Volume 1

Capítulo 23: Dama da noite I

 

— Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome.
Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.
Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda.
Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias. Amém.

— Amém! — dizem todos em uma só voz.

Vozes se transformam em choros. Murmúrios baixos rondam cada lápide fria. O padre continua a entoar uma prece silenciosa. O sentimento é de derrota, de tristeza enquanto o caixão afunda na terra. Na verdade, nem parece real para mim. Não me caiu a ficha ainda.

Eu e Sashi estamos parados, apenas observando. Ninguém vem falar com a gente e vice-versa. Estamos invisíveis ali e, para ser sincero, eu prefiro assim. Mais à frente, a família de Micaela está reunida. A mãe dela chora e passa mal repetidas vezes, a ponto de morrer. Sua avó está inconsolável. Seu irmão mais velho mal consegue respirar em meio à tanto choro.

Uma cena lamentável, para dizer o mínimo.

Também não tive ainda a coragem de falar com o Bernardo, que está na borda do buraco, observando o caixão descer. Ele não está chorando e nem gritando, mas seu olhar está mais morto que o de um zumbi. Nunca o vi assim, tanto que não sei como animá-lo ou consolá-lo.

— Triste, né? — A voz de alguém fala comigo, vindo de trás.

É Enrico. Ele vem com uma roupa preta casual, a mão forrando os bolsos da calça jeans preta. Seu olho torto está olhando para as pessoas e o outro, para mim. É legal e assustador ao mesmo tempo.

— Sim.

— Esse sentimento de perda... é horrível, né?

Me poupo de responder. Estou cansado demais até pra conversar com tudo que vem acontecendo ultimamente. Nós dois ficamos parados assistindo ao enterro, até que Enrico continua a monologar.

— Triste quando perdemos algo. Familiares, amigos, amores... memórias — Enrico parece enfatizar essa parte propositalmente. Uma interrogação surge na minha cabeça. — Muito triste mesmo...

— Tá, eu já entendi! É triste!

Me ignorando gloriosamente, ele prossegue:

— Eu sei muito bem o que é essa sensação de perda, Calebe. Sei muito bem. — A voz dele sai arrastada, estranha. Seu olho torto está fixo em mim, com uma aura hostil tão pesada que é quase palpável. O que é isso de repente? — Imagino exatamente o que você deve estar passando.

— Sabe é?

— Sei sim — garante. — Sei muito bem, Calebe. Um sentimento terrível que o deixa nu de si mesmo. Te deixa impotente, sem chão. Mas também é algo que te fortalece. Que forja as pessoas e dá a elas o gás para seguirem em frente. Eu acho que todos deviam experimentar essa dor, sabe?

— Não, obrigado. Não desejo isso para ninguém.

— E se fosse por sua causa que alguém tivesse perdido algo muito importante? Ainda diria algo do tipo: “Não desejo isso a você, mas ainda assim tirei algo que...”.

— ÔH mermão, que conversa é essa?! Que que deu em você hoje, Enrico? Tá me cobrando alguma coisa, por acaso?

Ele faz uma pausa e parece conter o besteirol que vazava da boca. Sua expressão está mais nublada que os céus desse dia merda.

— Foi mal. Acho que já tá na hora de ir. — Ele acena e vai embora. Sashi olha para ele com aquela cara de quem tá com a pulga atrás da orelha.

— Eu, hein? O que deu nesse cara? Tá mais esquisito que o normal, hoje.

Sashi faz cara feia para ele como um cão de guarda rosnando para um estranho. Ela deve ter sentido o mesmo que eu.

— Calebe.

— Que foi, Sashi?

— Tome cuidado com essa pessoa.

Uma sobrancelha involuntária se ergue.

— Cuidado com o Enrico? Porquê?

— Só uma intuição.

Um persona com intuição? Sério... a Sashi consegue me surpreender cada dia mais.

— Ele só deve tá tão abalado com o que houve que tá andando por aí sem rumo, falando merda sem pensar. Jajá ele melhora.

— Senti algo estranho nele. Muito mais do que um ódio velado. Tome cuidado, Calebe.

Suspiro, imaginando que Sashi tem um bom motivo para ter me avisado. Eu não posso dar uma de adolescente retardado de filme de Slasher e apenas ignorar um aviso como aquele — ainda mais depois de todas as vezes que eu quase me fodi.

— Certo — concordo com a cabeça. — Vou tomar cuidado.

 

 

*****   *****

 

 

Depois que tudo acabou no cemitério, eu só queria paz e silêncio, então só há dois lugares possíveis para isso se concretizar: Dormitório e Biblioteca. Claro, o quarto seria a primeira opção, mas grande parte dos alunos que ficam no campus estão agora nos dormitórios esperando que os monitores deem algum parecer ou ordem para eles se trancafiarem em seus quartos de novo.

E eu não aguento esse burburinho todo nos corredores, no saguão, dentro dos quartos...

O que deixa com a Biblioteca sobrando. Lá está vazio e quieto. Até mesmo o senhor que toma conta do prédio — esse que as lendas urbanas dizem ter a bunda colada na cadeira — está ausente. Alguma reunião do corpo docente da universidade deve estar sendo feita nesse exato momento.

Mas lá eu tenho toda a privacidade e silêncio do mundo agora. Só eu e meus pensamentos. Nem mesmo a Sashi está lá. Só eu e eu...

— Olha só. Se não é o Calebe!

Alegria de pobre dura pouco mesmo. Na verdade, não dura nada. E lá se foi o meu recanto de silêncio e solidão.

— Estávamos mesmo esperando por você. — Outra voz feminina surge.

São os dois irmãos gêmeos, Lindalva e Beni, o qual tentaram me matar uma vez. Amigavelmente vindo até mim como se fôssemos os melhores amigos do mundo.

— O que vocês querem? Estão aqui para tentar mais outra gracinha?!

— Relaxa. Não viemos para brigar — diz Beni com as mãos levantadas.

— Viemos para conversar — completa sua irmã.

— E o que vocês teriam pra conversar comigo? Nem sequer falaram mais comigo desde que tentaram me matar ou já se esqueceram disso.

O que tá acontecendo com todo mundo de repente? Uma tragédia acontece com uma amiga minha e do nada todo mundo surta mais do que eu. Acho que vou ter que procurar outro “recanto do silêncio” para mim.

— Não. Não esquecemos.

— Erramos no passado, mas agora você tem que nos ouvir, Calebe. É importante.

— Aff... tudo bem. O que é então?

— Aqui não — Lindalva tira algo de dentro de sua bolsa. Um cubo. Eu já vi esse cubo antes! — Vamos para um lugar mais reservado.

E então eu sou sugado com um chupão dimensional para dentro daquela caixa de pandora, ficando mais esticado que um macarrão. Nem deu tempo de sentir nada; quando dou por mim, estou sentado em uma poltrona luxuosa cor de vinho, dentro de um salão digno de um chefe empresarial bem sucedido. Beni e Lindalva chegam depois, de terno e com suas coroinhas ridículas de desenho animado na cabeça.

Meu estômago dá um mortal violento e cai de cara no chão, quase me obrigando a pintar aquele lindo carpete cor de creme de outra cor.

— Porra! Que merda foi essa?!

— Maneira, né? Mais uma de nossas criações! — Beni estufa o peito.

— Chame de Sala dos sonhos VIP — anuncia Lindalva toda empertigada na cadeira.

Xícaras e bules com asas, lembrando os amiguinhos da Alice, vem voando até pousarem na mesinha do centro da sala, servindo chá sozinhas. Um frango vestindo um fraque carrega uma bandeja com salgadinhos em um asinha e um lenço na outra.

Sério, qual a tara desses dois com frangos mortos-vivos?

— Avisem quando forem fazer isso! — Arroto duas vezes, obrigando o vômito a voltar. — Se tentarem alguma coisa, eu...

— Já dissemos que não vamos fazer nada, cacete!

— Só queremos conversar, porra!

— E o que é, então? Burgh!

Lindalva cruza os braços com um suspiro e começa:

— Você está em perigo, Calebe.

— Todos estão em perigo, na verdade — Beni segue a fala de sua irmã.

— Do que estão falando?

— O assassino já está aqui no campus, inteligência ambulante! — cospe Lindalva, impaciente. — Foi ele quem matou a Micaela.

— Ele está atrás de agentes oníricos, como você e nós — adiciona Beni, abrindo a mão enquanto uma xícara de um líquido quente e preto “voa” até ela. — Começou com ela e não vai parar.

— Calma, calma! Peraí! Vocês sabem quem é o assassino? Já viram ele? — É quase uma pergunta retórica.

Os dois se entreolham e respondem em seguida:

— Não.

— Nunca vimos.

— Ah, que bela ajuda! E como vocês sabem de tudo isso, então?

Lindalva bate palmas enquanto seus lábios estampam um sorriso arrogante no rosto.

— Nós fizemos nossa própria pesquisa.

— Investigamos por conta própria.

Um livro desce com tudo sobre a mesa, esmagando a mobília junto com tudo que tinha sobre ela. O livro preto, de capa dura e pesado — beeeem pesado pelo que vi, já que até afundou no chão! —, cria asas e voa até o colo de sua mestra obedientemente.  

— Ops! Hihihi! Esqueci que criamos essa sala a pouco tempo.

— Não repara. Fizemos essa sala faz nem dois dias.

— Que porra tem nesse livro?! — pergunto, encolhido na poltrona como um gato escaldado.

Ao ser aberto, ele revela imagens e projeções como hologramas com todas as notícias dos acontecimentos dos últimos dias.

— Pesquisamos a fundo e descobrimos que todas as vítimas eram pessoas com dons oníricos.

— Como sabem disso? — pergunto mais por querer saber do que por duvidar deles.

— Sonhos e pesadelos deixam rastros, Calebe — explica Beni fazendo gestos como se ensinasse um macaco a falar. — Alguns mais que outros, mas todos, sem exceção, deixam.

— Achamos estranho o que aconteceu e, pelo nosso próprio bem, fomos investigar. Não sabíamos no que estávamos nos metendo.

— Investigar? Desde quando trabalham pra polícia? Deviam ter...

— Calebe — Lindalva me interrompe de novo. — Uma das vítimas era nosso vizinho. Duas casas depois.

Algo em mim se contorce em terror. Beni percebe minha clara expressão de pânico e continua:

— Alguma coisa nos diz que o alvo era pra ter sido nós — Beni lamenta, as pálpebras tremem e um músculo em seu queixo se endurece. — Queremos saber quem foi e pegar esse cara tanto quanto você, acredite.

— Mas...

— Mas?

Os dois irmãos se entreolham como se discutindo mentalmente se deviam me contar ou não o que quer que estejam escondendo. É mais uma habilidade especial deles conversar por pensamento? Um Bluetooth especial entre irmãos gêmeos?

— Nós... vimos. Um pouco, de relance, antes de desaparecer...

— O que?! O que vocês viram? — Eu levanto da cadeira de uma vez, as duas mãos batendo firme no tampo da mesa.

— Nós... vimos uma sombra — diz a irmã, relutante. — Alta... com unhas enormes e com forma de mulher. Ela desapareceu assim que soltou o corpo da Mica, talvez com medo de ser vista.

Não posso conter o terror que me preenche nesse momento, ao ouvir a descrição da Lindalva. Meu cérebro está agora operando com a carga máxima e pega apenas as palavras chaves daquela descrição.

Alta, unhas enormes, forma de mulher... sombra.

— Não... não pode ser!

— Calebe, o que foi?

— Eu quero voltar. Me leva de volta, agora!

Linda olha para o seu irmão como se esperasse ele dizer o que está acontecendo. Os dois estão com rostos assustados, mas eles me levam de volta à biblioteca, fazendo o processo inverso. Ao voltar, Sashi está dentro da biblioteca, me procurando.

— Calebe! Ainda bem! Estava preocupada com você! Por onde andou?

Sem conseguir falar ou respirar direito, as pernas tremendo incontrolavelmente, eu só posso erguer o rosto suado e olhar para ela. Um olhar de puro medo.

— Calebe? O que foi? Parece que acabou de ver um fantasma. — Sashi está com um olhar nervoso para mim, sem entender o que acontecia.

— Sashi...

— Diga, Calebe.

— Acho que vou ter que dormir mais cedo hoje.

 

 

*****   *****

 

 

A faculdade volta a ficar de molho novamente e a polícia é chamada. O resultado é esperado, assim como Nádia já tinha me dito: eles não encontraram nada que ligasse o assassinato a qualquer suspeito. Nunca encontrariam.

Bernardo vai pra casa. Na verdade, todos que eram da minha classe vão. Assim que o boato de que o assassino está escondido no campus se espalha, já sabe não, é? Caos, terror, histeria pra todo lado. Poucos alunos restam morando no campus — praticamente só aqueles que não podem voltar para casa por quaisquer motivos e transferidos de fora — e eu sou um desses.

... o alvo dele é você! Nádia se fez bem clara.

Eu não posso voltar pra casa. Seja lá o que for que esteja atacando e matando pessoas, é igual à figura feminina das minhas visões. Talvez seja o mesmo monstro. Como eu posso voltar pra casa sabendo que tem algo assim atrás de mim?

Como poderia colocar a mamãe em risco?

— Calebe... — Sashi está sentada na minha frente, de pernas cruzadas. Seu rosto é o retrato da pura tristeza. Só falta os olhos gigantes e brilhantes de anime.

— Se lembra, Sashi? Quando eu te contei sobre as visões que eu vinha tendo a meses e eu pensava que eram pesadelos?

— Lembro. O que tem?

— Aquela coisa... a mulher costurada. Ela está vindo atrás de nós.

Sashi franze o cenho em uma resposta negativa. Os blocos negros, a floresta, o cenário escuro... agora todo esse cenário faz sentido para mim. A floresta não era uma floresta, mas o campus o tempo todo.

Os paralelepípedos negros de fundo são os prédios de cada bloco. Como não me liguei nisso antes?

E a cena dela matando a... não, não posso pensar nisso agora!

— Calebe. Tem certeza disso?

— Conversei com a Lindalva e o Beni mais cedo.

— Os irmãos?

— Sim. Eles me disseram que viram... o momento que ela tinha acabado de matar a Mica.

— Isso é tudo muito suspeito. Porque eles te contariam algo assim?

— Eles estão com medo, Sashi. Medo de morrer também.

— Então essa coisa que está atrás de nós, ela...

— É — confirmo, pegando o pensamento da Sashi. — Ela está caçando agentes.

— Merda — grunhi a Sashi. — Mas então o que...

De repente, as palavras de Sashi são rasgadas por um grito bem alto vindo de algum lugar do campus. Meu coração deu um salto de cama elástica. Sashi saca sua katana, preparada para qualquer coisa.

— Temos que ir ver o que é! — diz Sashi com urgência.

— E se for a mulher costurada? Se ela for o Oru?

— A enfrentamos e vencemos.

— Primeiro temos que bolar um plano para...

— Não há tempo pra isso! — protesta ela. — Há uma pessoa em perigo! Quer deixar que mais alguém morra?!

As palavras acusatórias da Nádia ecoam na minha mente como música de elevador.

“Será que eu devo negligenciar tudo o que está acontecendo”? “Será melhor para todos que eu continue fazendo de conta que tudo está normal enquanto pessoas morrem”?

— Vamos lá, Sashi — decido, as calças já pintadas de outra cor. — Vamo lá dá uma surra nessa tia costurada.

Sashi vai na frente — pois ela podia fazer parkour, pulando em cima de prédios e arvores com piruetas e eu não — e vamos correndo na direção do grito. Sashi sente a presença de um pesadelo na área, mas ainda não vimos nada. O grito tinha vindo da enfermaria.

Ao entrar na sala, quase com uma bicuda, o que vemos é uma cena assustadora de destruição. Macas estão reviradas, o chão está quebrado e o sangue está espalhado em todo o lado.

O sangue da enfermeira Kássia!

— Droga! Essa não! Chegamos tarde demais!

Sashi está com os olhos esbugalhados, olhando sem rumo para qualquer direção. Seria engraçado se não estivéssemos nesse contexto infeliz.

— Não pode ser.

— Que foi, Sashi?

— O rastro que senti... sumiu!

— Como? Droga! Quer saber, deixa pra lá! A Kássia tá muito mal! O que eu faço, o que eu faço?!

— Calebe! Olha!

Nós a viramos, deitada sobre uma poça do próprio sangue, gemendo no centro da sala de enfermaria completamente revirada. Achamos um ferimento terrível em sua barriga, vazando sangue descontroladamente. Um milagre que ela ainda esteja viva, semiconsciente.

A visão quase me fez vomitar. O que quer que tenha acertado ela, quase colocou as tripas dela pra fora. Mas o pior de tudo é que o ferimento foi causado por garras. Cortes profundos e cirúrgicos feitos por algo muito maior que a pata de qualquer felino e mais afiado que a faca de um açougueiro.

Aquelas marcas de garra nas paredes, no chão e no corpo da enfermeira me fizeram tremer profundamente, como se meu próprio sangue virasse gelo. Afinal, eu já tinha as visto antes!

 

 

*****   *****

 

 

Dois ataques em menos de três dias. Deve ser um recorde pessoal daquela monstra remendada. A enfermeira Kássia — que foi uma agente que nos atacou antes — foi enviada para o hospital em estado gravíssimo e o campus encheu de polícia.

Policiais com cães farejadores e helicópteros fazem patrulhas e buscas por toda a universidade para encontrar um assassino invisível. Pegar alguém que nunca seria pego. Mas com mais esse episódio sangrento, descubro várias coisas e confirmo outras.

— O assassino está aqui. Ele está no campus!

— Como pode ter tanta certeza? — Sashi parece desanimada com o fato de não ser capaz de rastrear a mulher costurada.

— Mica e agora a enfermeira Kássia. Em menos de 3 dias... Isso é proposital. — No meio do meu raciocínio, soco a parede com tanta força que sinto um choque nas articulações dos dedos. — Argh! Porra!

— Calebe, se acalma! Uma hora ela virá até nós e estaremos prontos.

— Você não entendeu, Sashi. Ela não vai vim até a gente direto! Ela vai ficar nesse joguinho sádico. Mata um aqui, fere outro acolá... isso até que nós sejamos obrigados a ir até ela! O que aconteceu com a Mica e a Kássia foi uma provocação! Um aviso!

— Droga... — Sashi resmunga, batendo os pés.

— Temos que encontrar essa coisa e rápido! Ela não vai parar até ter matado o último agente desse campus.

— Mica, Kássia, os irmãos Linda e Beni e...

— Emma — adiciono, os pelos arrepiados.

— E por fim, a gente — conclui Sashi com os dentes cerrados. Seu cabelo preto começa a se incendiar nas pontas com as chamas violeta.

— Se essa coisa for mesmo o tal do Oru, a cada agente que ela mata, vai ficando mais e mais forte. Se esperarmos mais, ela vai estar muito mais poderosa do que nós quando resolvermos enfrenta-la cara-a-cara. — E uma terrível verdade se monta diante de nós. — Sashi! Temos que parar a mulher costurada, e tem que ser agora!

Seu rosto sério e preocupado concorda comigo com um aceno. Só tem uma coisa que nós podemos fazer para evitar isso e é jogando o jogo dessa coisa. Não há outro jeito. Estou engolindo em seco várias vezes, o peito parece uma bolinha de apertar e o coração, uma locomotiva desgovernada.

Estou com medo. Medo da visão se concretizar, medo de morrer, de ver a Sashi morrer... tanto medo que não consigo parar de suar ou tremer. Não consigo sequer me acalmar para tentar meditar e adormecer.

Eu não quero morrer! Não quero! Não quero!

E então, aquele toque vem e me acalma. Sashi está com sua mão sobre minha testa e está sorrindo para mim. Ah... aquele sorriso de “vai ficar tudo bem”. Como esse sorriso tem um poder tão forte sobre mim que nem eu mesmo compreendo! Eu só consigo sorrir de volta e procuro me concentrar. Relaxar. Esquecer tudo, todos, o mundo.

Dar espaço ao completo relaxamento. Me desligar do corpo. Sigo com todos os passos até começar a sentir a sensação de estar dentro de uma bolha de água com o formato do meu corpo, ou um dentro de um travesseiro de espuma. Decido abrir os olhos, observando a mim mesmo dormir profundamente enquanto uma mão delicada repousa sobre minha cabeça.

Vamos pegar ela, Calebe! Sashi brada em meus pensamentos.

— Vamos sim.

E então saímos para fazer nossa própria patrulha. Lá fora está um rebuliço completo. No meio do escuro do campus, entre arvores e estradas sombrias e silenciosas, feixes de luz das lanternas vão de lá pra cá, de cá pra lá. Procurando e procurando, mas nunca encontrando.

Mas por onde começar a procurar uma maníaca, saída das profundezas de um filme de terror, que é a própria sombra encarnada? Eu tenho uma ideia clara de onde.

Hospital de Morro Branco. A enfermeira Kássia ainda está lá internada desde o ataque de ontem e seu quadro ainda não estabilizou segundo os grupos de zap. Não estou tão preocupado com Beni e Lindalva porque eles tem formas de se esconder da mulher costurada, e Emma não sei onde anda.

O pensamento mais lógico é que a mulher costurada está indo para o hospital terminar o serviço que começou.

— Só pode ser isso. Kássia ainda está em perigo!

Fique alerta, Calebe. Ela pode sair de qualquer lugar!

Sashi me deixa o aviso porque sabe muito bem que ela não conseguiria, tampouco eu, detectar aquele monstro em meio a uma bagunça energética que é o Hospital de Morro Branco. Lá tem muitas pessoas internadas pelos mais variados motivos. E pessoas internadas passam grande parte do seu tempo dormindo.

Assim que chegamos na entrada, vários pesadelos se reúnem para nos receber. A grande parte deles não nos representa grande ameaça, sendo na maioria objetos ou pessoas — ou partes de pessoas — levando “peças extras”, como asas, tentáculos e uns olhos a mais, lembrando brinquedos quebrados e remontados de criancinhas.

Eles ficam voando e flutuando, chorando, rindo, negociando, brincando, fazendo N coisas, mas em grande parte, não são agressivos. No entanto, fazem o ambiente do hospital parecer mais opressor e depressivo do que realmente seria.

Passando pela enxurrada de pesadelos, vamos até o quarto da Kássia, localizado no terceiro andar. Ela está com mais um paciente dentro da sala e ambos estão dormindo profundamente. O pesadelo do colega de quarto dela está bem ao lado de sua cama: duas mãos, o osso quebrado saindo pra fora, segurando um volante amassado e girando ele como se dirigisse.

Meu estômago embrulha quando imagino a razão dele estar naquela sala.

E agora? Sashi pergunta.

— Agora, esperamos. — Meus olhos vão de uma ponta a outra do corredor, vários pesadelos menores voando e rastejando pelo espaço. — Ela deve esta... Urgh?!

Calebe?!

De repente, sinto meu peito arder em linha reta, partindo do centro das clavículas até a boca do estômago, bem devagar. Como se alguém estivesse me arranhando com um bisturi ou uma faca ou...

A ponta de uma garra!

— Essa... não! — Merda! Eu tateio o corpo da Sashi com força como se pudesse fazer aquela dor parar, mas é inútil.

Não é a Sashi que está sendo atacada, mas sou eu! Meu corpo físico! Droga! Eu tô perdendo a conexão com a Sashi enquanto minha visão embaça, a voz dela fica mais distante e incompreensível.

Até que eu acordo no meu quarto de novo e a primeira visão que tenho é a imagem estarrecedora de um rosto pálido como cera de vela, meio enrugado e com suturas em vários lugares, como a boca, a testa e o pescoço. Me falta ar nesse momento. Quero gritar, mas a voz foi embora. O coração parece que vai sair no lugar da voz se eu abrir a boca. Meus olhos estão paralisados.

Aquela presença é tão pesada que sinto que o ambiente ficou bem mais frio e ela está em cima de mim, mas me sinto esmagada por um pedregulho. Não... consigo mexer meu corpo.

Mesmo sem enxergar por causa de uma faixa velha tapando seus olhos, ela nota que acordei e faz um gesto de silêncio com aqueles dedos esqueléticos e longos que podem me rasgar facilmente. Porra! Estou sem saída... Sashi está no hospital e mesmo que seja muito rápida, ela não vai chegar a tempo.

Ela veio me pegar. Ela saiu de meus pesadelos e veio atrás de mim no mundo real! Eu vou morrer! Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou...!

— Fuuuuuuu...

Seus dedos que lembram agulhas enormes se preparam para se enterrar no meu pescoço quando ela é puxada por algo que se enrosca naquele pescoço enrugado de velha e a tira de cima de mim. Mesmo que eu ainda não consiga me levantar, consigo erguer o pescoço suficiente para ver quem aparece.

— Ve... Velho!

Charles acaba de salvar minha vida mais uma vez.



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