Volume 1
Capítulo 5: Depois do escuro
Consegui.
Alverin organiza a papelada satisfeito com o resultado, experiente a ponto de apenas ler os títulos, e cochicha algo com Cirlan. Kaled tem uma carranca de assustar, e o fato dele cruzar os braços e estar me encarando fixamente há alguns longos segundos me assusta.
— Eu não disse? — Elanor agita meus ombros e fixa seu olhar penetrante no meu. — Você venceu antes e depois de chegar.
— Graças a você ter vindo comigo, Elanor. Agora sinto que preciso voltar a praticar com o meu pai — respondo-a em um tom de voz baixo, mas sem o pesar que carreguei por todo o caminho.
— Não deveria nem ter parado. Jowan e Lioren ficariam desapontados. Sabe que eles adoram lutar com você.
Abro a boca para respondê-la levantando o meu indicador, mas seu cerrar de olhos me faz repensar minhas palavras. Então viro-me para o líder e me aproximo do balcão. Alverin bate o papel na mesa e me explica sobre as principais cláusulas do contrato de teste.
Há um pequeno requisito de equipamentos — como partes de armadura e água — e alguns alertas sobre os caminhos e os materiais os quais eles lidam. Pontes estreitas, plantas venenosas, serpentes, escalada… A última em particular me traz um calafrio, estar distante de solo por si só me faz tontear e- bem, odiaria cair e ter que ficar em casa logo nos primeiros dias de emprego.
Meu pai e meu avô sempre me incentivaram a me aventurar em brincadeiras no rio e em árvores, era divertido, mas de algum tempo pra cá — mesmo antes do que houve na cidade — eu venho sentido uma “anestesia” no meu modo de viver.
Tudo estava tão calmo e sem grandes problemas que eu… Tive poucos picos de diversão, como se a maioria dos momentos fossem cinza. Estar a beira dá morte foi como se uma flecha vermelha atingisse meu coração em cheio e trouxesse de volta ao menos uma cor.
Bem… essa pequena probabilidade de encontrar algum monstro me desagrada, mas é extremamente raro.
Pego a caneta relutante e olho para Elanor uma última vez. Aqueles olhos vibrantes acreditam em mim, como os de meus pais e de Lyra. Tocar a ponta dela no papel me faz suar, deixando a tinta marcada quando, evitando pensar, começo a escrever meu nome. Esse é o meu primeiro passo para esfriar a cabeça e quem sabe lembrar do incidente com um pouco menos de pânico.
Solto o ar esvaziando a tensão que outrora estava em mim e deixo a caneta ao lado, entregando o documento para Alverin, que passa os olhos e estende a mão para mim animado.
— Muito bem, companheiro — Ele balança nosso aperto para cima e para baixo com um tanto de… velocidade.
— Tenha os preparativos dentro de três dias. Ao menos todos os recomendados e básicos para uma expedição leve a moderada — O capitão diz em alto e bom som, e eu aperto a mão dele em seguida. Quer dizer que podemos subir alguma montanha próxima. — Preparo físico é essencial, subiremos caminhos estreitos e precisaremos de força. Da sua força.
— Farei tudo o que for preciso — Respondo sério, levando ar aos pulmões onde a magia age sem que eu perceba, e mantenho os olhos focados nos de Cirlan. Penetrantes. — Obrigado por me dar a chance de acompanhá-los neste teste — Me curvo ligeiramente.
— Por favor, anote o seu endereço, enviaremos um Voin quando a data da expedição for decidida — Assinto, anotando em um dos papéis que Alverin deixou sobre a mesa.
Voins, ao que me lembro, são pássaros mágicos que levam recados com uma precisão incrível. Sei que são muito caros e normalmente usados por pessoas de cargos importantes nos reinos. Aqui na cidade quase não se vê um, mas eles têm. Cirlan guarda o papel em seu bolso e Cacele se aproxima, estendendo sua mão com um sorriso meigo e gentil que faz meu coração acelerar.
Que injusto.
— Será legal ter você conosco — Ela inclina levemente o rosto para o lado ao sorrir. Aperto a mão dela quase sem força e demoro a recuar. — Subir a montanha é uma experiência incrível.
— Obrigado, Cacele. Ma-mal posso esperar por isso — Por que estou nervoso!? — Estarei no aguardo do Voin
Aceno em despedida e recebo o mesmo gesto de volta
Elanor me lança um olhar furtivo e desaprovador, mas sorri de canto antes de me dar uma cotovelada sutil na costela. Em seguida, acena para eles como se nada tivesse acontecido. Doeu pra porra. Levo a mão rapidamente ao lugar do ataque e me viro para a porta — mas Kaled já está parado diante dela, braços cruzados e uma carranca feroz no rosto.
— Eles podem aceitar facilmente sua entrada, mas não será assim comigo. — O tom de desprezo dele me faz erguer a perna, pronto para dar um passo atrás, mas eu o encaro e inspiro. — Não é um trabalho para amadores sem porte físico nenhum.
— Espero que possamos nos dar melhor no trabalho do que nessa casual entrada.
— Isso se você chegar a virar membro.
Ele tem razão. Eu ainda não sou membro — e tampouco tenho o físico hábil para uma missão que envolve subir e carregar peso. Mas não vim lamentar o meu estado físico e mental igual nos últimos dias.
Apenas assinto para Kaled, que sai da porta ainda me encarando, e abro-a para Elanor passar. Ela desfila como uma lady e me arranca uma boa risada.
*
O ar continua congelante, mas há uma imensa brecha no maravilhoso mar de nuvens, destacando exatamente onde a lua cheia se encontra. A admiro por alguns segundos, preso naquele brilho que parece hipnotizar.
Elanor caminha poucos passos à minha frente, com os braços para trás, cantarolando uma música que ouvimos juntos há muito tempo. Lembro que era de um pequeno musical sobre ser aventureiro.
— Pode ir daqui — Elanor para diante do chafariz adormecido, e o comércio ao redor de nós está morto; se não for pelas duas pequenas barracas de comida e guarda-chuvas que se mantiveram. — Ou precisa que eu te deixe em casa?
— Elanor — Arqueio a sobrancelha e sutilmente cruzo meus braços. — Eu vou te deixar em casa, já está tarde.
Você fez bastante por mim para eu deixá-la ir assim.
Ela pondera por alguns segundos olhando para cima. A brisa de ar agita nossas vestes, os nossos cabelos, e Elanor salta para o banco do chafariz, começando a rodeá-lo enquanto eu a acompanho.
— Eu sou uma aventureira, sabia? Vocês poderiam diminuir um pouquinho dessa preocupação — Ela brinca, mas seu rosto mostra um mínimo de seriedade.
— Pode ser uma cavaleira que não vai voltar para casa sozinha.
Caminhamos por quase duas voltas, ouvindo a água escorrer e as conversas ao fundo das poucas pessoas que ainda ousam sair neste dia frio. Ela se vira e, com um pulo fofo, para ao meu lado, olhando direto nos meus olhos.
— Tudo bem, eu deixo você me levar dessa vez — Ela toma a frente em passos um pouco mais rápidos. — Mas se não voltar a treinar, sou eu quem vai acompanhar você.
— Combinado — respondo com um sorriso de canto, pensando em como eu poderia proteger ela do jeito que estou.
*
Elanor mora a sul da cidade, em um condomínio que eu julgo ser elegante. Após uma boa caminhada, faço questão de deixá-la na porta de casa e a espero entrar. Ela me chama de “bobo”, mas agradece pela companhia que teve.
Claro, ela é mais forte do que eu, mas ainda assim não posso deixar os papéis se inverterem.
Busco retornar pelos poucos pontos de comércio que estão abertos a essa hora, mesmo que com duas ou três pessoas. Me incomoda que a cidade pacífica e segura tenha se tornado esse… mar de sombras.
Sinto uma pontada acima do olho esquerdo ao sequer me imaginar pensando no que houve — aposto que já tem gente paga para investigar isso. As autoridades não se manifestaram muito sobre o ocorrido, talvez três dias não sejam o suficiente para chamar um cavaleiro do reino para Karin.
Então quem era a pessoa poderosa a ponto de conseguir me salvar?
A sensação inebriante de que tem algo nas sombras me encarando me atinge no exato instante quando piso fora dos portões. Cogito recuar para o único guarda presente, que segura preguiçosamente sua lança de metal, mas da última vez que contei com a cidade…
Estarei mais seguro perto do meu pai.
Caminho rente ao muro, tropeçando entre pedras e desníveis. O som do mundo some — só ouço o coração disparar e a respiração fugir do controle. Deixo o fluxo de magia correr da aura para os pulmões e paro no meio do caminho entre as demais casas e a minha, com iluminação o suficiente apenas para saber localizá-las.
Uma rápida olhada para cima foi o bastante para saber que não há guardas na muralha.
A primeira gota de suor frio desliza pelo meu rosto com tanta fluidez como a da brisa fria que agita a plantação e as árvores, que leva outro aglomerado de nuvens para a bela lua que me guiava.
Neste instante, todos os pelos do meu corpo se arrepiam.
Na floresta distante e indecifrável, eu vejo uma silhueta entre os arbustos na entrada da floresta, a caminho do Bosque das Vozes. Juro que meu corpo trava, a ponto de parar de respirar.
Mas que caralho é isso?- Não! Eu… eu não estou tentando tudo isso atoa. Não pode ser real.
Tento virar para minha casa, mas meu olhar está travado no que está a dezenas de metros, preso como um feitiço que se constrói a partir do medo. A silhueta se torna um pouco maior quando se aproxima e o horror rapidamente alcança o meu semblante.
Permito que o fluxo de mana cresça e inspiro da forma mais sutil que posso, e a coisa para. Ele percebeu? Porra, porra. Agacho-me lentamente, tremendo demais para conseguir sair do lugar, e ele faz o mesmo.
É alguém?
Tum tum tum.
Ele dá um passo para a esquerda, rumo a minha casa, e metade da sombra fica atrás de uma árvore. De canto de olho, vejo duas luzes acesas na porta do meu lar e me movo; ou ao menos idealizo isso.
Minhas pernas não se mexem.
A sombra desaparece devagar, engolida pela luz que volta a atravessar as folhas. Mesmo assim, o ar ainda pesa. A pressão demora a sumir, como se algo continuasse me segurando por dentro.
Só quando a magia se desfaz em um brilho branco percebo que estou prendendo a respiração. Inspiro de repente, alto demais.
Eu fracassei de novo.
Os joelhos tocam a terra antes que eu perceba. As mãos logo seguem, afundando no chão úmido. Uma lágrima cai e se mistura à sujeira, e o coração segue disparado, tão rápido quanto os pensamentos que vêm em enxurrada.
Tudo que eu precisava fazer era andar. Só isso.
Mas o corpo lembra.
A mente volta.
A criatura podia ter me esmagado. As sombras ainda me observam, mesmo quando sei que não há nada ali.
Arregalo os olhos, o mesmo vazio me tomando por dentro. Aperto a terra até sentir dor, tentando arrancar de mim o que ficou preso lá atrás.
Devo estar vendo coisas.
Aquilo já passou.
Não há perigo na cidade.
Levanto-me, ainda mais cansado do que antes. O corpo obedece, mas a cabeça fica presa onde a sombra esteve.
Sigo junto ao muro, sem pensar muito, só deixando os passos me arrastarem.
Lanço olhares curtos para a floresta. A luz volta a brilhar, e o ar se torna leve outra vez. Mas dentro de mim, tudo ainda pesa.
Passo pelo milharal sem olhar para ele, com o olhar vago fixo na lamparina prestes a se apagar. É preciso muito esforço para cada degrau da varanda, onde quase vacilo no andar até tocar a testa na porta.
A abro, me deparando com meu pai cortando alguns tomates no sofá de frente a lareira. Pisco algumas vezes e rapidamente passo o antebraço pelos olhos, fechando-a com minhas costas.
— Pai- — engasgo, mas me controlo.
Não posso me dar ao luxo de desabafar sempre que o vejo depois de um momento difícil… ou posso?
Chorar uma vez pelo problema é compreensível, mas isso está acabando comigo.
— Como foi, meu filho? — Ele apoia a tábua de corte no braço do sofá e caminha até mim, seus olhos curiosos. — Está tudo bem? — Ele para diante de mim, e eu ergo o queixo para cima. Coço a garganta e busco imitar a postura dele, mas essa aura imponente é tão… segura.
Eu não tenho nada disso.
— Estou… pensando mais no problema do que na solução. Mas não quero falar disso agora — Ele assente, respeitoso. Kanro e Amice nunca me obrigaram a falar sobre meus problemas, mas sempre deixaram claro que eu tenho todo o apoio deles se precisar. — Encontrei o líder Cirlan Brastor — Cruzo os braços e paro próximo ao fogo. — Ele disse que eu… — Acabo olhando para baixo, mas fecho os olhos por dois segundos e volto a encará-lo. — Posso fazer o teste na próxima expedição deles.
É isso… eu posso. Eu realmente posso.
Um sorriso imediatamente toma o rosto de Kanro, ele me pega em um abraço que me tira do chão e esmaga minhas costelas.
— Parabéns, filho! — Ele me põe no chão, suas mãos agora em meus ombros. — Cirlan é um bom homem, tem muito a aprender com ele
Ouço Amice e Lyra descerem as escadas, animadas por me verem.
— A expedição já está marcada? — Meu pai pergunta.
— Ainda não, disseram que vão mandar aquele pássaro mensageiro — Ergo o canto os lábios em um fraco sorriso, mas depois de tudo, é sincero. — Você conhece o Cirlan-
— Lumi! — Lyra me interrompe, correndo até mim. Ela salta em um abraço e envolve a minha cintura. Admirada, apoia o queixo no meu peitoral magro. — Você conseguiu, vai finalmente arrumar um emprego.
— Claro que consegui, maninha- Ora sua… — passo a mão no cabelo dela, em um gesto que mistura carinho e orgulho. — Prometo trazer lembrancinhas das expedições pra você.
— Prometeu, hein? — Ela ergue o dedo, rindo. — Eu vou lembrar disso.
Pego o dedinho de Lyra com o meu e aperto, firmando a promessa com o olhar mais firme que posso dar.
Amice leva as mãos quentes ao meu rosto e encosta a testa na minha, afastando todo e qualquer pensamento ruim. Sua aura me envolve em proteção — diferente da de meu pai, mais mansa, mais calma.
— Meu menino… — ela sussurra, orgulhosa. — Está de parabéns.
Suas palavras me atingem como um choque suave. Fico imóvel por alguns segundos. São como um casaco de lã num dia frio, um abrigo em meio à ventania. Mantenho meus olhos nos dela enquanto sinto, verdadeiramente, meu coração se acalmar.
— Obrigado — Minha voz quase não sai. — Prometo me esforçar.
— Aguardarei boas notícias, e temos que dar uma palavrinha antes de simplesmente sair por aí — Ela encara meu pai, que apenas concorda com ela. Lyra alterna confusa entre os dois.
— Sim, senhora — Meus estômago ronca, e Lyra dá uma risada.
— Venha, o jantar está quase pronto. Lyra fez a carne dessa vez — Minha mãe dá uma piscadela para minha irmã e eu franzo o cenho para ela.
— Está aprendendo rápido, quero ser o primeiro a experimentar sua comida — Digo gentilmente e Lyra fica sem jeito, levando as mãos para trás do corpo e tocando a ponta do pé no chão.
— Hunrum… — Ela responde tímida.
Em silêncio, todos se entendem com um simples olhar. Kanro pega a tábua de corte e, pouco a pouco, nos reunimos na cozinha. O cheiro da comida começa a preencher a casa — quente, familiar.
Por um instante, tudo parece em ordem outra vez.
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