Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 5: Depois do escuro

 

Consegui.

Alverin organiza a papelada satisfeito com o resultado, experiente a ponto de apenas ler os títulos, e cochicha algo com Cirlan. Kaled tem uma carranca de assustar, e o fato dele cruzar os braços e estar me encarando fixamente há alguns longos segundos me assusta.

— Eu não disse? — Elanor agita meus ombros e fixa seu olhar penetrante no meu. — Você venceu antes e depois de chegar.

— Graças a você ter vindo comigo, Elanor. Agora sinto que preciso voltar a praticar com o meu pai — respondo-a em um tom de voz baixo, mas sem o pesar que carreguei por todo o caminho. 

— Não deveria nem ter parado. Jowan e Lioren ficariam desapontados. Sabe que eles adoram lutar com você.

Abro a boca para respondê-la levantando o meu indicador, mas seu cerrar de olhos me faz repensar minhas palavras. Então viro-me para o líder e me aproximo do balcão. Alverin bate o papel na mesa e me explica sobre as principais cláusulas do contrato de teste. 

Há um pequeno requisito de equipamentos — como partes de armadura e água — e alguns alertas sobre os caminhos e os materiais os quais eles lidam. Pontes estreitas, plantas venenosas, serpentes, escalada… A última em particular me traz um calafrio, estar distante de solo por si só me faz tontear e- bem, odiaria cair e ter que ficar em casa logo nos primeiros dias de emprego. 

Meu pai e meu avô sempre me incentivaram a me aventurar em brincadeiras no rio e em árvores, era divertido, mas de algum tempo pra cá — mesmo antes do que houve na cidade — eu venho sentido uma “anestesia” no meu modo de viver. 

Tudo estava tão calmo e sem grandes problemas que eu… Tive poucos picos de diversão, como se a maioria dos momentos fossem cinza. Estar a beira dá morte foi como se uma flecha vermelha atingisse meu coração em cheio e trouxesse de volta ao menos uma cor.

Bem… essa pequena probabilidade de encontrar algum monstro me desagrada, mas é extremamente raro.

Pego a caneta relutante e olho para Elanor uma última vez. Aqueles olhos vibrantes acreditam em mim, como os de meus pais e de Lyra. Tocar a ponta dela no papel me faz suar, deixando a tinta marcada quando, evitando pensar, começo a escrever meu nome. Esse é o meu primeiro passo para esfriar a cabeça e quem sabe lembrar do incidente com um pouco menos de pânico. 

Solto o ar esvaziando a tensão que outrora estava em mim e deixo a caneta ao lado, entregando o documento para Alverin, que passa os olhos e estende a mão para mim animado.

— Muito bem, companheiro — Ele balança nosso aperto para cima e para baixo com um tanto de… velocidade. 

— Tenha os preparativos dentro de três dias. Ao menos todos os recomendados e básicos para uma expedição leve a moderada — O capitão diz em alto e bom som, e eu aperto a mão dele em seguida. Quer dizer que podemos subir alguma montanha próxima. — Preparo físico é essencial, subiremos caminhos estreitos e precisaremos de força. Da sua força.

— Farei tudo o que for preciso — Respondo sério, levando ar aos pulmões onde a magia age sem que eu perceba, e mantenho os olhos focados nos de Cirlan. Penetrantes. — Obrigado por me dar a chance de acompanhá-los neste teste — Me curvo ligeiramente. 

— Por favor, anote o seu endereço, enviaremos um Voin quando a data da expedição for decidida — Assinto, anotando em um dos papéis que Alverin deixou sobre a mesa. 

Voins, ao que me lembro, são pássaros mágicos que levam recados com uma precisão incrível. Sei que são muito caros e normalmente usados por pessoas de cargos importantes nos reinos. Aqui na cidade quase não se vê um, mas eles têm. Cirlan guarda o papel em seu bolso e Cacele se aproxima, estendendo sua mão com um sorriso meigo e gentil que faz meu coração acelerar.

Que injusto.

— Será legal ter você conosco — Ela inclina levemente o rosto para o lado ao sorrir. Aperto a mão dela quase sem força e demoro a recuar. — Subir a montanha é uma experiência incrível.

— Obrigado, Cacele. Ma-mal posso esperar por isso — Por que estou nervoso!? — Estarei no aguardo do Voin  

Aceno em despedida e recebo o mesmo gesto de volta

Elanor me lança um olhar furtivo e desaprovador, mas sorri de canto antes de me dar uma cotovelada sutil na costela. Em seguida, acena para eles como se nada tivesse acontecido. Doeu pra porra. Levo a mão rapidamente ao lugar do ataque e me viro para a porta — mas Kaled já está parado diante dela, braços cruzados e uma carranca feroz no rosto.

— Eles podem aceitar facilmente sua entrada, mas não será assim comigo. — O tom de desprezo dele me faz erguer a perna, pronto para dar um passo atrás, mas eu o encaro e inspiro. — Não é um trabalho para amadores sem porte físico nenhum.
— Espero que possamos nos dar melhor no trabalho do que nessa casual entrada.
— Isso se você chegar a virar membro.

Ele tem razão. Eu ainda não sou membro — e tampouco tenho o físico hábil para uma missão que envolve subir e carregar peso. Mas não vim lamentar o meu estado físico e mental igual nos últimos dias. 

Apenas assinto para Kaled, que sai da porta ainda me encarando, e abro-a para Elanor passar. Ela desfila como uma lady e me arranca uma boa risada.

 

*

 

O ar continua congelante, mas há uma imensa brecha no maravilhoso mar de nuvens, destacando exatamente onde a lua cheia se encontra. A admiro por alguns segundos, preso naquele brilho que parece hipnotizar. 

Elanor caminha poucos passos à minha frente, com os braços para trás, cantarolando uma música que ouvimos juntos há muito tempo. Lembro que era de um pequeno musical sobre ser aventureiro.

— Pode ir daqui — Elanor para diante do chafariz adormecido, e o comércio ao redor de nós está morto; se não for pelas duas pequenas barracas de comida e guarda-chuvas que se mantiveram. — Ou precisa que eu te deixe em casa?

— Elanor — Arqueio a sobrancelha e sutilmente cruzo meus braços. — Eu vou te deixar em casa, já está tarde. 

Você fez bastante por mim para eu deixá-la ir assim.

Ela pondera por alguns segundos olhando para cima. A brisa de ar agita nossas vestes, os nossos cabelos, e Elanor salta para o banco do chafariz, começando a rodeá-lo enquanto eu a acompanho.

— Eu sou uma aventureira, sabia? Vocês poderiam diminuir um pouquinho dessa preocupação — Ela brinca, mas seu rosto mostra um mínimo de seriedade. 

— Pode ser uma cavaleira que não vai voltar para casa sozinha.

Caminhamos por quase duas voltas, ouvindo a água escorrer e as conversas ao fundo das poucas pessoas que ainda ousam sair neste dia frio. Ela se vira e, com um pulo fofo, para ao meu lado, olhando direto nos meus olhos.

— Tudo bem, eu deixo você me levar dessa vez — Ela toma a frente em passos um pouco mais rápidos. — Mas se não voltar a treinar, sou eu quem vai acompanhar você.

— Combinado — respondo com um sorriso de canto, pensando em como eu poderia proteger ela do jeito que estou.

 

*

 

Elanor mora a sul da cidade, em um condomínio que eu julgo ser elegante. Após uma boa caminhada, faço questão de deixá-la na porta de casa e a espero entrar. Ela me chama de “bobo”, mas agradece pela companhia que teve.

Claro, ela é mais forte do que eu, mas ainda assim não posso deixar os papéis se inverterem. 

Busco retornar pelos poucos pontos de comércio que estão abertos a essa hora, mesmo que com duas ou três pessoas. Me incomoda que a cidade pacífica e segura tenha se tornado esse… mar de sombras. 

Sinto uma pontada acima do olho esquerdo ao sequer me imaginar pensando no que houve — aposto que já tem gente paga para investigar isso. As autoridades não se manifestaram muito sobre o ocorrido, talvez três dias não sejam o suficiente para chamar um cavaleiro do reino para Karin.

Então quem era a pessoa poderosa a ponto de conseguir me salvar?

A sensação inebriante de que tem algo nas sombras me encarando me atinge no exato instante quando piso fora dos portões. Cogito recuar para o único guarda presente, que segura preguiçosamente sua lança de metal, mas da última vez que contei com a cidade…

Estarei mais seguro perto do meu pai.

Caminho rente ao muro, tropeçando entre pedras e desníveis. O som do mundo some — só ouço o coração disparar e a respiração fugir do controle. Deixo o fluxo de magia correr da aura para os pulmões e paro no meio do caminho entre as demais casas e a minha, com iluminação o suficiente apenas para saber localizá-las. 

Uma rápida olhada para cima foi o bastante para saber que não há guardas na muralha.

A primeira gota de suor frio desliza pelo meu rosto com tanta fluidez como a da brisa fria que agita a plantação e as árvores, que leva outro aglomerado de nuvens para a bela lua que me guiava.

Neste instante, todos os pelos do meu corpo se arrepiam. 

Na floresta distante e indecifrável, eu vejo uma silhueta entre os arbustos na entrada da floresta, a caminho do Bosque das Vozes. Juro que meu corpo trava, a ponto de parar de respirar.

Mas que caralho é isso?- Não! Eu… eu não estou tentando tudo isso atoa. Não pode ser real.

Tento virar para minha casa, mas meu olhar está travado no que está a dezenas de metros, preso como um feitiço que se constrói a partir do medo. A silhueta se torna um pouco maior quando se aproxima e o horror rapidamente alcança o meu semblante. 

Permito que o fluxo de mana cresça e inspiro da forma mais sutil que posso, e a coisa para. Ele percebeu? Porra, porra. Agacho-me lentamente, tremendo demais para conseguir sair do lugar, e ele faz o mesmo.

É alguém?

Tum tum tum.

Ele dá um passo para a esquerda, rumo a minha casa, e metade da sombra fica atrás de uma árvore. De canto de olho, vejo duas luzes acesas na porta do meu lar e me movo; ou ao menos idealizo isso.

Minhas pernas não se mexem.

A sombra desaparece devagar, engolida pela luz que volta a atravessar as folhas. Mesmo assim, o ar ainda pesa. A pressão demora a sumir, como se algo continuasse me segurando por dentro.

 Só quando a magia se desfaz em um brilho branco percebo que estou prendendo a respiração. Inspiro de repente, alto demais.

Eu fracassei de novo.

Os joelhos tocam a terra antes que eu perceba. As mãos logo seguem, afundando no chão úmido. Uma lágrima cai e se mistura à sujeira, e o coração segue disparado, tão rápido quanto os pensamentos que vêm em enxurrada. 

Tudo que eu precisava fazer era andar. Só isso.

Mas o corpo lembra.

A mente volta.
A criatura podia ter me esmagado. As sombras ainda me observam, mesmo quando sei que não há nada ali.

Arregalo os olhos, o mesmo vazio me tomando por dentro. Aperto a terra até sentir dor, tentando arrancar de mim o que ficou preso lá atrás.

Devo estar vendo coisas. 

Aquilo já passou.

Não há perigo na cidade. 

Levanto-me, ainda mais cansado do que antes. O corpo obedece, mas a cabeça fica presa onde a sombra esteve.

Sigo junto ao muro, sem pensar muito, só deixando os passos me arrastarem.
Lanço olhares curtos para a floresta. A luz volta a brilhar, e o ar se torna leve outra vez. Mas dentro de mim, tudo ainda pesa.

Passo pelo milharal sem olhar para ele, com o olhar vago fixo na lamparina prestes a se apagar. É preciso muito esforço para cada degrau da varanda, onde quase vacilo no andar até tocar a testa na porta. 

A abro, me deparando com meu pai cortando alguns tomates no sofá de frente a lareira. Pisco algumas vezes e rapidamente passo o antebraço pelos olhos, fechando-a com minhas costas. 

— Pai- — engasgo, mas me controlo. 

Não posso me dar ao luxo de desabafar sempre que o vejo depois de um momento difícil… ou posso? 

Chorar uma vez pelo problema é compreensível, mas isso está acabando comigo. 

— Como foi, meu filho? — Ele apoia a tábua de corte no braço do sofá e caminha até mim, seus olhos curiosos. — Está tudo bem? — Ele para diante de mim, e eu ergo o queixo para cima. Coço a garganta e busco imitar a postura dele, mas essa aura imponente é tão… segura.

Eu não tenho nada disso. 

— Estou… pensando mais no problema do que na solução. Mas não quero falar disso agora — Ele assente, respeitoso. Kanro e Amice nunca me obrigaram a falar sobre meus problemas, mas sempre deixaram claro que eu tenho todo o apoio deles se precisar. — Encontrei o líder Cirlan Brastor — Cruzo os braços e paro próximo ao fogo. — Ele disse que eu… — Acabo olhando para baixo, mas fecho os olhos por dois segundos e volto a encará-lo. — Posso fazer o teste na próxima expedição deles.

É isso… eu posso. Eu realmente posso. 

Um sorriso imediatamente toma o rosto de Kanro, ele me pega em um abraço que me tira do chão e esmaga minhas costelas.  

— Parabéns, filho! — Ele me põe no chão, suas mãos agora em meus ombros. — Cirlan é um bom homem, tem muito a aprender com ele  

Ouço Amice e Lyra descerem as escadas, animadas por me verem. 

— A expedição já está marcada? — Meu pai pergunta.

— Ainda não, disseram que vão mandar aquele pássaro mensageiro — Ergo o canto os lábios em um fraco sorriso, mas depois de tudo, é sincero. — Você conhece o Cirlan-

— Lumi! — Lyra me interrompe, correndo até mim. Ela salta em um abraço e envolve a minha cintura. Admirada, apoia o queixo no meu peitoral magro. — Você conseguiu, vai finalmente arrumar um emprego.

— Claro que consegui, maninha- Ora sua… — passo a mão no cabelo dela, em um gesto que mistura carinho e orgulho. — Prometo trazer lembrancinhas das expedições pra você.

— Prometeu, hein? — Ela ergue o dedo, rindo. — Eu vou lembrar disso.

Pego o dedinho de Lyra com o meu e aperto, firmando a promessa com o olhar mais firme que posso dar. 

Amice leva as mãos quentes ao meu rosto e encosta a testa na minha, afastando todo e qualquer pensamento ruim. Sua aura me envolve em proteção — diferente da de meu pai, mais mansa, mais calma.

— Meu menino… — ela sussurra, orgulhosa. — Está de parabéns.

Suas palavras me atingem como um choque suave. Fico imóvel por alguns segundos. São como um casaco de lã num dia frio, um abrigo em meio à ventania. Mantenho meus olhos nos dela enquanto sinto, verdadeiramente, meu coração se acalmar. 

— Obrigado — Minha voz quase não sai. — Prometo me esforçar. 

— Aguardarei boas notícias, e temos que dar uma palavrinha antes de simplesmente sair por aí — Ela encara meu pai, que apenas concorda com ela. Lyra alterna confusa entre os dois. 

— Sim, senhora — Meus estômago ronca, e Lyra dá uma risada. 

— Venha, o jantar está quase pronto. Lyra fez a carne dessa vez — Minha mãe dá uma piscadela para minha irmã e eu franzo o cenho para ela.

— Está aprendendo rápido, quero ser o primeiro a experimentar sua comida — Digo gentilmente e Lyra fica sem jeito, levando as mãos para trás do corpo e tocando a ponta do pé no chão. 

— Hunrum… — Ela responde tímida.

Em silêncio, todos se entendem com um simples olhar. Kanro pega a tábua de corte e, pouco a pouco, nos reunimos na cozinha. O cheiro da comida começa a preencher a casa — quente, familiar. 

 

Por um instante, tudo parece em ordem outra vez.

 

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