Volume 1

Capítulo 25: Algumas conclusões

Da expressão atribulada, Marco observou o semblante de Beatriz se transformar em outra coisa. Os olhos foram se abrindo nas órbitas e a boca se escancarou.

— D-dona Jacira está ferida? — perguntou ela, limpando o rosto com ferocidade na manga da camisa.

— Nestor atirou nela. Não sei o que houve.

Beatriz transpareceu o choque.

— Marco, foi o Dr. Pereda. Ele quem armou tudo isso. Nestor, Lúcia, as enfermeiras; todos faziam parte da Ordem de Vanitas. Levaram o Levi.

Marco teve que se apoiar na cama para não cair para trás.

— Dr. Pereda? Quê?

— Não há tempo de explicar. Tem Ocultos à solta pelo hospital.

— O que está acontecendo? — questionou a voz anêmica de Jacira.

Beatriz se voltou na direção da policial. Ela parecia tão fraca… depois olhou para a porta. Por fim pigarreou, resumindo os eventos das últimas horas. Mostrou a carta que Cássio Pereda deixou para trás.

— …temos que sair daqui depressa — completou ela. — Eu pensei… pensei que você e a dona Jacira estivessem mortos, por isso lavei os selos. Doutor Pereda disse que eles mantinham os Ocultos afastados, mas não consegui pensar em outra coisa. Estavam todos armados. Agora as criaturas virão para cá. Elas farejam os adultos, Marco. Virão atrás da dona Jacira.

Marco, no entanto, tinha o olhar vidrado — quase lívido —, depositado a um canto qualquer da parede. Em seu silêncio enigmático, parecia prestes a socar alguma coisa.

— Marco, você tá bem?

Voltando-se na direção da pergunta, ele mostrou uma expressão que brilhava na mesma intensidade de alguém à beira de um precipício.

— Então a minha mãe morreu por culpa do dr. Pereda? — sussurrou.

A quietude mortificada de Beatriz soou como resposta mais que suficiente.

— Eu vou matá-lo, Bia. — O punho de Marco estremecia. O ódio queimava nos olhos castanhos e lacrimosos. — EU VOU MATÁ-LO!

Beatriz abriu a boca para responder, mas um guincho de cortar os tímpanos a interrompeu.

Marco voltou a si.

— Eles estão vindo — comentou Jacira.

— Nós temos que sair daqui — imperou Beatriz.

— Não, não temos — rebateu a policial. — Vocês é que têm. Se o que acabou de contar for verdade, os Ocultos virão apenas atrás de mim. Essa é a chance de vocês dois sumirem do hospital. Vá atrás do seu irmão, Beatriz.

— Nada disso. Vamos sair daqui juntos — decidiu Marco, em tom de quem não deixaria margem para negociações.

Mostrando um sorriso fraco, Jacira apontou para o armário adiante.

— Marco, jogue para mim o soro e aquela atadura, sim? — solicitou ela, sendo prontamente atendida pelo garoto. Começou a lavar o ferimento da barriga, xingando enquanto o sangue escorria. — Certo, não temos muito tempo. Você falou a respeito de alguns símbolos que protegiam o hospital dos Ocultos, Beatriz?

Ela fez que sim. — Estavam desenhados com sangue.

— Pareciam religiosos?

Beatriz concordou novamente. O grito animalesco soou mais agudo.

— Consegue desenhá-los para mim?

Apanhando uma caneta e um pedaço de papel qualquer, Marco observou apreensivo enquanto a garota rabiscava o mais depressa que conseguia. Demorou dez segundos para entregar o rascunho à policial.

Jacira suspirou.

— Este daqui parece um selo de proteção de São Décimo — disse ela, apontando com o dedo para o desenho do círculo. — Da época em que ele mexia com magia negra antes de se tornar cristão. Tornou-se um santo controverso pelos exorcismos pouco ortodoxos em sua vida de convertido, pois utilizava apenas sal e prata em suas sessões.

— Isso. Sal! — Beatriz exclamou de repente. — O banheiro tinha um cheiro terrível que eu não conseguia descobrir. Era sal!

São Décimo… aquele nome não soou estranho aos ouvidos de Marco, mas não se lembrava porquê.

— “Sê luz do mundo e sal da terra” — recitou Jacira. O olhar se tornou distraído. — Me soa estupidamente óbvio agora que paro pra pensar. Não acredito que não pensei em algo tão simples. Em todo caso, eu nunca tinha visto esse outro símbolo aqui. Me lembra um tipo de cruz. Talvez uma letra “Z”?

Marco espiou o desenho.

— Sem querer, vi essa marca tatuada na barriga de Nestor.

Ponderando um segundo, Jacira sugeriu:

— Talvez seja o símbolo da tal Ordem de Vanitas?

Mas um ruído enregelante vibrou do corredor até o trio, silenciando a conversa no momento exato em que as portas do quarto foram empurradas. Régulo bufou em protesto, correndo para uma extremidade mais afastada.

Deixando-se levar pela concentração instintiva do medo, Marco puxou a pistola e atirou contra a massa de ar. Os projéteis penetraram na carne invisível do Oculto. Inesperadamente, avistou bolsas rasgadas de soro fisiológico rodopiando acima dele a partir de algum ponto às costas; os objetos lançados na direção da criatura.

Marco olhou por cima do ombro. Beatriz mirava no local em que julgava estar ocupado pelo Oculto. Uma fumaça mal cheirosa começou a subir das áreas em que a água o atingiu.

Outro grito animalesco ressoou e Marco, bem como Beatriz, descarregaram toda a munição restante na direção da coisa invisível.

Com um último guinchar, o Oculto deu meia volta e sumiu por onde surgira.

Marco baixou a pistola. O coração martelava.

— Deve ter sal na cozinha — irrompeu ele.

— Devíamos ir até lá? — perguntou Beatriz, espalhando soro aos pés da cama de Jacira e por sobre o colchão da mulher. Entregou uma bolsa para ela.

— Obrigada, minha querida — murmurou a tenente, a voz soando num fiapo rouco. — Ah, nunca me senti tão inútil. Duas décadas de corporação e o primeiro tiro que levo vem justamente de um subordinado traíra? Dói até pra respirar.

— Traremos sal e analgésicos — disse Marco.

— Vocês sabem que não precisam fazer isso, não é? Não precisam se arriscar desse jeito.

Mas o olhar inflexível de Marco gritava que nada do que Jacira dissesse o faria mudar de ideia. Volvendo-se na direção de Beatriz, apanhou ele mesmo uma bolsa de soro e verteu o líquido por sobre a lâmina do machado, depois recarregou a munição da pistola.

— A gente já volta, dona Jacira.

A mulher sorriu com gratidão. — Eu e a minha escopeta não vamos sair daqui.

— Também irei, Marco — disse a voz decidida de Beatriz.

O garoto olhou fundo nos olhos dela. Naquele momento, toda a ajuda seria bem-vinda.

— Vem, Régulo — chamou por fim.

O gato preto se aproximou com a menção do nome, suprimindo agilmente o espaço que o separava do dono.

Outra vez encaixando o machado na bainha improvisada da mochila, precipitou-se para o corredor escoltado por Beatriz e com a Glock firmemente segura à mão. A garota tomou a iniciativa de espelhar as últimas bolsas de soro fisiológico à frente das portas do quarto.

— Não acho que isso vá afastá-los por muito tempo — disse ela.

— Então temos que ser rápidos — argumentou Marco, traçando a rota mental mais curta até a cozinha. Puxou à memória que a repartição ficava próximo à cantina.

Em tempo, Régulo tomou a frente, com os olhos cúrcumas exalando desconfiança e o rabo para cima. Logo atrás dele, Marco e Beatriz esquadrinhavam cada pormenor da passagem, obrigando todos os sentidos a trabalharem com sensibilidade dobrada.

Subitamente, Régulo bufou daquele jeito típico que fazia ao avistar algo que o desagradava. Marco apanhou o crucifixo nas mãos e, olhando de esguelha para a superfície de prata, confirmou a massa podre de carne que bloqueava o corredor.

Era um Oculto.



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