Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 2

Capítulo 21: Ponto de partida

 

 

Você precisa encontrar Kanro, Lumi. Por mais que odeie essa floresta. 

 

Me camuflei entre as grandes folhas da árvore e parei de respirar. Qualquer mínimo som podia mostrar àquelas criaturas minha localização, mas eu aguentaria por pouco tempo. Passos rápidos se aproximaram sobre o som de cascalho pisoteado e gravetos quebrando até parar bem abaixo da árvore em que eu estava, quando de repente o silêncio tomou conta do lugar. Coloquei a mão na minha espada reta e fechei os olhos. Eu podia sentir três fracas auras procurando-me desesperadamente com seus malditos focinhos. 

 

De todas as lições que eu aprendi durante o tempo de treino eu podia dizer que a camuflagem era a mais eficaz, porque nem sempre eu era capaz de confrontar as criaturas diretamente. Meu pai resolveu treinar no Bosque das Vozes por causa do “elemento surpresa”, já que os monstros aqui se alternavam de tempos em tempos. Especulei que era a cada três dias, mas parecia que até mesmo esse intervalo era intermitente. Desta vez, eu fui perseguido por Gags Menores. O que mais me impressionava neles era a capacidade de enfiar a porrada em outros seres, seus corpos fortes e pequenos foram feitos para isso. Mas eu também treinei meu físico. 

 

Uma brecha da luz da lua atingiu o meu olho direito. Fase cheia... Eu me movi um pouco para me afastar, entretanto foi o suficiente para um deles levantar a orelha e começar a procurar pelas folhas densas e escuras. Com um mortal, joguei-me da árvore enquanto apontava o calcanhar para o crânio do primeiro Gag. Os outros dois se afastaram rapidamente com um pulo, porém a cabeça do outro já estava enterrada no chão antes que ele pudesse reagir. Seus ataques eram rápidos, mesmo com os músculos desproporcionais em seus corpos, mas os golpes eram espontâneos e sem sentido. Meu modo de lutar era básico, e minha esgrima precária, só que eu conseguia ver que seus movimentos contavam apenas com a força bruta e um único acerto — plenamente desprovidos de técnica. 

 

Movimentei meu antebraço, direcionando o punho do Gag para o rosto do seu próprio companheiro. Forte, de fato. Lancei minha perna na cabeça do atacante. Apoiando uma mão no chão, dei outro chute nele, enquanto aproveitava o giro para acertar o outro que vinha. Ouvi seus corpos colidirem no cascalho, quando perdi o equilíbrio da posição e minha cara foi vergonhosamente arrastada. Fiquei de pé, pronto para procurar Kanro, mas um amplo punho me atingiu, fazendo-me quicar cinco vezes na água antes de afundar. Tudo o que eu podia enxergar era a escuridão abaixo. A água estava tranquila, eu podia dizer até que estava pacífica. Por que nenhum monstro vivia no lago? Vislumbrei a lua cheia balançar pelas fracas ondas, deixando-me aproveitar mais alguns segundos, antes de nadar para cima. Subi em uma pedra no meio do lago. Minha armadura de madeira estava destruída, o que restou da ombreira e da região que protegia o meu peito esquerdo sucumbiram assim que saí da água. 

 

Até que o grande Urso Folheado deu seu grande urro, chamando a minha atenção. Pulei sobre a trilha de pedras até entrar em seu raio de ação. Coloquei a mão na bainha da minha espada reta e a levei direto para as garras vermelhas que vinham na direção do meu pescoço. Ele era forte, um único golpe era suficiente para dar cabo de mim, mas ele não era o pior monstro daqui. Aquele Telo’ir… Jogando meus pensamentos para longe, mantive meus golpes evasivos, até levar um corte relevante em minhas costelas. Ajoelhei e contive um gemido de dor. A garra vinha dilacerar meu crânio, entretanto ele me deu uma brecha para abrir um corte fundo em sua grande pança. O urso cambaleou para trás e uma aura amarela surgiu em sua mão. 

 

O que?

 

O urso balançou o braço, e a árvore que estava atrás de mim foi estourada. Levei meu calcanhar direto para o seu focinho, e, quando ele tentou reagir, seus pelos se arrepiaram e ele correu desesperadamente. Pude ouvir passos calmos e rítmicos sobre a água, acompanhados de uma aura densa e poderosa que eu jamais sentira antes. Diferente do Minotauro e do mascarado, essa aura parecia ter sido cuidadosamente modelada durante anos. Um sorriso se formou no canto do meu lábio quando vi Kanro andando sobre a água. Ele estava segurando uma espada de energia. Bruno tinha muita dificuldade para criar uma lança feita a partir do seu elemento, sempre saia imperfeita e durava poucos segundos. Kanro conseguiu fazer isso com mana pura. Me perguntei o quão difícil isso era. Seus olhos brilhavam, como se tivessem interagindo com a luz da lua, e a água ao seu redor logo começou a girar. 

 

Com um pulo, nossas espadas se encontraram. A energia dele fez com que o cascalho, a terra e a água começassem a subir, e minha espada começasse a rachar. Kanro me lançou uma enxurrada de ataques, cada um trazendo ao meu corpo um novo corte que ardia por vários segundos. Eu sabia que ele pegava leve, mas meus olhos mal podiam acompanhar sua velocidade atual. Descobri que minhas esquivas possuem um limite. Os golpes contínuos e perfeitos dele desnorteavam minha habilidade de se esquivar. Droga, literalmente a única habilidade que eu possuía e eu nem conseguia fazer direito. Se eu pudesse esquivar de uma maneira que me desse uma boa base para ataque…

 

— Suas esquivas continuam impressionantes, filho, apesar de desajeitadas. — falou Kanro, com um certo entusiasmo. 

 

— E sua velocidade me surpreende, pai, eu gostaria de te ver cem por cento algum dia. 

 

— Ainda precisa treinar muitos os olhos para ver o que é mais rápido que o som. 

 

Lentamente a mana se concentrava em sua mão e, em um fluxo constante, era transferida para a espada dele em partículas de fogo. Um feitiço. Larguei a espada quando vi seu braço se afastar e inclinei-me para trás até sentir minha coluna doer. A espada, outrora de energia pura, se transformou em chamas e passou a poucos centímetros do meu rosto. Um som agudo muito alto surgiu enquanto a esfera de energia destruía tudo em seu caminho, deixando para trás uma trilha funda coberta por um mar de chamas. 

 

— Pai!

 

— Me empolguei!

 

Nosso duelos corpo a corpo se iniciou tão rapidamente quanto as nuvens que corriam no céu. Eu já estava ofegante, meus golpes se tornavam cada vez mais lentos, mas mesmo assim eu conseguia acertar alguns golpes nesse “modo nerfado” do meu pai. Até que uma ideia surgiu. 

 

— O que foi, Lumi? Hoje é o último dia do seu treino, precisa se esforçar!

 

— Eu estava distraído com aquele urso de duas cabeças. 

 

Kanro se afastou em um passo rápido e olhou para trás ainda com a guarda rápida. Quando seu rosto cômico voltou para frente, eu já havia sumido há muito tempo. 

 

— Esperto, admito. Como pretende me acertar? 

 

— Se eu te contasse, você defenderia. — falei, deixei que minha voz ecoasse por todas as direções. 

 

Peguei um punhado de gravetos e ataquei todos para o alto. Os olhos do meu pai se moveram rápido o suficiente para ele analisar o formato de cada um, mas ele me deixou passar. Saí da árvore em que estava e mirei um chute em suas costas. Quando eu vi a perna dele subir, já era tarde demais — desviar no ar era algo impossível para mim. Cuspi um bocado de saliva quando o pé dele adentrou nas profundezas do meu estômago. Dei um mortal e apoiei-me na árvore. Eu precisava aproveitar o embalo. Me joguei para cima dele enquanto seu braço era coberto por uma camada grossa de magia. Fechei os olhos e deixei meu corpo girar como uma batata, e o golpe dele trucidou a árvore que eu havia apoiado. Usando a mesma tática, usei o impulso para atacá-lo, mas Kanro tinha um olho na nuca. O braço dele girou sem que ele virasse. Seu golpe contorceu o meu corpo e me arremessou para bem longe. Bati em três troncos de árvores antes de comer terra por mais de três metros de distância. 

 

Quando meus sentidos voltaram a si, me deparei com a mão do meu pai estendida para mim. Levantei com a ajuda dele e tossi, tentava tirar a terra que rasgava minha garganta. 

 

— Você percebeu o meu feitiço se formar? 

 

— Eu pude ver. Meio que eu vi outro fluxo de mana se formando em sua mão, além do que estava mantendo a espada abastecida. 

 

— Então, na teoria, você pode ver magia e auras? Me pergunto quando você vai conseguir acessar o seu reservatório.

 

Talvez a pedra mágica tivesse a resposta para isso. Mas por que o meu era tão complicado de acessar? 

 

— Posso ver pré ataques também, como se fosse um reação natural que ocasiona nas minhas esquivas, apesar de eu não ter ideia alguma de como desenvolver isso. Já esbarrou com alguém assim?

 

— Sim, já. Durante uma de minhas expedições havia um homem que podia se teletransportar. Um poder incomum, sim. Segundo ele, mesmo após anos de treino e estudos sobre sua magia, ainda era difícil entender a complexidade do seu poder. Você não manipula, por enquanto, mas pode sentir. A mana é manipulável de diversas maneiras, seja por velocidade aplicada em si de forma natural ou cobrir o corpo com uma camada de magia. 

 

— Então está dizendo que o meu poder já está se manifestando?

 

— E teria alguma outra explicação para você ter essa esquiva surreal? Eu só queria saber qual foi o gatilho para isso. — A katana. Kanro deu um largo sorriso, e então continuou. — Vá além, Lumi, da sua forma. Seu treinamento comigo acabou, mas é só o seu começo. Da próxima vez, você precisa me acertar um golpe!

 

A trilha a noite me deixou maravilhado, mesmo com a floresta sombria coberta por névoa e olhos vermelhos de um lado havia uma vasto campo aberto com uma vista incrível para o céu do outro.

 

— Pai, você teve alguma experiência com anormalidades? Como elas são categorizadas?

 

— Algumas. Pode-se dizer que quando um dedo não natural interfere nas forças existentes aqui. Por mais que eu ache que algumas são forjadas. 

 

— Qual foi a pior? 

 

Kanro colocou a mão no queixo, de forma pensativa, enquanto andava.

 

— A pior foi de uma criatura branca e humanóide que andava sempre sorridente. Eu era um pouco mais forte que um Dilúculo e estava em um grupo. Estávamos em uma alrofy. Quando chegamos no local do líder, aquilo apareceu. — Um arrepio tomou conta da minha espinha só de tentar imaginar. — Usava roupas rasgadas, tinha dentes afiados amostra, garras, seus olhos estavam cobertos por um pano branco… Perdemos muitas vidas nessa batalha.

 

— Ele era tão forte assim?

 

— Ele é conhecido como o Caminho Branco, e nós não chegamos nem a encostar nele. Na época, os boatos de uma criatura poderosa que andava sem rumo parecia mentira, então ninguém se importava. Mas estar diante aquilo… Ele ergueu os braços e as paredes explodiram, trazendo criaturas loucas com corpos modificados. — Ele parou quando percebeu que eu havia parado de andar. — Lumi, faça algumas missões em grupo, fique forte. Mas lembre-se de se divertir no caminho.

 

Pensei em contar para ele sobre o encapuzado, sobre a recompensa, os Ritualistas, mas eu falhei. Ele ficaria ainda mais preocupado se eu falasse, eu não poderia fazer isso com ele. 

 

— Tenho algumas lições para você praticar. — disse ele, voltando a andar. — Primeiro, pratique quebrar o ataque do inimigo antes dele ter a chance de realizá-lo. Nunca vi alguém que pudesse sentir dessa forma, eu mesmo só consegui realizar tal proeza por causa do meu reforço em velocidade. 

 

— Tem alguém capaz o suficiente para causar danos destrutivos puros, elementares e ainda conseguir ser bom no corpo a corpo?

 

— Não sei se perfeitamente em todos os aspectos, mas os Nível Caos do nosso país talvez possam, se forem considerados Categoria Um. Segunda lição, se você realmente quiser saber usar algum elemento, pode tentar aprender meditação em algum livro útil na biblioteca e praticar perto de cada elemento que deseja.

 

— Espera, é possível aprender um elemento fazendo isso?

 

— Não exatamente, é um ramo incerto. Digamos que você só vai, talvez, descobrir com qual você tem o mínimo de afinidade para poder praticar. Sim, é um processo demorado. Terceiro, mantenha seus exercícios físicos contínuos, é bom estar sempre em melhora.

 

— Da próxima vez, pai, eu vou vencer.

 

— Você vai tentar.

 

Nosso papo terminou quando passamos pelos grandes portões de Karin. Pela primeira vez em bastante tempo eu me senti esperançoso, como se eu realmente tivesse alguma chance de revidar. O caminho podia ser longo, mas eu estava preparado. 

 

Eu queria vencer. 






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