Volume 1

Capítulo 2: A grande espadachim que derrota todo o mal!

 

Sigo ela até os dormitórios do Bloco C, os olhos fixos em um sutil rastro negro nos céus que eu facilmente teria ignorado se tivesse visto em outra situação. Eu mesmo nunca teria visto se a menina não tivesse me apontado. Talvez seja alguma peculiaridade desse mundo acinzentado em que estou preso até agora.

Aquela linha estranha e bem fininha nos leva para os dormitórios do corredor de cima, mais especificamente para a penúltima porta. Eu tenho consciência que aquele é um bloco feminino. Por que essa maluca tá me levando pra lá? O que ela está pretendendo?

— É aqui — diz a samurai.

— Então... se não for demais perguntar, o que você... — Antes de terminar a pergunta, ela atravessa a porta como um fantasma.

“Sério que vou ter que fazer isso? Estou me sentindo como o Bernardo agora e isso é terrível!”, só consigo pensar nesse fato com uma careta.

Mesmo hesitante, entro o mais silenciosamente possível só para quase acordar a moça que dorme profundamente lá dentro com um grito de terror. A cena que vejo é a samurai, sua espada em riste, pronta para liquidar a vida da menina adormecida.

Empalideço na hora, as pernas tremendo tanto com o susto, que é um real esforço me manter de pé.

— Ei! Que merda você tá fazendo?! Vai matar ela!

Ela levanta uma sobrancelha ao olhar para mim, confusa.

— Hã? Matar? Eu vou só acordá-la.

Acordar? Enterrando a espada no peito da menina? Como caralhos isso pode ser considerado uma forma de acordar alguém? Poderia até tentar discutir, mas os olhos dela estão me fitando com tanta convicção, como se já tivesse feito isso tantas vezes, que acabo por acreditar nela.

Engulo em seco e fico apenas assistindo, rezando para que ela saiba o que está fazendo. Uma coisa curiosa é que aquela linha que seguimos até o quarto, agora mais de perto, se mostra como correntes negras que entram e saem do peito da dorminhoca.

A guerreira enfia sua lâmina naquele círculo luminoso no peito da mulher e um som agudo, tal como um apito, sopra dentro do quarto, seguido de um som de vidro se quebrando. Nesse instante, a realidade ao nosso redor parece rachar e se desfazer. O tempo aos poucos volta a correr normalmente.

E a mulher que dormia até então acorda com um susto.

E eu estou oficialmente morto. Talvez expulso, mas com certeza morto.

— É... então, calma... Não é o que parece!

— IIAAAAAAAAAAAAAAAHH! QUEM É VOCÊ?! O QUE TÁ FAZENDO NO MEU QUARTO?! — Ela ainda acorda histérica pra chamar mais atenção ainda.

— Calmou, calmou! Eu posso explicar! Ai! Pera!! Ei, larga esse abajur!!

Ela sai pegando tudo o que encontra pela frente, mirando exatamente na minha cabeça.

— SAI DAQUI SEU TARADO DE MERDA! FILHO DA PUTA! ARROMBADO! DESGRAÇADO! SEU PEDAÇO DE BOSTA!!

Sou obrigado a correr do quarto o mais rápido que consigo enquanto toda a mobília sai voando perigosamente. Aquela histérica agora é mais letal que qualquer monstro que pudesse me atacar.

Capoto pela escada, desengonçado, e chego lá embaixo suado, sujo e ofegante. A menina samurai já me aguarda no térreo, escorada na parede do corredor de braços cruzados. Eu a pego pelo braço e a arrasto para a parte de trás do prédio, um lugar mais reservado.

— Você...! Tinha... que acordar... arf! Tinha que acordar ela comigo lá dentro?!

— Agora sim, tudo está de volta ao normal! — diz ela sorrindo, fazendo um “joinha”.

Tirando a raiva e a dor que estou sentindo agora, ela está certa. O mundo voltou ao normal. Tudo está colorido, quente e se movendo normalmente!

Agora, sem monstros bizarros e mulheres histéricas para me trucidar, percebo mais uma vez o quão linda e gostosa ela é. Seus cabelos agora estão pretos de novo, mas eu lembro claramente de vê-los da mesma cor do fogo violeta que ela soltava pela espada, como se se misturassem às chamas.

Quando a encontrei pela primeira vez, usava roupas casuais como uma calça jeans preta, camisa branca e uma jaqueta escura, mas agora está usando um quimono branco com roxo de mangas até o cotovelo, com ombreiras e uma armadura de cintura japonesa que serve de suporte para a katana embainhada na cintura. Sua pele branquinha contrasta com seus olhos azuis intensos.

Mas o que mais me chama atenção é seu rosto. Por que ele me parece tão... familiar?

— Obrigado por me salvar, mas... quem é você, afinal?

— Meu nome é Sashi — responde e sorri. — Esse foi o nome que você me deu, Calebe.

— Eu te dei? — O cérebro enguiça. — Não tô entendendo. Quando?!

Ela faz um movimento bobo e exagerado, como um jogo de mímica. A sequência ridícula de movimentos traz um pedaço nebuloso de lembrança.

— Eu te... pera um pouco! Você é a Musashi, a grande espadachim que derrota todo o mal?! — Até hoje eu não acredito que foi eu mesmo que inventei essa porra.

Musashi é o nome que dei para a minha boneca favorita. Uma guerreira samurai com uma espada de madeira que eu gostava muito de brincar quando era moleque. Só sei disso porque minha mãe me disse quando a entregou para mim quando estava no hospital.

Ela ri com uma voz tão doce que algo desagradável começa a brotar das minhas calças.

— Sou e não sou — responde ela com uma careta boba. — Você achava um nome tão grande que encurtou para “Sashi” mesmo. Mas, apesar de parecer com ela, eu não sou exatamente essa bonequinha de que fala.

— Não? Então o que...?

— Sou seu persona, uma manifestação da sua mente subconsciente, criada para proteger a consciente.

Persona? Manifestação da minha mente? Isso tudo é mesmo possível?! Tirando o rosto e os cabelos pretos, os quais eu não lembro de jeito nenhum a quem pertencem, ela é igual ao brinquedo, só que em escala fiel.

A Sashi, a bonequinha samurai que está guardada no baú lá de casa agora, está na minha frente sorrindo, respirando, caminhando, falando... está mesmo de pé e conversando comigo! Tão viva quanto poderia estar!

Será um sonho? Não... tenho certeza de que estou mais acordado que nunca, então certamente não é um sonho — já até me belisquei, inclusive.

Eu começo a questionar seriamente a minha sanidade, se é que ainda me resta alguma depois de toda essa loucura.

— Tá, mas se você não é a Musashi, porque se parece tanto com ela? — Coço a cabeça.

— Porque os sonhos são cheios de simbolismos. — Ela faz uma pausa enquanto procura algo, olhando pros lados. Ela cata um graveto do chão e me mostra, continuando: — Por exemplo, até mesmo esse graveto inofensivo pode se tornar a mais afiada das espadas, se assim o sonhador desejar. É a mesma coisa comigo.

Uma interrogação surge na minha cabeça.

— Como assim?

— Minha aparência vem de seu próprio subconsciente, Calebe. Sou vista por seus olhos como uma figura familiar de autoridade. — Ela faz outra pausa, dessa vez com uma expressão maliciosa no rosto. — Em outras palavras, alguém ou algo especial em seu coração.

Mesmo que eu não lembre desse tal alguém, por mais que eu tente? Suspiro enquanto ela continua:

— A mesma coisa também ocorre com os pesadelos.

— Pesadelos? — Engulo em seco.

— Sim. O monstro que você me viu enfrentar era um pesadelo atormentador. — A imagem da bola de cabeças brancas assombra minhas lembranças e me faz arrepiar. — Assim como nós, personas, somos fruto da mente subconsciente humana, eles também são. Eles representam todos os tipos de sentimentos negativos dos seres humanos e nascem deles, como o medo, a raiva, a inveja...

Torço os lábios, pensando. Depois de minerar um pouco o cabeção, mais uma lembrança surge. Assim que entrei no quarto daquela menina, eu percebi que ela tinha adormecido lendo algo. Um livro de dramaturgia — agora entendo o porquê do sono pesado, puta merda.

Ela devia ser alguma estudante do curso de Artes Cênicas e talvez faria uma apresentação muito em breve, por isso estava estudando ou lendo algo sobre aquilo. Meu rosto se ilumina com o entendimento.

— Agora... eu acho que entendi.

— ...?

— Aquela menina... o pesadelo era dela, não é? Se é verdade o que diz, que os pesadelos... — Minha voz parece atrofiar quando eu toco no assunto. Ainda não estou recuperado totalmente do acontecido. — Que aquelas coisas... são a representação dos nossos maiores medos, aquele monstro que me atacou devia ser o maior o medo dela.

Sashi sorri, concordando.

— É isso mesmo. Um pesadelo que “vazou” dos sonhos daquela menina para agir no mundo real. Ele devia representar...

—... o medo da rejeição — completo.

O gesto afirmativo da Sashi só mostra que eu tinha acertado. Ligando os pontos como em um livrinho infantil, eu compreendo suas palavras; ela tem medo das reações do público que iria enfrentar, simbolizados por todas as milhares de cabeças com seus muitos rostos, alguns alegres, outros com raiva, outros com ar de zombaria, e por aí vai...

Um medo tão grande que esse sentimento se encarnou... naquela coisa.

— Eu realmente não sei o que pensar disso tudo. Mas desde quando eu posso ver sonhos e pesadelos e... você? Quer dizer... eu não me lembro de ter nenhuma habilidade especial, magia ou qualquer coisa assim. E você nunca apareceu para mim até agora.

— Não apareci antes porque nunca precisou de mim até agora. Quando você pediu ajuda, eu vim, oras. ♪

— Então você faz parte de algum poder mental pra me proteger de pesadelos, correto? Tipo um guardião de sonhos... — Ela acena positivamente. —, mas eu tenho certeza que tô acordado agora. Nem um pingo de sono! E ainda assim, consigo te ver e ver essas coisas. Por quê?

— O fato de eu estar aqui falando com você, mesmo enquanto está acordado, é um completo mistério — admite ela, dando de ombros. — Mas quanto a isso, podemos descobrir juntos, o que acha? ♥

Uma forma bonitinha de dizer que minha vida nunca mais será a mesma e que eu tenho uma chance grave de morrer no processo. Pra variar, né?

Quando vim parar na Universidade Morro Branco, eu acreditava que se tratava de uma chance de recomeçar depois do que aconteceu comigo. De ser uma pessoa diferente do que eu era antes do acidente. Criar novas memórias, ser uma nova versão minha.

E as perguntas que ficam: será que eu já tinha esses poderes antes e ninguém nunca me contou? Ou eu tinha e já sabia da existência deles? Se sim, o que eu fazia com eles? Como era a minha vida? De onde vem esses poderes? Enfim... uma torrente de perguntas sem respostas que não vão me deixar em paz enquanto eu for gente pisando sobre a terra.

Digamos que eu fosse louco o bastante para apagar da memória tudo o que rolou hoje... como poderia ter certeza de que essas coisas vão me deixar em paz? Como posso garantir que tudo vai continuar sendo normal como eu costumava a acreditar?

Não posso mais ignorar nada disso. Se eu quiser partir para uma vida nova, diferente... viver o que deixei de viver, tenho que descobrir o que aconteceu que me lançou nesse caminho sem volta. Em outras palavras, vou ter que me jogar nesse mundo de qualquer forma e descobrir a origem desse poder.

“Um caminho sem volta... não tem outro jeito.”, começo a me conformar enquanto suspiro.

— Certo, acho que não tenho muita escolha. — Estendo a mão para ela e sorrio em uma tentativa de aliviar aquele fardo recém adquirido. — Então espero poder contar com você para isso, grande espadachim que derrota todo o mal!

Seus lábios se erguem em um sorriso brilhante — meu único consolo nessa hora — e ela responde ao meu aperto de mão.

— Pode contar comigo, Calebe! Somos parceiros, afinal.

Se tudo isso foi causado pelo acidente, talvez tudo se resolvesse apenas falando com minha mãe. Contudo, a Sashi é uma manifestação da minha mente defeituosa então isso deve significar que só eu posso vê-la e só eu sei que ela existe. Seria como pedir para ser internado se eu fosse abordar minha velha para falar desse assunto, então isso está fora de cogitação.

Mas e se só eu tiver essa habilidade? Como vou saber onde e como começar a procurar por respostas? Como vou descobrir mais sobre a Sashi e esses tais pesadelos? Bom... ninguém disse que seria fácil, não é?

E desse jeito, ao lado de uma menina samurai fofa e fodona que retalha pesadelos, minha nova vida na Universidade Morro Branco começa oficialmente! 



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