Volume 1

Capítulo 1: Confraria

Achava bizarro aquele costume de Régulo encarar o nada.

Fixava os olhos de cúrcuma em algum ponto da casa e daquele jeito ficava, às vezes por dois, três minutos inteiros, numa imitação de gárgula de catedral.

Da poltrona da sala, o garoto mirava o gato preto repetindo a bizarrice pela centésima vez. Régulo se apoiava sobre a bancada da cozinha, o corpo inerte e a cauda no ar; os olhos de fenda fixos por detrás do sofá. Sentiu um calafrio retesar os pelos da nuca.

— Vem ver, mãe! — gritou da poltrona.

Irene Pharas surgiu à sala. Era baixa e rotunda, com olhos bondosos e pele escura sulcada por marcas de expressão adquiridas ao longo de uma década cuidando sozinha do único filho.

— Pra que gritar desse jeito, Marco? — zangou-se ela, botando as mãos na cintura do vestido e batendo com o pé.

— Queria que tivesse visto. Esse gato é doido.

Irene procurou pelo animal, mas Régulo já tinha migrado para o braço do sofá e agora se ocupava de lamber a pata esquerda com importância.

— Ficar encarando? Todos os gatos fazem isso, menino — deliberou. — Mas sabia que o nosso bairro foi construído sobre um cemitério abandonado? Certeza que o Régulo tava aí de papo com alguma alma penada.

Marco se achatou contra a poltrona, levando a mão imediatamente ao crucifixo metálico que trazia ao pescoço.

— Acreditou mesmo nisso, meu filho? — Irene irrompeu a gargalhar.

— Que diabo, mãe!

A mulher enrijeceu, crispando os lábios de susto.

— Por Deus, Marco! Bata a mão na boca antes de invocar esse nome. Que coisa! — ralhou benzendo-se com o sinal da cruz. — Quer saber? Desça na venda e me traga duas garrafas de leite. Aproveite o caminho para meditar sobre as coisas que anda dizendo dentro dessa casa. Sabe que estou correndo desde cedo pra terminar as tortas da dona Neuza, mas fica me interrompendo com essas bobagens.

Da expressão de contrariedade, Marco, porém, optou por sorrir malicioso.

— E é claro que a senhora vai me emprestar o carro, não é?

— Nem pensar.

— Caramba, mãe. Quatro dias pra eu fazer dezoito. Me dá esse presente, vai?

— Com essa impaciência toda, por que não nasceu de oito meses? Se quiser, a gente aparece na autoescola com bolo e chapéu de festa, mas espere até o seu aniversário.

— A venda é aqui do lado.

— Então vá de bicicleta, menino!

Dando-se por vencido, Marco se aproximou de Irene e a segurou pelo rosto.

— Pensa numa velha rabugenta que amo do tamanho do mundo — disparou, tascando um beijo na testa da mãe.

A mulher sorriu encabulada, mas enxotou o filho em direção à porta.

— Só está me bajulando pra eu liberar o carro. Pensa que sou besta?

Marco atravessou o batente, seguindo pela garagem enquanto gargalhava.

— Calúnia!

Espremendo-se no vão entre o Monza vinho reformado e o muro da casa, deteu-se diante do porta-malas para conferir a aparência no vidro escuro. Marco fitou os olhos castanhos e joviais que piscaram de volta a ele; a pele negra margeada pelos cabelos em estilo militar.

Sorriu para si mesmo, abrindo o portão e carregando a bicicleta para fora.

— Leva o guarda-chuva, menino! — gritou Irene da sala.

Olhou para cima e só então reparou no céu cor de aço, fechando-se de nuvens cada vez mais pesadas e cinzentas, bloqueando a luz do sol.

— Não precisa — rebateu ele. — Vou e volto num instante.

— Estou contando com isso. Se der sol, iremos à praia amanhã. Quero tomar banho de mar, então vai me ajudar a preparar os sanduíches.

Ele revirou os olhos.

— Que menino…

Mas não foi caso de Marco escutá-la, pois já descia velozmente pela rua deserta. O murmúrio bem-humorado de Irene morreu sob a brisa fria.

Marco sentia a pressão do vento contra o rosto, entreouvindo o ruído tácito da roda traseira girando alheia à corrente. Ele prosseguia com o corpo levantado acima dos pedais, apoiando-se com firmeza sobre o par de guidões.

A paisagem se movia depressa, e foi distraído pelos vultos das casas e veículos estacionados que relanceou uma situação que o fez entortar o pescoço.

Ao longo da calçada mais próxima, uma confraria de gatos se reunia em silêncio, espalhados num semicírculo espaçado e mal disposto. Havia, pelo menos, uma dúzia deles; alguns se acomodando sobre o muro de uma casa, mas todos os animais, quer estivessem em cima ou embaixo, olhavam fixamente para o mesmo ponto no passadiço, como se enxergassem algo ali que escapasse de Marco.

Mirou com maior atenção, mas nada viu, arqueando uma sobrancelha ao constatar o interesse bizarro que tinham em encarar literalmente coisa alguma, tal como Régulo fizera mais cedo.

A bicicleta deixou a confraria para trás e tudo se transcorreu em questão de segundos. Marco alcançou o cruzamento sem entender o que o atingira, mas, quando deu por si, sentiu como se o mundo girasse no próprio eixo.

Escutou freios de carro cantando brusco, depois o ruído do impacto. O susto de constatar que as mãos haviam se soltado da bicicleta durou menos que um piscar de olhos.

Viu lapsos de imagens desconexas, lembrando-se de ter ouvido que a vida passava como um filme acelerado quando se estava prestes a morrer.

Então era assim que o filme da sua vida terminaria? Mas Marco não reconhecia aquelas memórias…

Diante dele, enxergava uma silhueta. A mulher desfocada usava terninho ou, pelo menos, supunha que fosse um. Tinha cabelos pretos e uma boca que se mexia como se gritasse com ele, berrando devagar e de muito longe para que mantivesse os olhos abertos. Um delírio?

Marco, no entanto, se concentrava nos dedos aquecidos da estranha, que acariciavam suavemente em sua bochecha; o sangue escorrendo pela lateral do rosto ao mesmo tempo em que as forças o abandonavam.

Só podia ser um sonho, concluiu, visto que a silhueta da mulher sumiu bizarramente da frente dele, elevando-se em pleno ar como se por mágica pouco antes de se tingir de vermelho-escuro.

Marco sentiu as narinas se encherem de um odor metálico e, embora uma névoa ainda atrapalhasse a visão, teve a impressão nítida de que apenas metade do corpo da mulher despencara no chão, como se a própria realidade a tivesse engolido ao meio.

Sim, era um pesadelo. Um último delírio antes da morte.

Pensou em sua mãe, depois tudo escureceu para Marco.



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