Volume 1

Capítulo 23: A Ordem

Beatriz tinha certeza de apenas uma coisa: pensar demais só adiaria o inevitável.

A sensação era a de estar refém daqueles corredores. Trêmula, seguiu até o átrio do hospital como instruída por Dr. Pereda, formulando mil e uma maneiras de escapar com o irmão.

Então o médico pertencia à tal Ordem de Vanitas? suspirou com tristeza. O pai fora sincero afinal.

As pernas de Beatriz a empurraram sem pressa, um passo depois o outro; a consciência demasiado distante da realidade, como se tivesse saído de si mesma e observasse as próprias costas se afastarem para longe.

Quando alcançou o vestíbulo, jogado à baixa luminosidade, registrou que estava tão desabitado de pacientes quanto o restante do hospital.

Ali só se encontrava Cássio Pereda sentado a um canto voltado para quem vinha do corredor, olhando diretamente para Beatriz quando a garota se materializou. Em pé ao lado dele estavam Lúcia e as duas enfermeiras, além de…

Levi! — chocou-se ela.

O menino havia acordado, emparelhado à cadeira do médico com seu braço enfaixado de ataduras. Levi, no entanto, fitava o chão com interesse catatônico, imóvel em seu pijama de hospital.

— Ele não pode ouvi-la — disse Dr. Pereda com aspecto sombrio.

— Meu irmão é só uma criança! — exclamou Beatriz. — Como pode? Pensei que fosse um homem bom, doutor.

— O que a faz pensar que o Ancião não seja um homem bom, menina? — Lúcia rebateu com frieza.

Beatriz se recusou a acreditar que aquela pergunta fosse séria.

— Fui chantageada para matar um homem! — rosnou ela. Apontou com o dedo. — Você…? Atirou no seu companheiro pelas costas!

— Ele morreria mais cedo ou mais tarde. Era um pecador — respondeu Lúcia, como se a questão estivesse resolvida.

A cabeça de Beatriz girava muito rápido.

— Levi? Levi! Venha pra cá, por favor.

— Já disse que ele não pode ouvi-la.

— Ele vai morrer desse jeito — argumentou Beatriz. — Ele perdeu muito sangue.

— O menino está bem. Eu não prometi a você que cuidaria dele? Tratei de Levi assim que chegou ao hospital, aquela história de transfusão foi apenas desculpa pra me livrar de Jacira e iniciar o meu propósito. Levi é uma peça fundamental dos meus planos… e você também está inclusa neles, Beatriz.

Angustiada, deteve o olhar sobre o irmão. O cérebro trabalhava muito rapidamente para criar um plano de fuga que não os matasse.

— Tudo o que vejo é um grupo de fanáticos malucos. — A boca de Beatriz se mexeu mais rápida que o bom senso.

As enfermeiras enrugaram o semblante numa careta de desagrado. Lúcia, por sua vez, ergueu a pistola e apontou na direção de Beatriz, que encarou a ameaça com abalo mortificado. A mulher que agora lhe ameaçava era a mesma que, ainda no dia anterior, tentou animá-la com uma piadinha aparentemente carregada de boas intenções.

Era verdade que Beatriz mal a conhecia, mas a realidade talvez adquirisse tons de urgência à medida que as pessoas iam sendo empurradas para além dos seus limites físicos e mentais. Naquele contexto, criou simpatia instantânea por Lúcia quando ela tão gentilmente lhe ensinou a atirar. O homem baixou o braço da policial ao lado dele.

— É isso o que pensa de nós? — lamentou-se ele. — Como médico, sabe o que vejo quando olho para as ruas desta cidade, Beatriz? Doença e sujeira. Muita sujeira. Gente que se presta apenas para olhar o próprio umbigo, cometendo toda a sorte de atrocidades, violando seus iguais, jugulando crianças, animais e mulheres; botando fogo na macieira que há pouco lhe rendeu sombra e o que comer.

— Então esses demônios…?

O homem gargalhou sem entusiasmo.

— Sim, fomos nós, mas o ritual da Ordem serviu apenas para trancar a cidade e libertar as criaturas. Baía das Rocas é a minha seara. Não podia permitir que alguém escapasse, pelo menos não a princípio. Eis o primeiro passo.

— Posso ao menos saber por quê? Por qual motivo você faria tudo isso?

Cássio suspirou longamente.

— Assim que finalizei o ritual, retornei para cá — respondeu. — Este hospital me acolheu por vinte longos anos… é imensurável a quantidade de sofrimento que presenciei abaixo dessas paredes, algo que ficou ainda pior quando confirmei a minha super memória. Suspeitava desde a adolescência, é claro, mas foi horrível admitir que, em vez de me tornar imune ao que presenciava, estava fadado a um mar de memórias vívidas e agonizantes, como se eu tivesse acabado de presenciar cada trauma e ferida que tinha de suturar. O somatório de todo o sofrimento que absorvi simplesmente transbordou no meu coração. — Cássio Pereda fez um gesto com a mão que englobou seus arredores. — Uma raiva por um mundo que causa suas próprias mazelas. Foi por isso que criei a Ordem de Vanitas. Ela nasceu com o propósito de equilibrar a equação e ser a nêmesis da humanidade. Vou suturar tudo o que está errado de uma só vez. O agora renascerá sobre os ossos do velho mundo.

O olhar de Beatriz continuava suficientemente perdido para que Cássio optasse pelo sorriso cínico.

— Mas… por que Levi? — quis saber ela.

— “Vinde a mim as criancinhas, pois delas é o Reino dos Céus” — declamou com os braços para cima. — Já percebeu a quantidade de crianças que têm pelas ruas, Beatriz? Os Ocultos são cegos, comportam-se como um bando de cães famintos que farejam o pecado exalado pelas almas impuras. O espírito dos pequeninos não tem cheiro, mas basta fazer dezoito que… — Cássio estalou o dedo em sinal de arremate. — É assim que renovarei este mundo. Nenhum pecador escapará do julgamento, você pode se esconder, mas não camuflar o cheiro que exala, mas quem se arrepender diante de mim; quem verdadeiramente me implorar pelo perdão com a promessa de que deixará toda a ganância, ódio e contenda de lado, eu permitirei que viva. — Cássio fez uma pausa breve e soltou um muxoxo.

— E onde o meu irmão entra nisso tudo?

— É o segundo passo, Beatriz… A princípio, pensamos que sacrificar animais seria o suficiente, mas logo compreendi a necessidade de uma alma, mas não uma qualquer. Apenas algo puro funcionaria. Em verdade, o motivo mais importante para eu ter retornado para o hospital foi justamente para aguardar por um Vaso de Prata; um vaso sem mácula, mas ferido na carne pelos demônios. Seria uma sorte, convenhamos, mas tinha fé de que as portas deste hospital, que tanto sofrimento me trouxeram, também trariam a chave da vitória da Ordem. Aconteceria cedo ou tarde, mas testemunhei um verdadeiro milagre. Quão rápido foi a providência divina em me abençoar com o aparecimento do seu irmãozinho, Beatriz? Agora Levi me ajudará a assumir o controle de todos os Ocultos. Este é o terceiro passo. A selvageria não precisa continuar à solta pelas ruas, mas para que tudo isso acabe, eu preciso que você nos acompanhe e faça Levi obedecê-la em cada etapa do último ritual.

— Até parece que Jacira vai permitir uma coisa dessas — rebateu Beatriz. — Eu vi o que fizeram naquele banheiro, logo ela estará de volta e…

Cássio Pereda a interrompeu com outra gargalhada, dessa vez autêntica. Os pelos da coluna da garota se eriçaram.

— Encontrou os meus selos? Que menina enxerida… Mas se quer saber, era a única maneira de manter os Ocultos afastados. Fiz bom uso do sangue de alguns pacientes. Quanto a Jacira, bem, já deve estar morta a esta altura, ela e aquele seu amigo. Jacira era um empecilho, mas serviu ao seu propósito como boa cadela de guarda. Se Nestor retornar com o combustível, sairei melhor do que planejava.

— Não. NÃO! — Beatriz levou as mãos à cabeça. — Marco não pode… como… como podem falar como se não fosse nada de mais? Vocês assumem que matam como se fosse algo fácil. Que tipo de justiça hipócrita é essa que estão vomitando? Vocês mataram os meus pais! Mataram a mãe do Marco! Levi e eu jamais faremos parte disso. Venha, Levi. Venha agora!

— Sou consciente da minha condição como pecador, Beatriz. Não nego as falhas da minha alma, mas entenda que, para o fogo purificar a terra, ele precisa primeiro queimar tudo ao seu redor. Eu sou o lavrador e os Ocultos, as minhas tochas, então não me coloque no mesmo patamar de homens como Tobias Rogério, menina, que se orgulham de sua iniquidade.

— Louco. — A voz de Beatriz soou com o mais profundo desprezo. — É isso que vocês são.

— Uma lisonja. Todas as pessoas que tentaram mudar o mundo foram chamadas da mesma forma — rebateu com sorriso enviesado. — Venha de uma vez, Beatriz. Se não quer que Levi se machuque, faça o menino seguir o ritual de bom grado.

— Então vocês precisam de mim?

— É o que estou lhe dizendo desde o início.

A sentença ecoou na cabeça de Beatriz. Tinha de agir depressa. Não carregava uma arma consigo, mas as duas mãos estavam livres.

Olhou para o lado e, inspirando fundo, usou todas as forças que tinha para erguer um assento de espera que jazia imediatamente à esquerda.

Os braços de Beatriz não eram fortes, mas aquilo pouco importava diante da súbita determinação que surgiu dentro dela. Rugiu furiosa, avançando numa linha reta como se as pernas da cadeira fossem uma espécie de aríete. Eles não vão atirar, repetia para si mesma, eles não vão atirar. Estava apavorada, mas de fato não o fizeram.

Escutou um vozerio de exclamações sobrepostas. A voz de Lúcia pedindo permissão para disparar… mas não ouviu mais nada depois que fechou os olhos e atirou o objeto de qualquer jeito para cima do grupo. Na confusão, agarrou a mão pequena de Levi, partindo dali a toda velocidade.

Olhou para trás uma vez, certificando-se de que a brecha fora bem aproveitada. Ninguém a perseguia, aliviada que a solidez do irmão significasse não estar imaginando coisas. O menino corria no mesmo ritmo acelerado da irmã, mas com aspecto visivelmente alheio à realidade que o envolvia.

De súbito, uma ideia assaltou a mente de Beatriz. Adentrou pela porta do quarto mais distante e arrastou Levi até o fundo. Sem perder tempo, subtraiu uma almofada da cama ao lado e afofou-a sobre o piso, acomodando Levi em cima dela. O garoto continuava em silêncio, algo que a preocupava mais do que desejava admitir, mas daria a devida atenção ao problema no tempo certo. Por hora, Beatriz teorizava a possibilidade de ser algum efeito secundário dos sedativos. Suspirou, puxando também o cobertor de lã de cima do colchão, empacotando Levi num embrulho aconchegante e aquecido.

— Não saia daqui — disse ela, apertando o dedo em riste contra os lábios.

Era importante manter o foco. Beatriz não fazia a menor ideia da eficácia do plano, mas era o único em que conseguia pensar. Depositaria todas as suas fichas no que Cássio Pereda havia lhe contado.

Dirigindo uma olhadela final na direção de Levi, retornou ao corredor tomada pela sensação de angústia. Mais uma vez se encontrava atirada à solidão, sentindo a nuca endurecer sob o peso da decisão que estava prestes a tomar, uma decisão que atiraria a vida dela e a do irmão num perigo de morte.



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