver. Um poço de Gnosis e isso é refletido no poder inato da Sashi, mas você o desperdiça. Faz mal-uso dessa energia. Você pode ficar muito mais forte, Calebe. Só depende de você.

De repente a noite parece se clarear. Uma rajada pura de vento frio preenche minhas narinas e pulmões e o ânimo e a disposição voltam. Ela tem razão! Ainda tenho tempo para aprender, para encontrar o caminho. E eu já estava cabisbaixo, me lamentando porque me deparei com a primeira dificuldade que encontrei no caminho.

Que tipo de amigo eu seria para o Enrico se jogasse a toalha agora? Como poderia cumprir a promessa da Carla?

Olho para Nádia com um sorriso e digo o mais sincero:

— Obrigado!

Ela responde com um sorriso também. E o som da minha barriga roncando, parecendo um trovão caindo na terra, quebra todo o clima da cena de desenvolvimento de personagem. Agora aquela pizza cairia bem.

Espera... onde está a pizza?

— Onde está a pizza que tu trouxe, Nádia?

— Ah... sabe. Enquanto estava contando meu passado triste, eu comi tudo. Heh. ♥

— QUE?! Não sobrou nada pra mim de seis pizzas?!

— Ainda tem os restos do almoço de ontem na geladeira. Vai querer?

Retiro o que pensei. Já quero morrer de novo.



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